quarta-feira, 30 de julho de 2008

Misericórdias

Novas normas mantêm autoridade dos Bispos A submissão das Misericórdias à tutela dos Bispos diocesanos é uma das principais reivindicações de vários especialistas em Direito Canónico, que discutiram, em Fátima, as consequências para a Igreja das novas normas das Associações de Fiéis.
O tema foi objecto de um encontro organizado pela Universidade Católica, que visou esclarecer as consequências destas normas para a Igreja.
O director do Instituto Superior de Direito Canónico, Manuel Saturino Gomes, diz que estas “normas estão de acordo com o Direito Canónico, mas também esclarecem mais e aprofundam” as regras que existiam.
Nas novas normas, já homologadas pelo Vaticano, é feita a distinção entre associações de fi éis privadas e públicas, sendo que as Misericórdias ficam classificadas “sem margens para dúvidas” nesta segunda categoria.
“As Misericórdias estão constituídas como associações públicas da Igreja e devem submeter-se às normas próprias do Direito Canónico e da Igreja”, pelo que cada
instituição deste tipo “terá a intervenção do Bispo diocesano para homologação de actos relevantes”.
Esta solução põe fi m vários existentes entre Misericórdias e Dioceses, já que muitas irmandades não respondiam perante a autoridade dos Bispos em matérias como eleições internas ou gestão do património.
Alguns confl itos chegaram mesmo a ser dirimidos em tribunal, mas com estas novas normas as “regras ficam mais claras” e é defi nida a autoridade do Bispo, defendeu
este especialista em Direito Canónico.
“A Igreja tem sempre reafi rmado a sua posição em relação às Misericórdias”, mas isso não quer dizer que as queira “substituir ou fi scalizar”, salientou Saturino
Gomes.
No entanto, “sendo associações públicas de fi éis, devem enquadrar o seu espírito eclesial” na estratégia de cada Diocese, acrescentou este docente universitário.
Opinião semelhante tem o Bispo de Aveiro, D. António Francisco dos Santos, que rejeita qualquer tentativa de “condicionar” o trabalho das associações de crentes.
“O objectivo destas normas é reavivar o carisma de cada associação de fi éis”, até porque, em muitos casos, “vai-se perdendo o vigor inicial”, defendeu o prelado.
Esta posição da Igreja colide com aquilo que tem defendido a União das Misericórdias Portuguesas, que reclama uma maior autonomia perante a hierarquia.
Em causa está a classifi cação das Misericórdias como associações públicas de fiéis, que as obriga a dependerem hierarquicamente do Bispo diocesano, uma regulamentação
da Conferência Episcopal Portuguesa que foi ratificada em Abril deste ano.
Em alguns locais, as Misericórdias recusavam responder hierarquicamente perante o Bispo diocesano, uma situação geradora de confl itos que agora estão sanados com este diploma que as classifi ca como associações públicas de fiéis.

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Grupo Renascença

Natureza Jurídica

Assim, a Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Fátima – Ourém é uma Associação pública de fiéis, constituída na ordem jurídica canónica, com o objectivo de praticar a solidariedade social, concretizada nas Obras da Misericórdia. A actividade da Instituição tem por finalidade essencial a caridade cristã no campo da Assistência Social a todos os cidadãos carecidos de auxílio e apoio material ou espiritual, sem distinção de raças, credos religiosos ou ideologias políticas, procurando a valorização integral dos indivíduos e das famílias, de forma a assegurar a promoção da saúde e bem-estar, bem como a luta contra as exclusões (art.1º Compromisso da Misericórdia Fátima Ourém).

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Decisão sobre a Santa Casa da Misericórdia de Montargil

151 Santa Sé: Decisão sobre a Santa Casa da Misericórdia de Montargil

RESUMO: Um grupo de irmãos da Santa Casa da Misericórdia de Montargil (SCMM), Ponte de Sôr, Arquidiocese de Évora, solicitou a intervenção do Arcebispo, como tutela religiosa, para demitir alguns irmãos dos cargos directivos, por crime de «burla, burla agravada e falsificação de documentos, delitos cometidos no exercício das referidas funções». O Prelado nomeou um Delegado para dialogar com a Mesa Administrativa e resolver a questão. Tal não foi possível por não existir acordo sobre o modo como deviam ser classificadas juridicamente as Misericórdias. Associações públicas de fiéis ou, simplesmente, associações privadas de fiéis? Rejeitado o Decreto do Prelado que exonerava dos seus cargos os respectivos membros da SCMM, houve lugar a sucessivos recursos para o Pontifício Conselho para os Leigos e para o Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica. A decisão acerca da matéria, quer in decernendo quer in procedendo, foi sempre favorável ao Prelado e a conclusão final assenta no facto de a SCMM dever ser considerada uma associação pública de fiéis.

Forum Canonicum
Categoria: Doutrina Social
Associações
Definição:
Concílio do Vaticano II:
- o direito dos leigos de fundar e dirigir Apostolicam Actuosistatem 19
- seu valor, principalmente as internacionais Apostolicam Actuosistatem 21
- associações familiares Gaudium et Spes 52, Apostolicam Actuosistatem 11
- associações polí­ticas Gaudium et Spes 73

.....

Sendo o homem naturalmente sociável, a livre associação é um dos seus direitos fundamentais, cujo exercício é dos temas mais tratados pela DSI - Doutrina Social da Igreja. Logicamente, a Igreja admite e até recomenda aos seus fiéis que se integrem em associações visando o seu bem pessoal, especialmente o bem espiritual, e o bem do próximo, da humanidade e da Igreja. O CDC considera as seguintes associações.

1. Associações de fiéis. Distintas dos institutos de vida consagrada e das sociedades de vida apostólica, as a. de f. (clérigos, leigos ou ambos) visam a vida mais perfeita dos associados e a promoção do culto público, da doutrina cristã, ou de obras de apostolado, a saber, evangelização, obras de piedade e de caridade ou projeção do espírito cristão na ordem temporal (CDC 2981). São exemplos: irmandades do SS. Sacramento, confrarias da doutrina cristã, liga de ação missionária, movimentos carismáticos, sociedade de São Vicente de Paulo, organismos de ação Católica, etc. Nenhuma associação se pode chamar Católica sem o assentimento da autoridade eclesiástica. Todas as associações Católicas devem ter os seus estatutos. Chamam-se ordens terceiras as associações de fiéis que participam da espiritualidade dum instituto religioso. Chamam-se associações clericais as dirigidas por clérigos visando objetivos próprios do exercício das sagradas ordens (p.ex., missionários). O novo CDC introduziu a distinção entre associações de fiéis públicas e privadas. São exemplos, entre nós, das primeiras, as misericórdias, e das segundas, as conferências vicentinas.
a) Associações públicas de fiéis. São as canonicamente eretas pela competente autoridade eclesiástica (Santa Sé, Conferência Episcopal ou bispo, consoante o respectivo âmbito de ação), tanto constituídas por iniciativa desta autoridade como pela dos fiéis. A ereção canônica verifica-se sempre que os fins estão, por natureza, reservados à autoridade eclesiástica (culto público, ensino da doutrina cristã…). Pelo próprio decreto de ereção, estas associações têm os estatutos aprovados e são constituídas pessoas jurídicas. Os respectivos moderadores devem ser confirmados pela autoridade eclesiástica, à qual devem prestar anualmente contas.
b) Associações privadas de fiéis. São as que resultam da livre iniciativa dos fiéis, que entre si acordam em prosseguir alguns dos fins das a. de fiéis, com exclusão dos que são reservados à autoridade eclesiástica. Para serem reconhecidas, precisam de ter estatutos visados por esta autoridade; e para obterem personalidade jurídica (sem deixarem de ser privadas) precisam de decreto formal, que pressupõe a aprovação dos estatutos. Embora gozando de maior autonomia que as públicas, as associações privadas de fiéis estão sujeitas à vigilância da autoridade eclesiástica. (Cf. CDC 298-329).

2. Associações de clérigos. (CDC 278). São associações de clérigos seculares, com estatutos aprovados pela autoridade eclesiástica competente, que, por meio de uma regra de vida aprovada, visam o mútuo auxílio fraterno, a santidade no exercício do ministério e a união dos clérigos entre si e com o bispo. Estão proscritos os fins incompatíveis com o estado clerical (p.ex., políticos ou sindicais). Estas a. de c. distinguem-se das acima referidas associações clericais (302).

(D. Manoel Franco Falcão)


Referência: Apostolicam Actuosistatem, Gaudium et Spes, Enciclopédia Católica Popular; Compêndio do Vaticano II (Vozes)

Pastoralis - Brazil

CEP apresenta normas das associações de fiéis

Urgia fazer um documento que «estivesse actualizado e que não levantasse interrogações sobre o valor jurídico»

Urgia fazer um documento que “estivesse actualizado e que não levantasse interrogações sobre o valor jurídico” – disse à Agência ECCLESIA D. Manuel Madureira Dias, membro da comissão para revisão e elaboração das «Normas Gerais das Associações de Fiéis» que entrarão em vigor no último dia do próximo mês de Junho.
A Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) tinha um documento de 1937 sobre estas questões “que estava completamente ultrapassado”, visto que após esta data realizou-se o II Concílio do Vaticano e surgiu um novo Código de Direito Canónico. Posteriormente a CEP publicou umas normas, em 1988, mas “não tiveram homologação papal porque não foi pedida”. Tal facto levava algumas das associações de fiéis “a pensar que o documento não era suficientemente válido, porque havia dúvidas quanto ao seu valor jurídico”. E avança: “esta reacção provocou na CEP a necessidade de dar valor jurídico às normas”.

Com quatro capítulos subdivididos em sessenta e cinco artigos, «As Normas Gerais das Associações dos Fiéis» foram publicadas na última revista «Lumen» (Março/Abril de 2008) e entram “em vigor dois meses após a publicação do decreto de promulgação do Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, D. Jorge Ortiga, na revista «Lumen» - sublinha o Decreto Geral de Aprovação das «Normas Gerais das Associações de Fiéis». D. Manuel Madureira Dias realçou também que as normas anteriores “eram muito prolixas e muitos artigos eram quase só citações do Código de Direito Canónico”. Sobre o novo documento frisou que as “normas pretendem esclarecer as condições de eclesialidade das diversas associações e movimentos” e “colocar a claro os critérios que legitimam a intervenção da autoridade eclesiástica em relação às associações de fiéis”.

As novas normas vêm esclarecer alguns pontos, visto que se considera “que importa dar a conhecer os critérios que a legítima autoridade eclesiástica deve ter em conta na definição de associações de fiéis públicas e privadas”. Por outro lado, documento vem esclarecer “as dúvidas sobre o relacionamento que as associações, quer públicas quer privadas, devem manter com a autoridade eclesiástica” – sublinha o Decreto Geral de Aprovação, assinado pelo Presidente da CEP, D. Jorge Ortiga e pelo secretário da CEP, D. Carlos Azevedo, e datado de 4 de Abril de 2008.

O membro da comissão para revisão e elaboração das «Normas Gerais das Associações de Fiéis» salienta que “praticamente não há muito de novo, mas acima de tudo há mais clareza e as normas foram reduzidas”. “Foram precisados conceitos” e “foram sintetizadas as normas existentes de forma a torná-las mais maleáveis”. Uma ajuda às associações para que saibam “situar-se no interior da Igreja”. E completa: “pretendeu-se ajudar os fiéis a fomentar o associativismo cristão”.

Apesar da legislação, D. Manuel Madureira Dias apela ao bom senso “cada caso é um caso”. E exemplifica: “quando era bispo diocesano homologuei a direcção de uma associação dessa natureza com pessoas que não deviam estar lá. Tive de homologar porque não havia alternativa”.



Na Assembleia Plenária do passado mês de Abril, a CEP votou favoravelmente o Decreto de aprovação das Normas Gerais das Associações de Fiéis. Particular destaque mereceram as Misericórdias, que com a distinção entre associações públicas e privadas são consideradas pelos Bispos como “associações públicas de fiéis”.


As Associações públicas de fiéis são, de acordo com o Direito Canónico, as erectas pela competente autoridade eclesiástica (Santa Sé, Conferência Episcopal ou Bispo, consoante o respectivo âmbito de acção), tanto constituídas por iniciativa desta autoridade como pela dos fiéis. Os respectivos moderadores, necessariamente católicos, devem ser confirmados pela autoridade eclesiástica, à qual devem prestar anualmente contas e não pode, entre outras coisas, ocupar cargos de direcção em partidos políticos.


As associações privadas de fiéis são as que resultam da livre iniciativa destes e para serem reconhecidas precisam de ter estatutos visados por esta autoridade. Embora gozando de maior autonomia que as públicas, as associações privadas de fiéis estão sujeitas à vigilância da autoridade eclesiástica.


Documento

•Normas Gerais das Associações de Fiéis


Nacional | Agência Ecclesia| 15/05/2008 | 16:17 | 4323 Caracteres | 1019 | Conferência Episcopal Portuguesa

Nota Pastoral do Episcopado sobre as Misericórdias Portuguesas em Ano Jubilar

1. Em Agosto próximo, completam meio milénio as Miseri­córdias Portuguesas. Foi em 1498, por altura da festa da Assunção de Nossa Senhora, que a primeira das Santas Casas, a de Lisboa, instituída por iniciativa da rainha D. Leonor, foi solenemente instalada numa capela da Sé posta à disposição pelo Cabido. A erecção canónica, previamente concedida, foi confirmada no ano seguinte pelo Papa Alexandre VI.

D. Leonor, de bondade e cultura insignes, impressionada pelo zelo caritativo de Frei Miguel de Contreiras em favor da multidão de indigentes que pululavam na capital, pensou, com o conselho do bondoso frade trinitário, numa instituição destinada ao exercício de todas as obras de misericórdia corporais e espirituais, a difundir pelo reino, reorganizando toda a actividade assistencial que era então precariamente exercida.

A rainha concebeu‑a segundo o modelo das irmandades e confrarias do tempo, e motivou, para a sua concretização, “pessoas de honesta vida, boa fama, sã consciência, tementes a Deus e guardadoras de seus mandamentos, mansas e humildes, a todo o serviço de Deus e da Confraria”, como se pode ler no primeiro “Compromisso” ou regra fundamental das Misericórdias (1498).

As Misericórdias surgiram assim com a originalidade de serem obra de gente boa e cristã, para atender todas as necessidades dos mais pobres, em verdadeiro espírito de caridade evangélica, com o apoio do rei e no quadro da Igreja. O sentimento naturalmente bondoso dos portugueses, numa época de exaltação religiosa, afirmação nacional e crescimento económico devido à expansão ultramarina, assegurou à iniciativa de D. Leo­nor, secundada por seu irmão o rei D. Manuel I, um êxito surpreendente. No mesmo ano de 1498, além da Misericórdia de Lisboa, foram criadas mais 13; à morte da rainha (1525), as Misericórdias já eram 73; o seu número subiu a 232 no final do século XVI; e hoje, só em Portugal, vão a caminho das 400.



2. As Misericórdias são associações de fiéis canonicamente reconhecidas pela Igreja e por ela apoiadas, o que lhes tem garantido estabilidade e autonomia no meio das mudanças e perturbações dos tempos. Originariamente o seu fim primário é a santificação dos “irmãos”, pelo exercício das diversas ex­pressões da caridade fraterna.

As formas concretas deste exercício têm variado naturalmente com os tempos e as circunstâncias. É admirável verificar como as Misericórdias se têm revelado criativas nas respostas dadas às carências humanas e sociais ao longo dos séculos da sua existência, desde enterrar mortos, remir cativos e tratar leprosos, até recolher idosos, educar crianças e recuperar toxicodependentes, sem esquecer o tradicional cuidar dos doentes em hospitais seus.

As populações, reconhecendo tais benefícios, sempre tiveram as Misericórdias como suas. Nunca faltaram “irmãos” para assumir as responsabilidades da sua gestão e manutenção. E, com os tradicionais cortejos de oferendas, donativos, doações e heranças, dotaram‑nas, em muitos casos copiosamente, de meios financeiros para o digno exercício das suas actividades assistenciais.



3. Esta fidelidade popular, a segurança que lhes advém da ligação à Igreja e o interesse do poder público em com elas resolver boa parte dos mais delicados problemas sociais, têm assegurado às Santas Casas uma extraordinária resistência às vi­cissitudes históricas e sociopolíticas com que várias vezes se têm defrontado.

Assim, resistiram ao liberalismo maçónico dos séculos XVIII e XIX, eivado de ideologia libertária e laicizante, que as feriu na sua alma cristã e que, pelas leis da desamortiza­ção (1861 e 1866), as espoliou de grande parte do seu patrimó­nio. Data deste período (1851) a dissolução da Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que passou a depender do Governo à maneira de serviço do Estado.

Resistiram também ao anti‑clericalismo da I República e às tendências estatizantes do Estado Novo. Resistiram ainda à nacionalização dos seus hospitais em 1974 e 1975, que as privou de uma das suas mais tradicionais actividades.



4. Nesta resistência, sobretudo nos tempos mais recen­tes, é de justiça referir a importância dos Congressos Nacio­nais das Misericórdias Portuguesas. O de 1976, em momento par­ticularmente crítico, deveu‑se à iniciativa do Pe. Dr. Virgílio Lopes, Provedor da Misericórdia de Viseu, que se sentiu apoiado pelo protesto dos Bispos contra a referida nacionalização dos hospitais, exarado no comunicado da Assembleia Plenária de Abril de 1976.

Deste Congresso saíu a União das Misericórdias Portuguesas, instituída para preservar o espírito e defender os direi­tos das Santas Casas, dinamizar e coordenar a sua acção, e assegurar a sua representação. Erecta canonicamente pelo Bispo de Viseu em 1977, que aprovou os seus primeiros Estatutos, viu reconhecida a sua implantação nacional em 1983, pela aprovação dada pela Conferência Episcopal à nova versão estatutária. À União se devem a reanimação de muitas Misericórdias e o fortalecimento da sua posição perante o Estado e a opinião pública.



5. A celebração deste ano jubilar das Misericórdias Portuguesas dá‑nos oportunidade para mais uma vez manifestarmos a nossa solicitude pastoral por elas, dando graças pelo seu passado e procurando que tenham um futuro promissor, na dupla fidelidade às suas origens e às exigências dos novos tempos.

Congratulamo-nos com o aparecimento de novas Santas Casas, fruto do dinamismo apostólico de comunidades cristãs, e com o rejuvenescimento de muitas outras de antiga tradição. Mas não deixam de nos preocupar quer a falta de vitalidade quer o enfraquecimento do espírito de fraternidade cristã e de adesão à Igreja que está a minar por dentro a vida de algumas delas.

As Misericórdias não são meras instituições filantrópi­cas, por muito beneméritas que se afigurem, nem se podem reduzir a satélites das estruturas de segurança social do Estado, mesmo que recebam deste todo o apoio a que têm direito, como aliás outras instituições particulares de solidariedade social. No respeito da sua identidade, vocação e missão eclesiais, elas devem con­siderar‑se expressões organizadas do exercício da caridade pe­lo Povo de Deus em favor dos irmãos necessitados. Têm, pois, o direito e a obrigação de procurar e acatar orientações e apoio, nas linhas da identidade, formação e acção, por parte da Igreja.

Está aqui uma das prerrogativas da sua condição de irmandades ou associações de fiéis que, sem prejuízo da autonomia e responsabilidade próprias, lhes asseguram fidelidade às origens, estabilidade no presente e actualidade no futuro.



6. Sendo tradicionalmente de implantação local ou regional, as Miseri­córdias vivem em geral profundamente enraizadas nas comunida­des cristãs que lhes deram origem. Que estas comunidades cultivem por elas grande estima, traduzindo‑a em colaboração voluntária e diversas formas de apoio. E que os respectivos pastores manifestem neste sentido a sua solicitude pastoral, promovendo o interesse dos fiéis e fazendo‑lhes sentir que a força do seu contributo para a vida das Santas Casas radica na graça do Baptismo e na comunhão eclesial.

É nosso desejo que, na fidelidade aos próprios estatutos por nós aprovados, a União das Misericórdias Portuguesas contribua para que se reavive nas Santas Casas o sentido da sua natureza específica de irmandades vital e canonicamente ligadas ao Bispo diocesano e para que elas sirvam sempre o Povo de Deus e a sociedade em geral com o verdadeiro espírito da caridade cristã que motivou a sua constituição e é a sua razão de ser.



7. A terminar, formulamos alguns votos. Que sejam superadas as deficiências e dificuldades que têm por vezes prejudicado o procedimento fiel das Misericórdias à sua vocação originária. Que, na presente conjuntura sociocultural tão marcada por rápidas mutações, elas dêem provas da criatividade e do dinamismo próprios da caridade cristã, de modo a poderem dar resposta aos apelos das novas e subtis formas de pobreza dos nossos tempos, que vão das situações de marginalidade étnica, social e cultural às dependências físicas, psicológicas e morais. Que elas saibam cuidar do seu rico património artístico e documental, valorizando-o e pondo-o ao serviço da comunidade.

Em nome da Igreja e, podemos dizer, do povo português, agradecemos a quantos têm dedicado o melhor da sua inteligên­cia, coração e trabalho à causa de bem servir os mais carenciados dos irmãos. Convidamos todos os fiéis e demais pessoas de boa vontade a participar connosco nas celebrações jubilares dos 500 anos das Misericórdias Portuguesas. E invocamos sobre elas a bênção da Virgem Maria, que as Santas Casas se habitua­ram a tratar por Senhora da Visitação e Senhora da Misericórdia.



Lisboa, 31 de Maio de 1998

Festa de Nossa Senhora da Visitação e Senhora da Misericórdia

Esclarecimentos sobre as Associações de Fiéis na Igreja

Jornadas de Direito Canónico

As Associações de fiéis na Igreja estiveram no centro das atenções nas XII Jornadas de Direito Canónico, realizadas em Fátima, de 19 a 21 de Abril. Em declarações à Agência ECCLESIA, o Pe. Saturino Gomes, director do Centro de Estudos de Direito Canónico da UCP, salientou que “todos os fiéis têm direito de fundar associações, de nível privado, para apostolado” que ficam sujeitas a aprovação pela autoridade eclesiástica. Nos tempos que correm “têm surgido algumas associações privadas”, o que prova o dinamismo dos leigos ou então de congregações religiosas. Este direito de associação visa a “evangelização, as obras de caridade, o culto e a presença do cristão na sociedade” – disse o Pe. Saturino Gomes. Todos os fiéis podem fundar associações desde que “estejam em comunhão com a Igreja”.
Ao nível do Direito Canónico há dois tipos de associações na Igreja: privadas e públicas. As privadas surgem pela “livre iniciativa dos fiéis” e as públicas são “criadas pela autoridade eclesiástica” com uma “maior proximidade com a hierarquia” – sublinhou. No segundo dia de trabalhos, um dos conferencistas abordou a temática “Associações de Fiéis, a Concordata e o Estado”. Sobre este assunto, o director do Centro de Estudos de Direito Canónico realça que a Concordata “prevê no artigo terceiro que as associações canónicas possam ser reconhecidas civilmente”. Se a autoridade eclesiástica decidir, o bispo diocesano ou a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) podem “participar ao Governo Civil da área que determinada associação é canónica e pede-se o reconhecimento civil” – disse.
Em relação às Misericórdias, o Pe. Saturino Gomes disse que a CEP já emitiu uma declaração onde refere que “as Misericórdias são Associações Públicas na Igreja” apesar de algumas pessoas “não estarem de acordo”. Para o director do referido centro, as “Misericórdias são associações públicas” porque até agora “não foi alterada essa declaração”. As Normas da CEP sobre as associações de fiéis em vigor, Março de 1988, inspiram-se no Código de Direito Canónico e são “uma espécie de directório sobre as mesmas”. Um documento que nos “ajuda a perceber a tipologia das associações e como se governam”.
Para o próximo ano, o Pe. Saturino Gomes adianta que as jornadas de Direito Canónico ainda não têm tema mas provavelmente será “sobre a nova Concordata” ou então “a Vida Consagrada”.

Nacional | Luís Filipe Santos| 23/04/2004 | 15:26 | 2378 Caracteres | 1014 | Código Direito Canónico

Bispos Portugueses põem questão no seu lugar: As Misericórdias são da Igreja

11 Julho 2008 [Nacional]
A submissão das Misericórdias à tutela dos bispos diocesanos é uma das principais reivindicações de vários especialistas em Direito Canónico, que discutiram em Fátima as consequências para a Igreja das novas normas das Associações de Fiéis.
Este tema foi objecto de um encontro organizado quarta-feira pela Universidade Católica, que visou esclarecer as consequências destas normas para a vida quotidiana da Igreja.
Segundo Manuel Saturino Gomes, director do Instituto Superior de Direito Canónico, estas "normas estão de acordo com o Direito Canónico mas também esclarecem mais e aprofundam" as regras que existiam.
Nas novas normas, já homologadas pelo Vaticano, é feita a distinção entre associações de fiéis privadas e públicas, sendo que as Misericórdias ficam classificadas "sem margens para dúvidas" nesta segunda categoria.
"As Misericórdias estão constituídas como associações públicas da Igreja e devem submeter-se às normas próprias do Direito Canónico e da Igreja", pelo que cada instituição deste tipo "terá a intervenção do bispo diocesano para homologação de actos relevantes".
Esta solução põe fim vários conflitos que existem entre Misericórdias e Dioceses, já que muitas irmandades não respondiam perante a autoridade dos bispos em matérias como eleições internas ou gestão do património.
Alguns conflitos chegaram mesmo a ser dirimidos em tribunal, mas com estas novas normas as "regras ficam mais claras" e é definida a autoridade do bispo, defendeu este especialista em Direito Canónico.
"A Igreja tem sempre reafirmado a sua posição em relação às Misericórdias", mas isso não quer dizer que as queira "substituir ou fiscalizar", salientou Saturino Gomes.
No entanto, "sendo associações públicas de fiéis, devem enquadrar o seu espírito eclesial" na estratégia de cada Diocese, acrescentou este docente universitário.
Opinião semelhante tem o Bispo de Aveiro, D. António Francisco dos Santos, que rejeita qualquer tentativa de "condicionar" o trabalho das associações de crentes.
"O objectivo destas normas é reavivar o carisma de cada associação de fiéis", até porque, em muitos casos, "vai-se perdendo o vigor inicial", defendeu o prelado.
Esta posição da Igreja colide com aquilo que tem defendido a União das Misericórdias Portuguesas, que reclama uma maior autonomia perante a hierarquia.
Em causa está a classificação das Misericórdias como associações públicas de fiéis, que as obriga a dependerem hierarquicamente do bispo diocesano, uma regulamentação da Conferência Episcopal Portuguesa que foi ratificada em Abril deste ano.
Em alguns locais, as Misericórdias recusavam responder hierarquicamente perante o bispo diocesano, uma situação geradora de conflitos que agora estão sanados com este diploma que as classifica como associações públicas de fiéis.
Com esta classificação de associações públicas de fiéis, as Misericórdias terão de prestar contas ao bispo, que terá de homologar os corpos gerentes e autorizar qualquer alienação de património.
A partir de agora, segundo o Direito Canónico, os moderadores das misericórdias terão de ser confirmados pelo bispo e não podem "ocupar cargos de direcção em partidos políticos", entre outras incompatibilidades.
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http://www.correiodosacores.net

sexta-feira, 25 de julho de 2008

CARDEAL ANULA ELEIÇÕES DE OEIRAS

O CARDEAL patriarca de Lisboa anulou as eleições para a Santa Casa da Misericórdia de Oeiras, realizadas no final de Março, por terem sido detectadas «várias irregularidades» que «violam as normas canónicas e demais disposições legais».
Segundo o despacho de D. José Policarpo, aque o SOL teve acesso, em causa está o facto de, no mês antes das eleições, terem sido inscritos 1.706 novos associados na Santa Casa de Oeiras, indiciando esta situação uma tentativa de condicionar os resultados do processo eleitoral.
As eleições foram disputadas por duas listas - uma encabeçada pela actual provedora, Eduarda Godinho, deputada municipal do PSD; a outra, por Alberto Luz, assessor na Câmara de Oeiras, e cuja lista incluia a mulher de Isaltino Morais.
Na véspera do acto eleitoral, a provedora decidiu revogar as admissões dos novos irmãos que tinham dado entrada desde Abril do ano passado, impedindo assim que mais de mil pessoas pudessem participar na votação.
Já depois da votação, e após serem conhecidos os resultados finais da eleição (que deu a vitória à actual provedora), Alberto Luz decidiu denunciar ao patriarca de Lisboa a «prática de actos fraudulentos» e a «interferência de movimentos agnósticos, estranhos à Igreja e a esta associação de fiéis» no processo eleitoral da Misericórdia de Oeiras.
D. José Policarpo determinou, entretanto, a anulação das eleições, mantendo todos os órgãos sociais da Santa Casa em gestão e proibindo a admissão de novos irmãos.
Segundo soube o SOL, a provedora escreveu aos associados pedindo que confirmassem os dados constantes da sua inscrição - exigindo bilhete de identidade e comprovativo dea residência indicada na inscrição. O SOL sabe que há situações em que mais de 40 pessoas se inscreveram indicando a mesma morada.
O caso tem estado a agitar o concelho, onde esta eleição ganhou uma dimensão política inesperada. Com a Câmara Municipal sem dinheiro, a Santa Casa pode transformar-se numa fonte de investimentos sociais em Oeiras - tendo em conta que as eleições autárquicas se realizarão no próximo ano.

SOL 19-07-2008

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Santa Casa da Misericórdia de Benavente

Acórdãos STJ Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo: 04B4525

Nº Convencional: JSTJ000
Relator: CUSTÓDIO MONTES
Descritores: IGREJA CATÓLICA
CONCORDATA
MISERICÓRDIAS
ADMINISTRAÇÃO
TRIBUNAL COMUM
COMPETÊNCIA MATERIAL

Nº do Documento: SJ200501270045257
Data do Acordão: 27-01-2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 5474/04
Data: 30-07-2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.

Sumário : 1. O art. III da Concordata de 1940 reconhece à Igreja Católica o poder de se organizar livremente de harmonia com as normas do Direito Canónico, e constituir, por essa forma, associações ou organizações, a que o Estado reconhece personalidade jurídica, no condicionalismo aí referido, sendo as mesmas administradas sob a vigilância e fiscalização da competente autoridade eclesiástica.
2. Se tais associações, além de fins religiosos, se propuserem também fins de assistência e beneficência, ficam, na parte respectiva, sujeitas ao regime instituído pelo direito português para estas associações ou corporações, que se tornará efectivo através do Ordinário competente, conforme dispõe o art. IV da referida Concordata.
3. Interpretando este segmento da norma concordatária, o legislador, no DL 119/83, de 25.2, definiu as áreas de tutela do Estado e as da Igreja Católica.
4. No caso das Misericórdias, associações de fiéis, constituídas na Ordem Jurídica Canónica, cabe ao Ordinário diocesano a aprovação dos respectivos corpos gerentes.
5. Essa aprovação abrange as irregularidades na admissão de "irmãos", bem como as do respectivo processo eleitoral.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


"A", B, C, D, E, F, G, H, I e J, todos membros da Santa Casa da Misericórdia de Benavente, na providência cautelar que moveram contra esta, interpuseram recurso de agravo do Acórdão da Relação de Lisboa, proferido nos autos, que, para além do mais, negou provimento ao agravo por eles interposto, confirmando a decisão da 1.ª instância que julgou o tribunal incompetente em razão da matéria.
Terminou as suas alegações com as seguintes

Conclusões

1. A Mm.ª Juíza do Tribunal "a quo" não se pronunciou sobre a competência do tribunal para apreciar o primeiro pedido formulado pelos recorrentes, o da anulação da deliberação tomada em Reunião da mesa Administrativa da recorrida, realizada no dia 16 de Outubro de 2003, omitindo absolutamente, quanto a este pedido, qualquer decisão;

2. A Mm.ª Juíza "a quo" cingiu a sua decisão de se considerar absolutamente incompetente em razão da matéria, apenas quanto ao segundo pedido formulado pelos Recorrentes, o da anulação das deliberações tomadas na Reunião da Assembleia Geral do dia 21 de Novembro de 2003.

3. Os dois pedidos em causa são autónomos e distintos entre si e requerem um conhecimento separado e cumulativo. Não alternativo.

4. Ainda que os dois pedidos formulados pelos Recorrentes estejam numa relação de prejudicialidade entre si, é precisamente a análise do primeiro pedido (em relação ao qual a Mm.ª Juíza "a quo" não se pronunciou) que prejudica a análise do segundo.

5. Pelo que, quando a Mm.ª Juíza "a quo" se pronunciou sobre a competência do Tribunal, deveria tê-lo feito em relação a ambos os pedidos e não apenas em relação a um só pedido.

6. Já que, não se pode extrair, da decisão ora recorrida, a conclusão de que o Tribunal se considerou também incompetente para conhecer do primeiro pedido formulado pelos Recorrentes.

7. Donde se retira que o Tribunal "a quo" não especificou, como devia, os fundamentos de facto e de direito que justificam a sua decisão, ou seja, em relação aos factos subjacentes aos dois pedidos formulados, não os separou, diferenciou ou especificou, a fim de se poderem distinguir e sobre eles assentar o regime jurídico adequado, em suma, não apreciou a competência para conhecer de todas as questões levantadas pelos Recorrentes.

8. Mais do que ausência absoluta de motivação, existe por parte do Tribunal "a quo" ausência absoluta de decisão quanto a um dos pedidos.

9. Por outro lado, o Tribunal "a quo"decidiu mal ao declarar-se absolutamente incompetente em razão da matéria para conhecer das irregularidades respeitantes à eleição dos corpos gerentes da Recorrida, com o fundamento de que se trata de matéria da exclusiva competência do Ordinário Diocesano, conforme dispõem os art.s 48.º e 49.º do DL n.º 119/83, de 25/02.

10. Aqueles preceitos legais apenas se devem aplicar às Instituições de cariz exclusivamente religioso, o que não é o caso da Recorrida, uma Irmandade da Santa Casa da Misericórdia que se encontra equiparada às Instituições de Solidariedade Social exactamente porque tem como objectivos primordiais fins ligados à acção social

11. As Instituições com objectivos marcadamente sociais embora, também, de cariz religioso, como é o caso da Recorrida, não deverão ser tuteladas pelo Ordinário Diocesano, visto que esta tutela não contempla o poder de verificação e de anulação de actos irregulares e/ou ilegais, o qual é próprio dos Tribunais, no caso em apreço, dos Tribunais Comuns por força das regras gerais sobre a competência material dos Tribunais.

12. A tutela do Ordinário Diocesano é, aqui, apenas uma tutela de vigilância do cumprimento dos princípios que regem este tipo de Instituições.

13. A eleição dos corpos gerentes das Misericórdias, Instituições similares às de Solidariedade Social, é um acto que não diz respeito apenas à vida interna da Instituição, visto que se repercute na relação desta com os associados e com terceiros que beneficiam da sua acção social, pelo seu modo de gestão e regular funcionamento;

14. Porque os fins deste tipo de Instituições são essencialmente de interesse público, cabe ao Estado exercer sobre elas a sua tutela e esta só por meio dos Tribunais pode ser efectivada;

15. A eleição em causa padece de muitos e graves vícios, que não se cingem apenas a violações do estatuto da Recorrida, mas também a violações que poderão indiciar a prática de crimes, exigindo-se, assim, uma intervenção da tutela do Estado, o único capaz de responder a este tipo de questões;

16. Ou seja, os pedidos formulados pelos Recorrentes, incluindo a anulação das irregularidades da eleição dos corpos gerentes, não se cingem a um mero controlo da vida interna da Recorrida. Antes dizem respeito a actos de interesse público, que se manifestam na relação com os associados e com os beneficiários da Instituição devendo, em consequência ser o Estado, através dos Tribunais, a fiscalizá-los e a tutelá-los.

17. Em suma, a Mm.º Juíza ao ter decidido da forma que decidiu, violou, entre outros, o disposto no art. 668.º, n.º 1, als. b) e d) e ainda o disposto nos art.s 7.º, do DL n.º 519-G2/79, de 29/12,98.º, al. b), do DL 119/83, de 25/02, e 66.º e 67.º do Código de Processo Civil.

18. Bem como, decidindo como decidiu, o Tribunal da Relação ao negar provimento às pretensões dos Recorrentes e confirmando a decisão do Tribunal "a quo" viola todos os supra citados preceitos legais.

Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, confiando como sempre no douto suprimento de V. Exs. Senhores Juízes Conselheiros, dado o reduzido mérito destas alegações, deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, declarar-se nula a douta decisão recorrida.

Caso assim não se entenda, devem V. Ex.as, ainda assim, revogar a douta decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que declare o Tribunal "a quo" competente em razão da matéria.

Contra alegou a recorrida, em defesa da decisão impugnada.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

Matéria de facto considerada pelo Acórdão recorrido, face ao alegado pelos recorrentes na P.I.:

1. Os requerentes instauraram contra a requerida "procedimento cautelar comum" formulando o seguinte
Pedido:

"Ser a requerida intimada, na pessoa do Sr. Presidente da Mesa da Assembleia Geral, no sentido de se abster de dar posse aos membros da lista B, de os investir nos respectivos cargos, sob pena de se correr o grave risco de pessoas não habilitadas, nem legitimadas para os cargos, praticarem actos lesivos da boa gestão e administração do património da Instituição" - posse marcada para o dia 2.1.04.

2. Como fundamento desse pedido, alegaram que:
a. A requerida é uma instituição constituída na Ordem Canónica, para satisfação de carências sociais, nas variadas valências, prestando apoio domiciliário, centro de dia, internamento de idosos e assistência médica;
b. A deliberação de 16.10.2003, tomada na reunião da mesa da requerida, é ilegal, e por isso anulável, porquanto admitiu 16 elementos como "irmãos", sem cumprir os requisitos legais, quanto à forma de apresentação das propostas e ao método da sua aprovação;
c. No dia 21 de Novembro de 2003, realizou-se uma reunião da assembleia-geral da requerida, com vista à eleição dos seus corpos gerentes;
d. Tal reunião decorreu de forma irregular com violação do estatuto da requerida (Compromisso), o que determina a anulação dessa reunião;
e. As deliberações tomadas na referida reunião de 2 de Novembro enfermam dos seguintes vícios:
» Falta de anúncio da convocatória no jornal local;
» Falta de lista de presenças donde conste a discriminação dos irmãos presentes e dos irmãos representados na votação d credenciais;
» Participação na reunião da assembleia-geral de "irmãos" ilegalmente admitidos por violação do Compromisso, facto que é impeditivo da aquisição por estes de todos os direitos sociais, incluindo os de serem eleitos e os de eleger;
»Admissão à votação da lista B, que incluía como candidatos dois membros que não reunia os requisitos de elegibilidade;
» Desaparecimento do processo eleitoral, após o encerramento dos trabalhos da assembleia-geral, o que suscita fundada desconfiança de que o resultado eleitoral terá sido viciado;
» Um dos membros efectivos eleito para a mesa da assembleia, integrado na lista B, é filho de outro membro efectivo eleito para a mesa administrativa, o que os impede de exercer as respectivas funções, gerando a incapacidade legal de ambos os órgãos e a sua perda de independência e a consequente paralisação da instituição.
Para decidir a questão da incompetência material do tribunal, o Acórdão da Relação considerou ainda que

3. A Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Benavente, abreviadamente denominada Santa Casa da Misericórdia de Benavente, ora requerida, é uma associação de fiéis, fundada em 1232, constituída da Ordem Jurídica Canónica para satisfação de carências sociais e para a realização de actos de culto católico, de harmonia com o seu espírito tradicional, informado pelos princípios da doutrina e da moral cristãs, conforme se consigna no n.º 1 do artigo 1.º do respectivo "Compromisso" (estatutos) constantes de fls. 119 e segts.
4. Segundo o n.º 3 do art. 1.º do referido "Compromisso", a aquisição da personalidade jurídica civil da Irmandade e o seu reconhecimento como instituição privada de solidariedade social são operados mediante participação escrita da sua erecção canónica, feita pelo Ordinário diocesano aos serviços competentes do Estado;
5. E nos termos plasmados no n.º 4 do mencionado artigo 1.º, em conformidade com a natureza que lhe provém das sua erecção canónica, a Irmandade está sujeita ao Ordinário diocesano, de modo similar ao das demais associações de fiéis;
6. De acordo com o art. 26.º, 1 do sobredito "Compromisso", os corpos gerentes da irmandade são a assembleia geral, a mesa administrativa e o definitório ou conselho fiscal;
7. Todos esses corpos são eleitos por períodos de três anos civis (n.º 2 do art. 26.º), nas condições e termos estabelecidos nos arts. 53.º a 56.º do mesmo "Compromisso".
O direito

Antes de mais, cumpre delimitar o objecto do recurso.

Embora balizado pelas conclusões, deve referir-se que este Supremo Tribunal apenas versará sobre a questão da competência material porque, em principio, o recurso de agravo na 2.ª instância apenas é admissível no contexto do art. 754.º, 2 do CPC.

A lei apenas excepciona, para além dos casos referidos no n.º 3 (1) do art. 678.º e na al. a) (2) do n.º 1 do art. 734.º, o caso dos autos, previsto no citado art. 678.º, n.ºs 2 (3).

As demais questões, a ter provimento o agravo, não são da competência do Supremo Tribunal de Justiça, bem como o agravo interposto pela requerida cujo conhecimento só não ocorreu por ter ficado prejudicado pela decisão ora agravada, como se vê da parte final do acórdão em causa.

Por outro lado, os recorrentes aludem a dois pedidos mas o pedido formulado é apenas um, como acima se deixou dito: "ser a requerida intimada, na pessoa do Sr. Presidente da Mesa da Assembleia Geral, no sentido de se abster de dar posse aos membros da lista B, de os investir nos respectivos cargos, sob pena de se correr o grave risco de pessoas não habilitadas, nem legitimadas para os cargos, praticarem actos lesivos da boa gestão e administração do património da Instituição" - posse marcada para o dia 2.1.04.

Não se conhecerão, por isso, as primeiras 8 conclusões que respeitam a uma alegada omissão de pronúncia.

A questão, pois, a decidir consiste em saber se o tribunal comum é o competente em razão da matéria para conhecer do pedido formulado, em face da causa de pedir que o sustenta.

No Acórdão sob análise negou-se provimento ao agravo e confirmou-se a decisão recorrida que havia declarado incompetente o tribunal em razão da matéria, por considerar que a questão da regularidade das eleições cabia em exclusivo ao Ordinário diocesano, absolvendo a requerida da instância.

E pensamos que a decisão ora impugnada fez correcta aplicação do direito.

Apelando aos cânones 298.º, 299.º, 304.º §1., 312.º §1 e 322§2 do Código de Direito Canónico (CDN), aludiu-se à possibilidade de os fiéis poderem, por meio de convénio privado, constituírem associações para promover o culto ou a doutrina cristã, ou outras obras de apostolado.., o exercício de obras de piedade ou de caridade; à necessidade de serem dotadas de estatutos que determinem o objectivo social da associação, o seu modo de agir, bem como o regime e condições necessárias para a elas pertencer; que os estatutos respectivos devem ser aprovados pela autoridade eclesiástica.

Aludiu também ao disposto na 2.ª parte do art. IV da Concordata de 1940 (4), concluindo, como Quelhas Bigote, citado no Ac. do STJ de 11.7.85 (5), que "incumbe ao ordinário diocesano organizar e dirigir a vida assistencial no ponto de vista económico e financeiro das associações segundo as leis que o Estado para o efeito promulgue".

Por fim, analisou o DL n.º 119/83, de 25.2, à luz do espírito que presidiu à mencionada Concordata, concluindo que a tutela do Estado definida nos art.s 32.º e seguintes, não se estende às eventuais irregularidades que envolveram o processo eleitoral da requerida, por tal competência pertencer ao Ordinário diocesano, nos termos do art. 48.º do mencionado Diploma Legal.

Para confirmar o Acórdão, bastaria remeter para a fundamentação aí expendida, no contexto do art. 713.º, 5 do CPC.

Teceremos, no entanto, breves considerações, em ordem a robustecer o entendimento sustentado.

"Segundo o critério da exclusividade,(6) a acção deve ser proposta em Portugal quando os tribunais portugueses sejam competentes para a apreciação da causa (artºs 65.º, 1, b) e 65.º-A). A competência internacional resulta, assim, da coincidência com as regras de competência exclusiva constantes do art.65.º-A".

E, segundo o art. 65.º-A, (7) "sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos e leis especiais, os tribunais portugueses têm competência exclusiva para c) as acções relativas à apreciação da validade do acto constitutivo ou ao decretamento da dissolução de pessoas colectivas ou sociedades que tenham a sua sede em território português, bem como à apreciação da validade das deliberações dos respectivos órgãos".

À face destes normativos e da Concordata de 1940, firmada entre o Estado Português e a Santa Sé, nenhum conflito se levanta acerca da competência dos tribunais Portugueses, até por a matéria em análise nestes autos não estar reservada para o tribunais eclesiásticos, conforme se vê do art. XXV dessa convenção. (8)

Aliás, ninguém levantou esta questão nem ela se suscita, por, no caso, não haver qualquer concorrência de jurisdições (9) .

A questão dos autos tem a ver, como acima se disse, com a competência do tribunal em razão da matéria e prende-se com a interpretação do art. IV, parte final da Concordata/1940, em conjugação com o disposto no art. 48.º do DL 119/83, de 25.2.

Como se diz no preâmbulo da Concordata, as partes visaram "concluir entre si uma solene Convenção que reconheça e garanta a liberdade da Igreja e salvaguarde os legítimos interesses da Nação Portuguesa"

Daí que, no art. III se reconheça à Igreja o poder de se organizar livremente de harmonia com as normas do Direito Canónico, e constituir por essa forma associações ou organizações a que o Estado reconhece personalidade jurídica, bastando que, depois de canonicamente erectas, seja feita participação escrita à Autoridade competente pelo Bispo da diocese, onde as mesmas tiverem a sua sede.

Essas associações ou organizações "administram-se livremente sob a vigilância e fiscalização da competente Autoridade eclesiástica". (10)

"Se, porém, além de fins religiosos, se propuserem também fins de assistência e beneficência em cumprimento de deveres estatutários ou de encargos que onerem heranças, legados ou doações, ficam, na parte respectiva, sujeitas ao regime instituído pelo direito português para estas associações ou corporações, que se tornará efectivo através do Ordinário competente e que nunca poderá ser mais gravoso do que o regime estabelecido para as pessoas jurídicas da mesma natureza". (11)

Sobre a matéria em questão, ensina Marcelo Caetano, (12). que o princípio é este: se as associações ou institutos religiosos têm por "fim o exercício de actividades especificamente religiosas, são estranhas à Administração Pública"; se se propuserem "também fins de assistência ou de beneficência,".em tal hipótese, e dada a coincidência destes fins com as atribuições da Administração Pública, aquelas associações e estes institutos ficam sujeitos ao regime legal das pessoas colectivas de utilidade pública administrativa, sem prejuízo da sua autonomia e da disciplina e espírito religiosos que os informam (lei da liberdade religiosa, base XIV, e C. Adm., arts. 453.º e 454.º"

Apesar de frisar bem que, "quanto à actividade assistencial" tais associações ficam sujeitas ao "regime comum" e, consequentemente, à inspecção e tutela administrativas", Marcelo Caetano, (13) opina: "".parece que não pode deixar de lhes ser aplicável a doutrina Concordatária, de recepção do direito canónico não apenas quanto ao reconhecimento mas também relativamente ao regime de funcionamento, nem pode deixar de se atender ao fim principal dos estatutos. Quanto à actividade assistencial, essa, nos termos também da Concordata e das leis do Estado, fica sujeita à inspecção e tutela administrativa"

Também José António Martins Gigante (14) diz que "as associações canonicamente erectas reconhecidas pelo Estado, se, além dos fins religiosos, se propuserem outros fins de assistência ou beneficência em cumprimento de deveres estatutários ou de encargos que onerem heranças, legados ou doações por elas aceites, ficam sujeitas ao regime instituído pelo Direito Português para estas associações"

Mas logo a seguir refere que "os institutos de assistência ou beneficência fundados, dirigidos ou sustentados por associações religiosas ficam sujeitos ao regime legal dos restantes institutos de utilidade local de fins análogos, sem prejuízo da disciplina e espírito religiosos que os informam".

Por outro lado, Pedro Lombarda e Juan Ignacio Arrieta (15) escrevem: "indica-se o âmbito jurídico da igreja servindo-se da matéria jurídica. Omitiu-se, em contraposição com o que o c. 1553 CIC 17 estabelecia, toda a referência ao privilégio do foro e às chamadas causas de foro misto, que se regiam pelo critério da prevenção. Com isto prende-se a destrinçar a própria zona jurisdicional da igreja das correspondentes às comunidades políticas, em cujos territórios e sobre cujos cidadãos também desenvolve a sua actividade"; nas coisas exclusivamente espirituais, "não têm que surgir conflitos com o Estado" mas "nas coisas anexas às espirituais, de tanta incidência sobretudo no campo patrimonial, não deixarão de se propor esses conflitos, tão pouco poderão evitar-se quando o Estado, invocando a plenitude do seu ordenamento, deseje indevidamente invadir zonas jurisdicionais que pertençam ao âmbito religioso". (16)

Ora, no caso dos autos, sendo a requerida "uma Associação de Fiéis, constituída na Ordem Jurídica Canónica, para a satisfação de carências sociais e para a realização de actos de culto católico, tudo de harmonia com o seu espírito tradicional, informado pelos princípios da doutrina e da moral cristãs" (17), ocorre resolver o conflito que se suscita nesta questão de foro misto, e que consiste em saber se a matéria da regularidade das eleições para os corpos gerentes da requerida cabe aos tribunais ou se cabe em exclusivo ao Ordinário diocesano, como se decidiu no Acórdão sob recurso.

O Dec. Lei n.º 119/83, de 25.2 (18) "contém essencialmente normas respeitantes à constituição, modificação, extinção e organização interna das instituições, bem como a enunciação dos poderes de tutela atribuídos ao Estado".

No preâmbulo, a que este trecho pertence, diz-se, no n.º 5, que "de entre as alterações introduzidas no Estatuto, cumpre destacar: a) a autonomização, em capítulo próprio, das normas que integram o regime especial das organizações religiosas, com uma secção especial para as pessoas da igreja católica, obtendo-se assim uma maior coerência desse regime e evitando-se alguma indeterminação (19) resultante da mera remissão para as disposições da Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa".

Há, pois, aqui uma preocupação do Estado Português em distinguir, nas instituições particulares de solidariedade social da igreja católica, à luz da Concordata e do direito canónico e sua interpretação, o que é de natureza espiritual e o que é de natureza temporal.

E essa distinção vem consagrada na Secção III do capítulo I, arts. 32.º a 36.º, quanto à tutela do Estado e, por outro lado, na Secção II do capítulo II, arts. 44.º a 51, a que contém as "disposições especiais para as instituições da igreja católica".

No art. 32.º enumeram-se os actos sujeitos a autorização dos serviços competentes, todos relacionados com bens materiais.

No art. 33.º estatui-se que, embora os orçamentos e as contas (20) das instituições sejam aprovados pelos corpos gerentes, nos termos estatutários, carecem de visto dos serviços competentes - n.º 1.

O art. 34.º define os termos da fiscalização do Estado: "os serviços poderão ordenar a realização de inquéritos, sindicâncias e inspecções às instituições e seus estabelecimentos".

Por fim, cabe ainda referir, no que toca à economia da presente decisão, que o art. 35.º alude à destituição dos corpos gerentes, "quando se verifique a prática reiterada pelos corpos gerentes de actos de gestão prejudiciais aos interesses das instituições, os órgãos de tutela poderão pedir judicialmente a destituição dos corpos gerentes", regulando o respectivo processo; e o art. 36.º permite ao ministério público requerer, com dependência do procedimento referido no art. anterior, a suspensão dos corpos gerentes e a nomeação de um administrador judicial, quando se verifique a "necessidade urgente de salvaguardar interesses da instituição, dos beneficiários ou do Estado".

Por seu turno, o art. 48.º define a "tutela da autoridade eclesiástica" do seguinte modo: "sem prejuízo da tutela do Estado, nos termos do presente diploma, compete ao ordinário diocesano, ou à Conferência Episcopal, respectivamente, a orientação das instituições do âmbito da sua diocese, ou de âmbito nacional, bem como a aprovação dos seus gerentes e dos relatórios e contas".

Cabe, pois, ao Ordinário diocesano a orientação das instituições na sua diocese, bem como a aprovação dos seus corpos gerentes e dos relatórios e contas.

Apesar dessa tutela da autoridade eclesiástica (o Ordinário diocesano), o Estado reservou para si, quanto às contas, a seguinte tutela: "carecem de visto dos serviços competentes".

No entanto, quanto à aprovação dos gerentes dessas associações, nenhuma tutela reservou para si o Estado, o que resulta também, e é reafirmado, ao se regularem os casos da destituição destes e da suspensão dos corpos gerentes, sem que os casos previstos contendam com a sua eleição ou aprovação.

Aí, trata-se de matéria da vida interna da associação, sem repercussão no fim assistencial, ou, pelo menos, assim o entendeu o legislador.(21)

E essa "aprovação" dos corpos gerentes abrange a verificação da regularidade da sua eleição porque doutra forma, tal acto limitar-se-ia "à aposição de uma chancela", sendo certo que tais actos "não respeitam" ao fim de assistência ou de solidariedade social que a instituição se propõe realizar, mas à sua vida interna", como acertadamente se refere no citado Ac. do STJ de 11.7.85.

E compreende-se esta separação entre as vertentes social e religiosa, no caso em análise, porque a selecção dos irmãos depende da verificação das condições exigidas pelo art. 7.º do Compromisso (22), que, naturalmente, não podem ser sindicadas pelos tribunais mas, antes, pelo Ordinário diocesano, designadamente a que vem descrita na al. d) desse normativo. (23)

Uma das razões fundamentais porque se impugnam as deliberações de 16.10.03 e de 21.11.03 prende-se com a admissão de 16 irmãos "sem cumprir os requisitos legais, quanto à forma de apresentação das propostas e ao método da sua aprovação", na primeira e, a participação destes no colégio eleitoral, na segunda.

Questões, que, como se deixa exposto, apenas podem ser sindicadas pela autoridade eclesiástica e, consequentemente, as violações invocadas nas duas deliberações.

É certo que, como se diz no Acórdão sob recurso, as Misericórdias se regem pelo respectivo "Compromisso" quanto à convocação, funcionamento e competência deliberativa, e, nos casos omissos, pelo regime previsto nos arts. 12.º a 21.º, por remissão do art. 69.º, 1 do EIPSS (24).

No entanto, esse n.º 1 do art. 69.º não deixa, a final, de excepcionar "as sujeições canónicas que lhe são próprias", ressalvando outrossim o n.º 3 da aplicação do preceituado no n.º 1 "tudo o que especificamente respeita às actividades estranhas aos fins de solidariedade social".

Assim interpretado o contido na parte final do art. IV da Concordata, pode concluir-se que, no caso dos autos, quando a lei (25) diz que cabe ao Ordinário diocesano a "aprovação" dos corpos gerentes da associação, significa que é a ele que cabe também a apreciação das eventuais irregularidades ocorridas na sua eleição e não ao tribunal. (26)

A este caberá a resolução dos problemas que não sejam da tutela da igreja católica, como sejam os casos graves previstas no art. 63.º do EIPSS, como refere o art. 32.º, 3 do Compromisso da requerida, (27) competindo à entidade tutelar comunicar ao ministério público as situações de irregularidade de que tenha conhecimento.

Por outro lado, o caso dos autos não revela matéria integrável no art. 7.º do DL 519-G2/79, que se mantém em vigor. (28)

Assim, o deliberado pelo Acórdão sob recurso está devidamente fundamentado e não merece a crítica que lhe é feita pelos requerentes, pelo que se deve manter.

Decisão

Pelo exposto, nega-se provimento ao agravo, mantendo-se a decisão impugnada.

Custas pelos agravantes.

Lisboa, 27 de Janeiro de 2005
Custódio Montes
Neves Ribeiro
Araújo Barros
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(1) Decisões respeitantes ao valor da causa, dos incidentes ou dos procedimentos cautelares, com fundamento de que o seu valor excede a alçada do tribunal de que se recorre.
(2) Decisão que ponha termo à causa.
(3) Violação das regras de competência internacional, em razão da matéria ou da hierarquia ou a ofensa de caso julgado, independentemente do valor da causa.
(4) É esta a aplicável porque a actual apenas entrou em vigor em 18.12.04.
(5) Como ensina Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre o Novo Processo civil, 2.ª ed., pág. 113.
(6) CPC.

(7) BMJ 349, 436.
(8) Apenas se reserva aos tribunais e repartições eclesiásticas competentes "o conhecimento das causas concernentes à nulidade do casamento católico e à dispensa do casamento rato e não consumado".
(9) Como diz Ancelmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. II, pág. 2, «se tanto a causa de pedir, como o pedido e as partes mantêm tão somente relação com o território nacional, não se levantará, como é óbvio, qualquer questão de concorrência de jurisdições».
(10) Art. IV 1.ª parte.
(11) Art. IV, 2.ª parte e sublinhados nossos.
(12) Manual de Direito Administrativo, Vol. I pág. 410 e sublinhados nossos.
(13) Ob. cit., pág. 412.
(14) Instituições de Direito Canónico, Vol. I, 3.ª ed., pág. 628.
(15) Em anotação ao cânone 1401 do Cód. de Direito Canónico Anotado, 1984, pág. 861 que estatui: "por direito próprio e exclusivo, a igreja conhece: 1.º das causas que respeitam a coisas espirituais ou com estas conexas"
(16) AA. e Ob. cits., pág. 862.
(17) Art. 1.º do "Compromisso da Santa Casa da Misericórdia de Benavente".
(18) Que aprova o Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social (EIPSS).
(19) Sublinhado nosso.
(20) Que não estão sujeitas a julgamento do Tribunal de Contas - n.º 2.
(21) No prosseguimento dos objectivos traçados no n.º 5, a) do preâmbulo, acima transcrito: coerência do regime e evitar indeterminação resultante da mera remissão para as disposições da Concordata.
(22) Designadamente a da al. d) do n.º 1: "aceitem os princípios da doutrina e da moral cristãs que informam a Instituição e, consequentemente, não hostilizem, por qualquer meio, designadamente pela sua conduta social ou pela sua actividade pública, a religião Católica e os seus fundamentos."
(23) Essas condições de admissibilidade dos irmãos vêm ressalvadas no art. 70.º, 1 e 2 do DL 119/83.
(24) Por remissão do art. 69.º, 1 do DL 119/83.
(25) Art. 48.º do EIPSS.
(26) Em sentido contrário decidiu o Ac. da Rel de Évora, e 23.2.89, CJ XIV, TI, pág. 253, mas nela se omitiu a expressão da parte final do art IV da Concordata que é do seguinte teor "que se tornará efectivo através do Ordinário competente" e que, no caso, é decisivo.
(27) Alude-se às duas alíneas do n.º 3 do art. 53.º, do DL 519-G2/79, de 29.12, a que corresponde, no DL 119/83, o art. 63.º, 1 , a) e b).
(28) Ver art. 98.º, b) do DL 119/83.

Santa Casa da Misericórdia de Benavente

Acórdãos STJ Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo: 05B116

Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERREIRA DE ALMEIDA
Descritores: MISERICÓRDIAS
ASSOCIAÇÃO RELIGIOSA
SÓCIO
ADMISSÃO
ORGÃO SOCIAL
ELEIÇÃO
SUSPENSÃO DE DELIBERAÇÃO SOCIAL
COMPETÊNCIA CONTENCIOSA

Nº do Documento: SJ200502170001162
Data do Acordão: 17-02-2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 7046/04
Data: 14-10-2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.

Sumário : I. O acto da Mesa Administrativa de uma Misericórdia relativo à admissão, filiação ou adesão de novos irmãos como membros efectivos da Irmandade respeita exclusivamente à vida interna ou inter-orgânica da instituição em causa, cuja fiscalização e tutela competem, por isso, ao "Ordinário Diocesano".
II. Não cabe, assim aos tribunais indagar da idoneidade ou da inidoneidade dos candidatos à filiação nesse instituto eclesial, e muito menos sindicar a "legalidade", ou sequer a oportunidade ou a conveniência, do acto de apreciação (positiva ou negativa) dessas candidaturas ou pedidos de filiação/admissão.


III. E daí a incompetência dos tribunais comuns "ratione materiae" para a sindicância da questionada legalidade e, consequentemente, para a apreciação de providência cautelar de suspensão da decisão da mesa administrativa - órgão executivo da Misericórdia - sobre a admissão de novos irmãos.


Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. "A" e B requereram contra a Mesa Administrativa da Santa Casa da Misericórdia de Benavente, com data de 10-5-04, providência cautelar solicitando que a deliberação da Mesa Administrativa de 13 de Abril de 2004, que aprovou a entrada de 58 novos "irmãos", fosse suspensa até decisão final proferida na acção ordinária em que se discutia a validade da deliberação da Mesa Administrativa de 16 de Outubro de 2004. (ou 2003).

Alegaram, em suma, que um grupo de "irmãos" intentou procedimento cautelar e a respectiva acção principal, pondo em causa as deliberações de 16 de Outubro de 2003, que admitiu 16 novos elementos, e de 21 de Outubro de 2003, que teve em vista a eleição dos seus corpos gerentes, por serem ilegais, e por isso anuláveis.

A acção principal e providência cautelar encontram-se em fase de recurso, além de que existem ainda dois processos-crime a correr termos, pelo que a Mesa em funções deveria apenas exercer actos de gestão corrente, nos quais não se enquadra a deliberação aqui posta em causa ao aprovar a entrada de 58 "irmãos".

2. O Mmo Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Benavente, por despacho datado de 12-5-04 (fs. 23), julgou o tribunal incompetente em razão da matéria, absolvendo, em consequência, a requerida da instância, por considerar a matéria em apreço do foro exclusivo do Ordinário Diocesano que não dos tribunais comuns.

3. Inconformados, agravaram os requerentes, mas o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 14-10-04, negou provimento ao recurso.

4. De novo irresignados, desta feita com tal aresto, dele vieram os requerentes agravar para este Supremo Tribunal, em cuja alegação formularam as seguintes conclusões:

1ª- O Tribunal "a quo" não especificou, como devia, os fundamentos de facto e de direito que justificam a sua decisão, ou seja, em relação aos factos subjacentes ao pedido formulado, não os separou, diferenciou ou especificou, a fim de se poderem distinguir e sobre eles assentar o regime jurídico adequado, em suma, não apreciou a competência para conhecer de todas as questões levantadas pelos recorrentes;

2ª- Mais do que ausência absoluta de decisão quanto a questões alegadas pelos recorrentes e que, a serem apreciadas, conduziriam a decisão diferente;

3ª- Por outro lado, o Tribunal "a quo" decidiu mal ao declarar-se absolutamente incompetente em razão da matéria para conhecer das irregularidades respeitantes à admissão dos 58 novos Irmãos pela Mesa Administrativa, com o fundamento de que se trata de matéria da exclusiva competência do Ordinário Diocesano, conforme dispõem os artigos 48° e 49° do DL n° 119/83, de 25/02;

4ª- As instituições com objectivos marcadamente sociais embora, também, de cariz religioso, como é o caso da recorrida, a Mesa Administrativa da Santa Casa da Misericórdia de Benavente, não deverão ser tuteladas pelo Ordinário Diocesano, visto que esta tutela não contempla o poder de verificação e de anulação de actos irregulares e / ou ilegais, o qual é próprio dos tribunais, no caso em apreço, dos tribunais comuns por força das regras gerais sobre a competência material dos tribunais;

5ª- Em suma, a Mma Juíza, ao ter decidido da forma que decidiu, violou, entre outros, o disposto no artigo 668°, n° 1, als. b) e d) e ainda o disposto nos artigos 7° do DL 519-G2/79, de 29/12, 98°, al. d), do DL 119/83, de 25/02 e 66° e 67° do Código de Processo Civil;

5. Contra-alegou a recorrida sustentando a correcção do julgado, formulando, por seu turno, as seguintes conclusões:
1ª- Delimitando os recorrentes, nas conclusões, o objecto do recurso ao despacho de 1ª instância, e não sendo possível, in caso, o recuso da decisão da 1ª instância para o Supremo Tribunal de Justiça, são ineptas as alegações oferecidas, pelo que devem as mesmas serem liminarmente indeferidas;

2ª- A questão prévia arguida pelos recorrentes é alheia à matéria do recuso, e como tal não deverá ser conhecida no douto acórdão que sobre o mesmo recair, acrescendo que, ao contrário do que estes alegam, a tomada de posse dos novos corpos gerentes da recorrida não violou qualquer comando judicial;

3ª- Não é impugnável uma deliberação de um órgão executivo de uma pessoa colectiva através de acção directa para os tribunais judiciais sem que, previamente, ela seja feita para a Assembleia Geral, nos termos do art. 412 do Código das Sociedades Comerciais, pelo que a utilização do procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais pelos recorrentes, para suspender uma deliberação da Mesa Administrativa da recorrida, deverá levar à improcedência do pedido;

4ª- Como bem refere o douto acórdão recorrido, o Tribunal de 1ª instância, ao declara-se incompetente para conhecer do pedido de suspensão da deliberação da Mesa Administrativa, em razão da matéria, não tinha de se pronunciar sobre os fundamentos daquele pedido, não havendo, por este motivo, omissão de pronúncia nem por parte da 1ª instância, nem por parte da decisão da Relação de Lisboa, a qual igualmente não se pronunciou sobre os fundamentos aduzidos pelos recorrentes em tudo o que foi para além da discussão sobre a competência do tribunal;

5ª- Como bem decidiu o douto acórdão recorrido, os tribunais judiciais são incompetentes, em razão da matéria - artigos 18°, n°1, da L 3/99, de 13/1 e do 66° do CPC - para conhecer do objecto do presente recurso, o que acarreta a absolvição da requerida da instância - artigos 105°, n° 1 e 288°, n° 1, alínea a), do C.P.C.;

Assim, o douto acórdão recorrido, ao confirmar a decisão da 1ª instância, não violou as normas indicadas nas alegações dos requerentes.

6. Colhidos os vistos legais, e nada obstando, cumpre apreciar.

7. Alegadas nulidades do acórdão por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e por omissão de pronúncia - arts. 668 nº 1 alíneas b) e d) e 660, nº 2 do CPC.
Nas conclusões 1ª e 2ª da respectiva alegação, vieram os recorrentes arguir a nulidade da decisão:

- por um lado, porque o tribunal "a quo" não terá especificado, como devia, os fundamentos de facto e de direito que justificaram a sua decisão, ou seja, em relação aos factos subjacentes ao pedido formulado, não os separou, diferenciou ou especificou, a fim de se poderem distinguir e sobre eles assentar o regime jurídico adequado, em suma, não apreciou a competência para conhecer de todas as questões levantadas pelos recorrentes;
- por outro, face à ausência absoluta de decisão quanto a questões alegadas pelos recorrentes as quais, a serem apreciadas, conduziriam a decisão diferente.
Os agravantes não chegaram, porém, a esclarecer se tais vícios são de imputar à decisão de 1ª instância - caso em que o acórdão recorrido teria supostamente incorrido em erro de julgamento, que não em causa invalidante desse aresto - ou se ao próprio acórdão da Relação.
Pelo respectivo texto, essas conclusões parecem apontar para a decisão de 1ª instância, mas então jamais poderiam ser - insiste-se - invalidantes do acórdão recorrido.

E, de qualquer modo, o acórdão em causa não enferma de qualquer das sugeridas nulidades.
Quanto à primeira - ausência de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão - constituem doutrina e a jurisprudência concordantes as de que só uma ausência absoluta de fundamentação, que não uma fundamentação escassa, deficiente, ou mesmo medíocre, pode ser geradora da nulidade das decisões judiciais - conf., por todos o Prof. Alberto dos Reis, in " Código de Processo Civil Anotado, vol V, págs 139-140 e, entre outros, o Ac do STJ de 13-1-05, in Proc 3368/04 - 2ª Sec.
Ora, basta a simples compulsação do teor do acórdão sob apreciação para logo se alcançar o itinerário cognoscitivo e valorativo quanto à aplicação do direito seguido pelos julgadores na emissão do seu juízo jurídico-processual.

A recorrente pode discordar - como realmente discorda - do sentido decisório a final emitido, mas o que não pode é invocar quanto à mesma a violação do dever da respectiva fundamentação suficiente e congruente, que a mesma claramente externa e evidencia.

E, quanto à aventada nulidade por omissão de pronúncia, encontra-se esta espécie de nulidade por aventada «omissão de pronúncia» (artº 668º nº 1, al d), do CPC) directamente relacionada com o postulado no nº 2 do artigo 660º do mesmo diploma - dever o juiz resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação.

Mas este último inciso normativo logo exceptua, também "expressis verbis", aquelas questões "cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras".
Sucede, todavia, que o tribunal se pronunciou sobre a única «questão» que, na oportunidade deveria ter apreciado prioritariamente relativamente mesmo à questão da recorribilidade do acto em apreço: a questão (de ordem pública) da competência do tribunal; tudo o mais constituía mera retórica argumentativa com vista ao reconhecimento do seu direito à invalidação do acto impugnado - fora, pois, do âmbito do agravo porquanto este circunscrito à questão da competência "ratione materiae".

E uma vez decidida tal questão prejudicada ficou, logicamente, a apreciação, sequer perfunctória, quer dos requisitos da procedência da requerida providência, quer da aventada ilegalidade do acto (deliberação) impugnado.
Improcede, pois, a arguição de nulidades do acórdão.

8. Pressuposto processual da competência do tribunal.
Encontra-se em causa a questão da determinação do tribunal competente para apreciação da legalidade da deliberação de 13-4-04 dimanada da entidade requerida e que aprovou a entrada de 58 novos Irmãos.

Seguiram as instâncias na peugada do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11-7-1985, in BMJ nº 349, pág. 432, no qual se entendeu que as Irmandades das Misericórdias constituem associações da Igreja Católica, encontrando-se "qua tale" submetidas à tutela da autoridade eclesiástica,.

E daí a incompetência dos tribunais comuns "ratione materiae" para a sindicância da questionada legalidade e, consequentemente, para a apreciação da providência cautelar a que se reportam os autos.

No Ac. desta 2ª Secção de 4-10-00, in Proc 234/00, não se encontrava em causa um acto de admissão de novos irmãos.
Insistem, entretanto, os agravantes em que a referida exclusividade não se estende às associações católicas que sejam também equiparadas a instituições de solidariedade social, como é o caso da Santa Casa da Misericórdia de Benavente, na medida em que a tutela canónica não contempla o poder de verificação e anulação de actos irregulares ou ilegais, mas que apenas se confina à vigilância do bom cumprimento dos princípios que as regem.

Regem, "prima facie", neste específico âmbito, quer o Código de Direito Canónico - nos termos do qual a Santa Casa da Misericórdia é uma associação destinada a promover a realização de actos de culto católico e dar satisfação a carências sociais (cfr. art. 10º), carecendo os seus estatutos da aprovação pela autoridade competente da Igreja e sujeitos à vigilância da autoridade eclesiástica (cfr. cânone 305, §§ 1° e 2° ) - quer os Estatutos próprios daquela concreta entidade.

Segundo o n° 1 do artº 1 ° do respectivo "Compromisso" (Estatutos) inserto por fotocópia de fs. 92 e ss., a Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Benavente é uma associação de fiéis, fundada em 1232, constituída da Ordem Jurídica Canónica para satisfação de carências sociais e para a realização de actos de culto católico, de harmonia com o seu espírito tradicional, informado pelos princípios da doutrina e da moral cristãs.

No n° 3 desse preceito estatutário estabelece-se que a aquisição da personalidade jurídica civil da Irmandade, bem como o seu reconhecimento como instituição privada de solidariedade social, são operados mediante participação escrita da sua erecção canónica - feita pelo Ordinário Diocesano aos serviços competentes do Estado - acrescentando o n° 4 do artº 1 ° que, em conformidade com a natureza que lhe provém da sua erecção canónica, a Irmandade está sujeita ao Ordinário Diocesano, de modo similar ao das demais associações de fiéis.

No que tange à administração das Misericórdias, o art. 26°, n° 1, do "Compromisso", estipula que os corpos gerentes da Irmandade são a assembleia geral, a mesa administrativa e o definitório ou conselho fiscal, sendo os corpos gerentes eleitos por períodos de três anos civis (cfr. art. 26°, n.° 2), nas condições e termos estabelecidos nos artigos 53° a 56° do mesmo "Compromisso".

A Mesa Administrativa - órgão executivo - é constituída por cinco membros efectivos e três suplentes (art. 38°) sendo apenas válidas as deliberações que forem tomadas com a presença da maioria absoluta dos membros em exercício (art. 42°).

A admissão dos "Irmãos", é feita mediante proposta assinada por dois "Irmãos" estranhos à Mesa Administrativa e pelo próprio candidato, proposta essa que é submetida à apreciação da Mesa Administrativa (cfr. art. 8° do Compromisso).

As associações assim constituídas, de harmonia com o artº 4° da Concordata de 1940 - então em vigor - "... podem adquirir bens e dispor deles nos mesmo termos por que o podem fazer, segundo a legislação vigente, as outras pessoas morais perpétuas, e administram-se livremente sob a vigilância e fiscalização da competente autoridade eclesiástica...", e se estas associações, para além dos fins religiosos, "... se propuserem também fins de assistência e beneficência em cumprimento de deveres estatutários..., ficam, na parte respectiva, também sujeitas ao regime instituído pelo direito português para estas associações ou corporações, que se tomará efectivo através do Ordinário competente, e que nunca poderá ser mais gravoso do que o regime estabelecido para as pessoas jurídicas da mesma natureza".

Tais associações encontram-se sujeitas à vigilância e à dependência da autoridade eclesiástica, nos termos dos cânones 305º e 323º do CDC.

É certo que, conforme decorre do disposto no artº 40° do Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social, aprovado pelo DL 119/83 de 25/2, as organizações e instituições religiosas que, para além dos fins religiosos também desenvolverem actividades enquadráveis no âmbito das prosseguidas pelas pessoas colectivas de solidariedade social, estão, quanto a tais actividades, sujeitas ao regime previsto no referido Estatuto. Mas, tal como dispõe o artº 48° do mesmo Estatuto, "sem prejuízo da tutela do Estado, "compete ao ordinário diocesano, ou à Conferência Episcopal, respectivamente, a orientação das instituições do âmbito da sua diocese, ou de âmbito nacional, bem como a aprovação dos seus corpos gerentes e dos relatórios e contas anuais".

Por sua vez, o artº 69° ainda desse mesmo Estatuto das IPSS, que se reporta ao regime jurídico aplicável, dispõe que às irmandades da Misericórdia "aplica-se directamente o regime jurídico previsto no presente diploma, sem prejuízo das sujeições canónicas que lhes são próprias", ressalvando-se, porém, - e este é o critério decisivo - tudo o que especificamente respeita às actividades estranhas aos fins de solidariedade social " (n°s 1 e 3 da citada norma).

O n° 2 do mesmo preceito legal estabelece que em tudo quanto na secção 2ª do capítulo 3° do mencionado diploma (que versa sobre as irmandades) não se encontre especialmente estabelecido, essas irmandades regular-se-ão pelas disposições aplicáveis às associações de solidariedade social.

Temos, pois, que os institutos e associações que tenham por fim o exercício da actividade especificamente religiosa são estranhos aos fins próprios da administração pública, mas se prosseguirem fins de beneficência ou de assistência, já ficarão sujeitas, nessa parte - mas apenas nessa parte - ao ordenamento jurídico geral instituído pelo Estado para as instituições particulares da mesma índole, sem prejuízo da disciplina e espírito religiosos.

Assim, como refere no sobredito Ac. do STJ de 10-7-85 - que vimos seguindo de perto - sem prejuízo da tutela do Estado, que se manifesta, além de outros modos, através da sua intervenção nos actos discriminados no artº 32° e ss. do Estatuto (aquisição e alienação de bens, empréstimos, realização de inquéritos, sindicâncias e inspecções, destituição dos gerentes por actos reiterados de gestão prejudicial, requisição de bens para utilização em fins idênticos, etc.), as instituições da Igreja Católica - assim se acolhendo as prescrições do Código de Direito Canónico - estão submetidas à tutela da autoridade eclesiástica que, no tocante às que tenham âmbito diocesano, é exercida pelo competente Ordinário, o qual as orienta, aprova os seus corpos gerentes e os relatórios e contas anuais (artigo 48°)".

Ainda na esteira do mesmo aresto, "... se ao Ordinário diocesano cabe, por força da lei a aprovação dos corpos gerentes das Misericórdias, caber-lhe-á também, por necessária inerência, verificar a regularidade da eleição, sob pena de ter de aceitar-se que a sua aprovação haveria de resumir-se à aposição de uma chancela sem qualquer sentido prático e efeito útil' (sic).

Assim, as (pretensas) irregularidades imputadas nos presentes autos à autoria da Mesa na "admissão de novos irmãos" não se situam num domínio em que se imponha o exercício de uma qualquer tutela (pública) do Estado, nem respeitam especifica e directamente à prestação dos fins assistenciais ou de solidariedade social da instituição, como bem se salienta no acórdão recorrido.

Encontra-se em causa, tão-somente, a vida interna ou inter-orgânica da irmandade em causa (relativa à filiação ou adesão de novos irmãos como seus membros efectivos) cuja fiscalização e tutela competem, por força do citado artº 48°, ao "Ordinário Diocesano".

Não cabe aos tribunais indagar da idoneidade ou da inidoneidade dos candidatos à filiação numa dado instituto eclesial (como é o caso de uma Misericórdia), e muito menos sindicar a "legalidade", ou sequer a oportunidade ou a conveniência, do acto de apreciação (positiva ou negativa) dessas candidaturas ou pedidos de filiação/admissão.

Torna-se, aliás, manifesto não subjazer aqui qualquer questão determinante da aplicação do disposto no artigo 7° do DL 519-G2/79, de 29/12, (o qual, mercê da ressalva constante do 98°, alínea b), do Estatuto aprovado pelo DL 119/83, se mantém em vigor), situação que reclamaria, ela sim, a intervenção dos tribunais (estaduais) para a respectiva sindicância.

9. Bem concluíram, por isso, as instâncias pela incompetência material dos tribunais comuns de jurisdição ordinária nos termos dos artigos 18°, n° 1, da L n° 3/99, de 13/1 e do artigo 66° do CPC, para conhecer do objecto da subjacente providência cautelar, pelo que bem absolvida foi da instância a entidade requerida e ora agravada, "ex-vi" do disposto nos artigos 105°, n° 1 e 288°, n° 1, alínea a), do CPC.

10. Decisão:
Em face do exposto, decidem:
- negar provimento ao agravo;
- confirmar, em consequência, o acórdão recorrido.
Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 17 de Fevereiro de 2005
Ferreira de Almeida
Abílio Vasconcelos
Duarte Soares

Santa Casa da Misericórdia do Porto

Acórdãos STJ Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo: 07B723

Nº Convencional: JSTJ000
Relator: JOÃO BERNARDO
Descritores: MISERICÓRDIAS
NATUREZA JURÍDICA
ELEIÇÕES
IMPUGNAÇÃO
COMPETÊNCIA MATERIAL

Nº do Documento: SJ20070426007232
Data do Acordão: 26-04-2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO

Sumário :
1 . A decisão sobre a competência material tomada em procedimento cautelar não tem influência no processo principal.
2 . A Santa Casa da Misericórdia do Porto, como misericórdia e atento o seu compromisso, é uma instituição integrante da ordem jurídica canónica como associação de fiéis pública, que visa – enformada pelos princípios da doutrina e moral cristãs – satisfazer carências sociais e praticar actos de culto católico, tendo, na ordem jurídica civil, a natureza de instituição particular de solidariedade social.
3 . O artigo 41.º, n.º 4 da Constituição não resolve a questão da competência ou incompetência dos tribunais civis para conhecerem da impugnação da eleição dos corpos sociais das misericórdias que prossigam a referida duplicidade de fins.
4 . Abrindo apenas caminho à relevância das Concordatas estabelecidas entre Portugal e a Santa Sé.
5 . As quais, situando-se em plano inferior ao da Constituição da República, se situam em plano superior ao das normas internas do Estado Português.
6 . Do artigo 4.º do teor da Concordata de 1940 resulta a competência do Ordinário ali referido para apreciar o pedido de impugnação dum acto eleitoral duma misericórdia, quer seja invocada a violação do direito canónico, quer a violação do direito português.
7 . Cedendo, por se situarem hierarquicamente abaixo, normas internas portuguesas que disponham em sentido diferente.
8 . Perante a Concordata de 2004, se estiver em causa a violação do direito canónico, será chamada a intervir a autoridade da Igreja, se estiver em causa a violação do direito interno português, recorre-se aos tribunais civis.
9 . Para se saber qual das Concordatas deve ser considerada, interessa a data do acto que se impugna, não relevando a da propositura da acção.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I -
AA, BB, CC e DD instauraram, em 1.2.2005, nas Varas Cíveis da Comarca do Porto, com distribuição à 2.ª Vara, acção declarativa de condenação com processo ordinário, contra:
O Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Santa Casa da Misericórdia do Porto e a Santa Casa da Misericórdia do Porto;

Alegaram, em resumo, que:
As eleições dos corpos sociais da Santa Casa da Misericórdia do Porto, em assembleia geral que teve lugar a 28.11.04, ficaram assinaladas por irregularidades que descrevem e que tornam o acto nulo, ou, no mínimo, anulável.
Além disso, a lista B, que venceu, integra pessoas várias que nunca poderiam ter sido candidatos, pelas razões que enunciam.
Pediram, em conformidade, que se declare a nulidade – ou, subsidiariamente, se decrete a anulação - da deliberação da Assembleia eleitoral de 28 de Novembro de 2004 da Santa Casa da Misericórdia do Porto e, consequentemente, do respectivo acto eleitoral.

II -
Contestando, o Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Santa Casa da Misericórdia do Porto, veio arguir a incompetência do tribunal para apreciar e decidir acerca do objecto desta acção, cuja competência material entende caber ao Ordinário diocesano, nos termos e pelos fundamentos que aduziu.
Sobre esta excepção, pronunciaram-se os AA., pugnando pela sua improcedência, conforme resulta do seu requerimento de fls. 191.

III –
Por decisão de fls. 222 a 230, foi julgada procedente tal excepção e, consequentemente, foram os RR. absolvidos da instância.

IV –
Recorreram os autores e com êxito, porquanto o Tribunal da Relação do Porto concedeu provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e determinando a sua substituição por outra que afirme a competência material do tribunal recorrido.

V –
Agrava para este Supremo Tribunal de Justiça agora a Santa Casa da Misericórdia do Porto.

Conclui as alegações do seguinte modo:

1 - Por força do art. 1º do DL 38/2003, de 8 - 3, passou o art. 65º - A c) do CPC a ter a seguinte redacção: “Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais, os tribunais portugueses têm competência exclusiva para: (…) c) – As acções relativas à apreciação da validade do acto constitutivo ou ao decretamento da dissolução de pessoas colectivas ou sociedades que tenham a sua sede em território português, bem como à apreciação da validade das deliberações dos respectivos órgãos”….
2 - Essa ressalva inicial (também presente no art. 65º do mesmo CPC) resulta do reconhecimento de que o Direito Internacional convencional, uma vez recebido, tem força jurídica superior ao Direito interno ordinário no sistema jurídico português.
3 - Um “ordenamento jurídico autónomo”, como é o caso do ordenamento jurídico canónico, distingue-se de um mero ramo de Direito na medida em que, ao contrário deste último, ele pressupõe a existência de mecanismos institucionalizados de interpretação e aplicação do Direito, maxime de tribunais próprios. É o que se passa ordenamento canónico como ordenamento jurídico próprio da Igreja Católica; e é ainda o que se passa, em alguns casos, com o ordenamento das organizações internacionais, como a ONU ou a UNESCO, etc… - - que têm jurisdição própria para os seus assuntos internos (vg. de nomeações, eleições, designação de cargos, etc…) ainda que projectem a sua actividade, por exemplo de benemerência e humanitárias, adentro de um Estado concreto.
4 - De acordo com a Concordata (quer a de 1940, quer a de 2004, tratado internacional celebrado entre a Santa Sé e o Estado Português), “A Igreja Católica em Portugal pode organizar-se livremente de harmonia com as normas do direito canónico e constituir, modificar e extinguir pessoas jurídicas canónicas a que o Estado reconhece personalidade jurídica civil” (art. 10º). Por outro lado, o Estado reconhece também à Igreja Católica o direito de aplicar o direito canónico às situações nele contempladas –nomeadamente quanto à organização das entidades com “personalidade jurídica canónica”—através de Jurisdição ou Órgãos Jurisdicionais próprios.
5 - Às Misericórdias, na medida em que cooperam com os fins da Administração pública, é-lhes reconhecida, no plano estadual, um relevante interesse público ou uma utilidade pública. E nessa medida, são-lhes reconhecidas também certas posições jurídicas especiais - com relevo nomeadamente para o direito administrativo. Correspondem, nessa medida, a “instituições particulares de solidariedade social”, quanto a estas actividades e finalidades. Mas o seu substrato é, em especial - na maioria dos casos desses sujeitos, não quanto a todas as Misericórdias - uma “associação de fiéis canonicamente erigida”.
6 - Ora, esta marca genética específica está bem expressa no Compromisso a que aderem os Irmãos e que corresponde aos estatutos da ora Ré, “Irmandade de Nossa Senhora da Misericórdia do Porto”, aprovado pelos Irmãos e homologado canonicamente através do acto de aprovação dado em 15 de Junho pela autoridade diocesana, Ordinário da Diocese do Porto.
7 - E esta marca genética específica vem já de todos os “Compromissos” (Estatutos) anteriores, ao longo dos tempos. Para não ir mais longe, pode confrontar-se o anterior Compromisso de 1981, aprovado pelos Irmãos no tempo do Provedor ..., e depois homologado canonicamente através do decreto do Bispo do Porto Dom. ..., de 8 de Março de 1981, e onde se lê expressamente que: “Dom ... – Bispo do Porto – Fazemos saber que tendo - nos sido presentes e requerida a aprovação dos Estatutos, ou Compromisso, da Irmandade de Nossa Senhora da Misericórdia do Porto, em relação com a respectiva erecção canónica, HAVEMOS POR BEM: - Considerar erecta e confirmar em pessoa moral eclesiástica a Irmandade de Nossa Senhora da Misericórdia, também designada por “Santa Casa da Misericórdia do Porto” ou, simplesmente,”Misericórdia do Porto”; - Aprovar os presentes Estatutos, em conformidade com o Direito Canónico aplicável, designadamente com os artigos 34º e 36º do Regulamento Geral das Associações Religiosas dos Fiéis, de 23 de Maio de 1937.“
8 - No Artigo 1º do Compromisso consagra-se que “A Irmandade de Nossa Senhora da Misericórdia do Porto (…) é uma associação de fiéis, constituída na Ordem Jurídica Canónica, com o objectivo de satisfazer carências sociais e praticar actos de culto canónico, de harmonia com o espírito tradicional, enformado pelos princípios da doutrina e moral cristãs.” E que “Em conformidade com a natureza que lhe advém da sua erecção canónica, a Irmandade está sujeita ao Ordinário Diocesano de modo similar ao das demais associações de fiéis, ressalvados os seu privilégios.” Esta regra - sobre a definição da associação, sua natureza, inserção na Ordem Jurídica Canónica e sujeição (administrativo - canónica) ao Ordinário diocesano - do Compromisso actual, repete, ipsis verbis, idêntico artigo 1º dos Compromissos anteriores.
9 - E quanto ao seu objecto e finalidades, dispõe o art. 4º do Compromisso que “No campo social exercerá a sua acção através das 14 Obras de Misericórdia, tanto espirituais como corporais, interpretadas à luz da moderna Doutrina Social da Igreja e da cultura da solidariedade, desenvolvendo as actividades que constarem deste Compromisso e as mais que vierem a ser consideradas convenientes e, no sector especificamente religioso, sob a invocação de Nossa Senhora da Misericórdia, que é a sua Padroeira, manterá o Culto e a acção pastoral nas suas Igrejas e Capelas”.
10 - Ora, o ordenamento jurídico canónico contempla, quanto às “associações de fiéis”, canonicamente erigidas, a distinção entre associações públicas e associações privadas. Isto é assim, expressamente, desde o Código de Direito Canónico de 1983 – que, na sequência do Concílio Vaticano II, criou a categoria de associações canónicas privadas, ao lado das (e única categoria que vinha de trás) associações de fiéis públicas. Ambas se regem constitutivamente (e quanto ao seu governo, vida interna, relações entre Irmãos, e com a autoridade de tutela eclesiástica, objectivos e finalidades) pelas regras do direito canónico. Tal como no Ordenamento jurídico estadual, da República portuguesa, também no Ordenamento Canónico há “associações de direito público” e “associações de direito privado”. E estas últimas não deixam, por isso, de se reger também pelo Ordenamento à luz do qual são erigidas e que lhes traça o quadro da sua fisionomia e configuração.
11 - Resulta da Concordata a garantia de que (Artigo 2º nº4): “É reconhecida à Igreja Católica, aos seus fiéis e às pessoas jurídicas que se constituam nos termos do direito canónico a liberdade religiosa, nomeadamente nos domínios da consciência, culto, reunião, associação, expressão pública, ensino e acção caritativa”; e que (Artigo 10º): “A Igreja Católica em Portugal pode organizar - se livremente de harmonia com as normas do direito canónico e constituir, modificar e extinguir pessoas jurídicas canónicas a que o Estado reconhece personalidade jurídica civil.”
12 - Em consonância com esta regra de direito internacional convencional, estabelece o art. 25º do DL 119/83, de 25 de Fevereiro, sob a epígrafe “Reconhecimento das instituições canonicamente erectas” que “A personalidade jurídica das instituições canonicamente erectas resulta da simples participação escrita da erecção canónica feita pelo bispo da diocese onde tiverem a sua sede, ou por seu legítimo representante, aos serviços competentes para a tutela das mesmas instituições”. E no art. 46º nº 1 que “os estatutos das instituições referidas no artigo anterior e respectivas alterações não carecem de escritura pública, mas devem ser aprovados e autenticados pela autoridade eclesiástica competente”.
13 - Consagra-se ainda naquela convenção de direito internacional (artigo 2º nº 1 da Concordata) que “A República Portuguesa reconhece à Igreja Católica o direito de exercer a sua missão apostólica e garante o exercício público e livre das suas actividades, nomeadamente as de culto, magistério e ministério, bem como a Jurisdição em matéria eclesiástica” (sendo que a expressão “eclesiástica” quer dizer “da Igreja”, da ecclesia, e que diz respeito à Igreja – como são as suas “pessoas jurídicas”, canonicamente erigidas).
14 - É um traço genético e actual da essência da Igreja católica o serviço da caridade, das 14 obras de misericórdia pregadas pelo seu Fundador; as quais, para além do plano pessoal e individual, se expressam também como um “serviço organizado e institucionalizado” dos membros da Igreja: “pertence à sua natureza, é expressão irrenunciável da sua própria essência”, como “tarefa intrínseca”, que “faz parte da essência da sua missão originária”.
15 - Não é pelo facto de uma “associação de fiéis constituída na Ordem Canónica” poder ser, à face do Direito Canónico, uma associação privada - e não uma associação pública (e como bem sabem os Autores/ora agravados, é matéria que tem sido bem discutida e vem sendo aprofundada no âmbito canonístico, havendo muitos indícios e autores conceituados a defenderem tratar - se de associações de fiéis público - canónicas) - que deixa de estar regida pelo Direito Canónico: quanto à sua constituição e vida interna. E a esse substrato real - verdadeiro, substantivo (de uma pessoa jurídica na ordem canónica) - é reconhecida no âmbito estadual também personalidade jurídica civil.
16 - Aliás, saber se é associação canónica “privada” ou antes “pública” é questão que deve ser resolvida pelo próprio Direito Canónico onde ambas se situam e enquadram. A natureza jurídica “publica” ou “privada” da associação constituída na Ordem Canónica deriva da aplicação dos critérios e regras definidas, obviamente, neste próprio Ordenamento. Não são, obviamente, os Tribunais do Estado que vão dizer (juris dicere) se uma associação canónica é associação de fiéis pública ou privada segundo o Direito canónico.
17 - Por outro lado, é verdade que há “Misericórdias” que não são, de modo algum, “associações canónicas de fiéis”, que não são pessoas jurídicas constituídas no Ordenamento Canónico: como é o caso da “Santa Casa da Misericórdia de Lisboa”, que não é pessoa jurídica erigida canonicamente, mas sim e apenas pessoa jurídica no Ordenamento estadual, cujos Estatutos, diferentemente daquelas, são aprovados por Decreto-Lei do Governo e cujos órgãos dirigentes são nomeados pelo Governo; e das demais “Misericórdias” que não se tenham transformado em pessoas jurídicas de Direito Canónico através da sua “erecção canónica” ou não se tenham “integrado na Irmandade canonicamente erecta” (arts. 90º e 91º nº1 do Decreto - Lei nº 519 - G2/79, de 29 de Dezembro, e art. 95º e 96º do DL 119/83, de 25 de Fevereiro).
18 - Muito diferentemente dessas, é a situação da Ré, “Irmandade de Nossa Senhora da Misericórdia do Porto”: a qual quis constituir-se como associação da Igreja, e foi erigida como tal por acto do Ordinário da Diocese (v. Compromisso dos Irmãos, de 1993). E que, pelos seus estatutos (ou Compromisso de Irmãos) é, antes de mais, uma “associação de fiéis constituída na Ordem Jurídica Canónica” – e à qual, nos termos da Concordata, o Estado Português reconhece, com essa fisionomia canónica genética, personalidade jurídica civil na ordem interna. E que - rezam ainda os seus Estatutos (o Compromisso dos Irmãos) - “em conformidade com a natureza que lhe advém da sua erecção canónica, a Irmandade está sujeita ao Ordinário Diocesano”…
19 - Como se disse, não é da questão de saber se corresponde a uma associação canónica pública ou privada, que depende o critério da jurisdição dos tribunais do Estado para as questões da sua vida interna e provimento dos cargos por eleição. Ambas essas associações de fiéis, (erigidas e) constituídas na Ordem Jurídica Canónica, “públicas” e “privadas”, pertencem ao ordenamento canónico, e estão sujeitas a órgãos jurisdicionais próprios deste ordenamento jurídico específico - que é reconhecido, bem como a sua jurisdição, pelo Estado português.
20 - Diferentemente (mas não é o que está aqui em causa, nestes autos) será o que respeita ao julgamento das relações externas (duma associação canónica, e neste caso da Irmandade Ré) com terceiros: relações jurídicas estabelecidas, ou a configurar, com outros sujeitos na Ordem jurídica portuguesa (relações jurídicas contratuais, ou de propriedade ou de responsabilidade…), ou o que se passa com a actividade dos “estabelecimentos” por si detidos, por ex.º, hospitais ou escolas, e que inserem na ordem jurídica estadual e sujeitos às suas exigências e prescrições e, consequentemente, à jurisdição estadual, cível ou administrativa.
21 - A vida interna das associações jurídicas constituídas na Ordem canónica é julgada no foro próprio: o canónico, a jurisdição interna, e bem estruturada, e com processo próprio, da Igreja. De contrário, e estar-se-ia a infringir, também, o “princípio (constitucional) da separação entre a Igreja e o Estado”, na sua dimensão de não interferência na organização interna, ou vida interna, da instituição constituída na ordem canónica. Ressuscitando-se um velho regalismo (da jura in sacra) ou estatismo, que devem ser vistos como já ultrapassados nas relações entre Igreja e Estado (Sobre o assunto, pode ver-se a recente tese de doutoramento do Professor da Faculdade de Direito PAULO PULIDO ADRAGÃO, A Liberdade Religiosa e o Estado, Almedina, 2002, passim. Do mesmo autor, a Anotação “os tribunais portugueses não são competentes para julgar das questões relativas à constituição, auto-governo, ou extinção das Misericórdias [erigidas juridicamente no ordenamento canónico]; as questões inerentes à vida interna dessas associações estão sujeitas à jurisdição dos tribunais eclesiásticos”).
22 - E os Irmãos não podem desconhecer que, para os seus eventuais desentendimentos nessa qualidade, nomeadamente quanto a processo de eleições, têm um processo próprio e bem estruturado, com fase graciosa e de eventual tentativa de conciliação (cânone 1.733 do Código de Direito Canónico) e uma Jurisdição e órgãos jurisdicionais próprios. Nem desconhecer especificamente o art. 1º do Compromisso (da ora agravada), que os vincula, e que consagra que em conformidade com a natureza que lhe provém da sua erecção canónica, a Irmandade está sujeita ao Ordinário Diocesano…
23 - Por outro lado, do art. 7º do Estatuto das IPSS aprovado pelo antigo DL nº 519 - G2/79, de 29 de Dezembro, não se pode retirar que os órgãos jurisdicionais canónicos não sejam os competentes para dirimir as causas respeitantes à vida interna das instituições da Igreja, das associações constituídas na Ordem Jurídica Canónica a que é reconhecida personalidade civil na ordem estadual. Em primeiro lugar, porque tal norma é muito geral; mesmo a entender-se que se refere apenas a Tribunais do Estado, sobrará sempre um muito vasto campo de aplicação, do disposto nesse artigo, para todas as demais instituições, para além das (ou ressalvando as) pessoas jurídicas da Igreja; e mesmo quanto a estas, sobrará ainda um campo para a sua aplicação no que diz respeito à configuração e julgamento da suas relações jurídicas externas, com outros sujeitos de direito estadual. Não já quanto à sua vida interna, quanto ao provimento dos seus cargos por designação ou eleição.
24 - Em segundo lugar, porque tal norma do Estatuto das IPSS tem que ser lida à luz da ressalva expressa contida no art. 2º nº 3 do próprio Decreto-Lei que aprova tal Estatuto e que pontualiza que …“tratando-se de organizações ou instituições da igreja católica, a aplicação do Estatuto far-se-á com respeito pelas disposições da Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa de 7 de Maio de 1940”. Ou seja, é o próprio Decreto-Lei em causa - que contém a norma muito geral invocada pelos Autores/agravados-que faz, de princípio, a expressa ressalva jurídica quanto à necessidade de ler tal norma e aplicá-la sempre de harmonia e com respeito pelo que resulta do tratado internacional que o Estado Português celebrou (a Concordata). Aliás, a não ser assim, haveria uma potencial ofensa ao art. 8º nº 2 da CRP, como se viu acima.
25 - Por último, se esse artigo 7º estivesse positivamente a determinar uma jurisdição competente, a atribuir por si e autonomamente uma competência judicial, se fosse ele a norma-fundamento, como pretendem os Autores/ora agravados, da atribuição aos tribunais comuns da competência para julgarem a presente questão, então, tal norma, nesse segmento (atributivo de competência) seria também claramente inconstitucional na medida em que editada com invasão da reserva legislativa da Assembleia da República, sem a necessária autorização legislativa da AR (art. 167º alínea j/ da CRP na versão de 1982; correspondente ao actual art. 165º nº1 alínea p/).
26 - Julgou, pois, bem a douta sentença de 1ª instância que entendeu ser o tribunal comum incompetente. Aliás, na esteira da jurisprudência do STJ colhida no Acórdão de 11.07.1985 ( in BMJ nº 349, pp. 432 e ss.), e nos recentes Acórdão do mesmo STJ de 17.02.2005 (proc. 05B116, publicado no site www.dgsi.pt ) e de 30.07.2004 (proc. 04B4525, publicado no mesmo site www.dgsi.pt ) todos tirados por unanimidade, e onde se conclui que “no caso das misericórdias associações de fiéis constituídas na Ordem Jurídica Canónica, cabe ao ordinário diocesano a aprovação dos respectivos gerentes” e “essa aprovação abrange as irregularidades na admissão de «irmãos», bem como as decorrentes do respectivo processo eleitoral”. E acórdão onde muito bem se explica ainda que “é certo que as Misericórdias se regem pelo respectivo “Compromisso” quanto à convocação, funcionamento e competência deliberativa, e, nos casos omissos, pelo regime previsto nos arts. 12º e 13º, por remissão do art. 69º nº1 do EIPSS. No entanto, esse nº1 do art. 69º não deixa, a final, de excepcionar “as sujeições canónicas que lhe são próprias”, ressalvando outrossim o nº 3 da aplicação do preceituado no nº 1 “tudo o que especificamente respeita às actividades estranhas aos fins de solidariedade social”.
27 - Ora, no douto Acórdão aqui objecto de recurso, pelo contrário, as referências (retiradas do Ac. da RP, de 05.05.2005) a alguns cânones do Código de Direito Canónico, não estão acompanhadas da indicação de que tal Código novo apenas entrou em vigor em 1983 (em 27 de Novembro), e só com ele foi consagrada, como acima se referiu, inovatoriamente a categoria de associações de fiéis privadas, para valer daí para a frente obviamente, sendo as anteriores, as pessoas jurídicas erectas já anteriormente na ordem canónica, em princípio “associações religiosas de fiéis” de carácter público - canónico;
28 - Depois, neste Acórdão agora recorrido, dá - se uma interpretação um pouco distorcida do art. 69º do DL 119/83, de 25 de Fevereiro. É que, neste art. 69º consagra-se que em primeiro lugar (de precedência jurídica), no regime aplicável às irmandades da Misericórdia, estão “as sujeições canónicas que lhes são próprias”. Com efeito, quando, nesta norma, se consagra que vale “o regime previsto no presente diploma, sem prejuízo de”… significa que a primazia é dada, é reconhecida na própria lei, às sujeições próprias ao direito canónico…
29 - O que, aliás, faz todo o sentido: pois que o substrato daquela pessoa jurídica reconhecida como “instituição de solidariedade social” é, nestes casos (e não o é assim em todas e quaisquer Misericórdias: cfr. art. 95º do mesmo diploma), uma entidade da Igreja, uma pessoa jurídica constituída (“erecta”) no ordenamento canónico pela autoridade canónica competente. Por isso, também, o disposto no art. 71º nºs 1 e 3 do diploma: assegura-se a regra de que a irmandade “pode ser extinta pelo ordinário diocesano”, e ainda a hipótese de a irmandade ser “extinta” enquanto “instituição de solidariedade social” mas continuar a “subsistir” como Irmandade e pessoa jurídica “na ordem jurídica canónica”…
30 - E esta primazia da aplicação do ordenamento canónico leva ainda - quer se trate de associação pública de fiéis, quer se tratasse de associação privada canónica - que é deste ordenamento que hão-de sair os critérios delimitadores, e é na sua jurisdição específica, e aceite pelo Estado português, que tais controvérsias devem ser julgadas.
31 - Por fim, a verdade é que a questão da natureza jurídico-canónica das associações de fiéis (envolvendo o saber se é associação pública ou privada de fiéis) é uma questão eventualmente discutível e carecida de um maior aprofundamento doutrinário do que é superficialmente citado no Acórdão. E testemunho disto mesmo é a existência doutras posições que perfilham a doutrina de que tais Irmandades constituem hoje “associações de fiéis públicas” (no direito canónico), como defende o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa (em parecer citado pelo Ac.da Relação), e de insignes canonistas como o Doutor Silvestre Ourives Marques (Eborensia, p. 200 e ss), o Doutor José António Marques e também, entre outros, o catedrático de direito Civil e Canónico Prof. Gaetano Castro, que defende a natureza pública desta associação… . E até podendo dar-se o caso de algumas Irmandades da Misericórdia serem associações canónicas públicas e outras serem associações canónicas privadas…, não tendo todas necessariamente o mesmo formato jurídico-canónico….
32 - Seja como for, é definição, esta, como se disse, que resultará dos próprios critérios jurídicos e científico-dogmáticos do Ordenamento Canónico…, e que tem jurisdição própria para apreciar tais questões - e que o Estado português respeita, e cuja autonomia jurisdicional aceita.


TERMOS EM QUE, e sempre com o mui douto suprimento de V. Exªs, o Acórdão recorrido fez errada interpretação das normas supracitadas e nomeadamente do art. 65º - A alínea c) do CPC, arts. 10º e 2º da Concordata, artigos/cânones 232º § 1º, 303º - §3º, 304º - §1º, 323º - §1º e 1.733º do Código de Direito Canónico de 1983 (e também as regras do direito canónico promulgadas pela conferência episcopal portuguesa para as Associações de Fiéis: “Normas Gerais” promulgadas em 15 de Março de 1988, supracitadas), e sobretudo do art. 69º do DL 119/83, de 25 de Fevereiro (EIPSS), e ainda do art. 7º do DL 519 - G2/79, e art. 8º nº 2 da CRP - pelo que deverá ser julgado procedente o presente recurso, revogando - se o douto acórdão agravado, sendo em consequência substituído por decisão que julgue não serem os tribunais comuns, os competentes para a questão dos autos, mas sim a Jurisdição própria eclesiástica, nos moldes prescritos no direito canónico.

E, em abono das sua posições, juntou dois pareceres.

Contra-alegaram os agravados AA, BB e DD, concluindo como segue:

1 - A alínea c) do artigo 65 - A do CPC na redacção que lhe foi dada pelo art.º 1..º do DL 38/2003, de 8 de Março, não dá qualquer elemento para a decisão por que a Agravante se expande,
2 - Lmitando - se a repetir a prevalência do estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e (outras) leis especiais de força superior,
3 - Pelo que o reconhecimento de que o direito internacional convencional, uma vez recebido, têm força jurídica superior ao direito interno ordinário no sistema jurídico português é mera redundância.
4 - Como se reconhece que um ordenamento jurídico autónomo não é um ramo de direito mas uma unidade hipotalássica.
5 - E mesmo sem aderir a uma tese egológica, que postule a sua total plenitude, o direito canónico, o mais antigo, cultivado e debatido depois do Direito Romano, é verdadeiramente um ordenamento jurídico autónomo,
6 - Que o Estado Português, por força da Concordata de 1940 e agora a de 2004, se obrigou a respeitar.
7 - Mas certamente que dentro da eterna definição e distinção do que é de Deus e o que é de César.
8 - É certo que os limites, por vezes, são difíceis de precisar com exactidão.
9 - E aqui põe-se a questão de definir a caracterização das Irmandades da Misericórdia quer institucional quer funcionalmente.
10 - Que são associações de fiéis é ponto assente,
11 - Já o não sendo a sua natureza de associações públicas ou privadas
12 - E muito menos a sua aceitação como instituições da Igreja Católica.
13 - E mesmo aceitando sem reservas essa caracterização
14 - Se toda a sua actividade é regulada pelo direito canónico ou se o império deste se limita à matéria religiosa,
15 - Deixando de lado a actividade temporal das instituições - a sua gestão e fins assistenciais ..
16 - Aliás, da Concordata não resulta a vinculação da República a regra de competência internacional.
17 - As Misericórdias nasceram à sombra da Igreja, mas nunca foram Igreja.
18 - Os homens bons de Lisboa que reuniram na Sé sob o impulso de Dona Leonor e de Frei Miguel Contreiras e prestaram juramento na Capela da Terra Cota criavam obra de Deus, mas não da Igreja na sua comovente fraseologia.
19 - E se esta não tem hoje estatuto de Misericórdia, estando aliás expressamente excluída do estatuto das IPSS, deve-se à sua absorção pelo Estado na reforma de Mouzinho da Silveira.
20 - As demais, ao longo de mais de cinco séculos (completados em 14 de Agosto de 1998) nunca se consideraram instituições da Igreja.
21 - E se é certo que também os leigos são Igreja e a maior parte, houve sempre um distinguo entre o que depende directamente da hierarquia e aquilo que é decidido por um colectivo, maior ou menor de fiéis.
22 - E a distinção achou sempre acolhimento na nossa lei civil.
23 - O Estatuto das IPSS, presentemente em vigor, dedica todo o seu Capítulo II - ORGANIZAÇÕES RELIGIOSAS, com uma Secção - também II - para as Instituições da Igreja Católica.
24 - As Irmandades da Misericórdia, essas aparecem já no Capítulo III - Secção II - o que claramente significa que o nosso legislador as não considerou organizações da Igreja Católica.
25 - É que assim como os cidadão portugueses, enquanto tais, podem criar no seio do Estado Português instituições de direito privado, que não são obviamente do Estado,
26 - Também os fiéis católicos, enquanto tais, podem criar instituições que não sejam da Igreja,
27 - Sendo coisa completamente diferente associação na Igreja de associação da Igreja.
28 - Obviamente que tal como os cidadãos que somos todos nos temos de conformar com as leis nacionais quando criamos qualquer instituição, tanto substancial como formalmente,
29 - Também os católicos, agindo nessa condição, têm de se conformar com as exigências - materiais e formais - da Igreja.
30 - Daí o art.º 1..º do Compromisso da Agravante falar de uma erecção canónica que a sujeita à autoridade do Ordinário Diocesano, de modo similar ao das demais associações de fiéis.
31 - A erecção canónica é, no entanto, mero requisito de forma que a não qualifica mas que apenas lhe confere personalidade.
32 - Mas logo ali, mesmo artigo do Compromisso, se ressalvam os seus privilégios, um dos quais é o de se administrar por si própria, como decorre há quinhentos anos.
33 - De salientar que secularmente sempre se distinguiu entre organizações da Igreja e organizações de fiéis.
34 - Aliás, contrariamente ao que se alega no doutíssimo arrazoado da Agravante, as associações provadas de fiéis não foram criadas pelo Vaticano II, mas remontam aos primórdios da Cristandade.
35 - As ágapes em que nas catacumbas se distribuíam alimentos e roupas eram objectivamente associações de fiéis e não da Igreja.
36 - E depois por todos os séculos, os homens de honesta vida, boa fama, sã consciência, tementes a Deus, guardadores dos seus mandamentos, mansos e humildes de coração e sobretudo disponibilizados para o serviço do próximo, agindo, embora, no seio da Igreja, não eram instituições desta.
37 - Genericamente, pode mesmo afirmar-se que são muito mais as iniciativas e associações de fiéis do que as instituições da Igreja.
38 - O que se compreende dada a força apelativa da caridade, comparativamente com a qual, todos os actos de virtude, mesmo os superiormente heróicos, nada são.
39 - Assim se expressou Dom António Ferreira Gomes, in "CARTAS AO PAPA".
40 - Invocando o autor a lição de São Paulo, segundo a qual nem uma eloquência que fale línguas de todos os homens e até a dos anjos, nem uma fé capaz de transferir montanhas, nem o dom da profecia, nem a ciência e conhecimento de todos os mistérios, terão qualquer valor, se não houver caridade.
41 - E esta acção caritativa, individual ou organizada, s desenrolou no quadro preconizado na Epístola aos Coríntios,
42 - Sem que, quando colectiva, se tivesse de tratar de iniciativa da Hierarquia ou sua confirmação institucionalizada.
43 - Aliás a erecção da primeira Misericórdia dá-lhe nitidamente a caracterização de associação privada de fiéis, nascida da vontade de fiéis, com o apoio é certo da Coroa( Dona Leonor regia o império, por ausência do País de seu irmão, Dom Manuel) e a aquiescência do Cabido da Sé de Lisboa, que nenhuma intervenção teve, no entanto, sobre o acto de criação.
44 - E as que imediatamente se lhe seguiram, como é o caso da Santa Casa da Misericórdia do Porto nasceram da mesma forma.
45 - Em numerosos itens das suas conclusões repete a Agravante o argumento de que a Igreja pode criar instituições que se regem pela sua lei o que obviamente se não contesta.
46 - A questão todavia é muito mais simples.
47 - A Santa Casa da Misericórdia do Porto foi criada por vontade dos fiéis e a posterior erecção canónica não lhe modifica o estatuto.
48 - Acresce que pública ou privada, a associação só escapa à tutela da lei portuguesa - substantiva ou adjectiva - quando a matéria não for da lei meramente civilística ou administrativa.
48 (1)”. - No caso, ninguém fala de ofensa à integridade da fé e dos costumes ou de desvio nos fins da Instituição.
49 - Está somente em causa a regularidade dum processo eleitoral.
50 - Duma questão entre a Instituição e alguns irmãos,
51 - Fora da sublimidade das coisas espirituais,
52 - Mas da consideração, entre outras coisas, de que uma mesa de voto, aberta doze horas, não pode permitir o exercício do direito de voto a cerca de três mil cidadãos, irmãos com capacidade eleitoral activa.
53 - Trata-se de um caso típico - o mais tipo possível e também o mais simples de definir - da aplicabilidade do art.º 7.º do Estatuto velho, mas que se mantém em vigor, que defere aos tribunais portugueses a competência ratione materiae para discutir questões entre a instituição e seus associados.
54 - A regra in foro utimur pode e deve dar a composição do conflito.
55 - E, mesmo na possibilidade de intervenção de várias ordens(pluralidade de ordens) que nem sempre é o de conflito de ordens, não tem de optar-se pela hetero- integração, naturalmente de afastar quando a aplicável possui todos os elementos para a definição.
56 - Aliás, da Concordata não resulta a vinculação da República a regra de competência internacional.
57 - São assim os tribunais comuns competentes para apreciação da matéria subjacente aos autos.
58 - E de qualquer forma, sempre será de concluir pela impossibilidade de discutir agora a questão da competência do Tribunal que se fixou pelo trânsito da decisão proferida no âmbito do procedimento cautelar.

Terminam pedindo que se mantenha a douta decisão do Tribunal da Relação do Porto.

Contra-alegou também o recorrido CC, concluindo que:

1 - Por extemporâneas, as alegações, embora mui doutas, da Ilustríssima Agravante, têm de ser desatendidas.
2 - E ainda que assim não seja, julga-se que o trânsito em julgado da providência cautelar, terá fixado carácter definitivo, para a presente causa, da competência dos tribunais comuns.
3 - De qualquer forma, o Acórdão que o presente recurso visa pôr em causa, não viola minimamente a alínea c) do art.º 65 - A do CPC (redacção do art.º 1..º do DL 38/2003, de 8 de Março) que, contrariamente ao pretendido pela Agravante, estabelece directamente a competência dos tribunais portugueses para a apreciação da validade das deliberações dos órgãos das pessoas colectivas.
4 - É certo que a Agravante invoca a oposição do porventura estabelecido em tratado.
5 - Mas nenhum tratado refere expressamente o desaforamento.
6 - Não se contesta que o direito canónico seja um ordenamento jurídico autónomo.
7 - E que qua tale tenha tribunais próprios.
8 - Tribunais que o Estado Português tem obviamente de respeitar face à Concordata.
9 - Coisa diferente é esses tribunais invadirem a área de competência ratione materiae dos nossos tribunais.
10 - Sejam ou não as Misericórdias instituições particulares ou públicas de fiéis,
11 - Pois numa e noutra hipótese são instituições de fiéis e não da Igreja.
12 - E da Concordata não resulta a vinculação da República Portuguesa a regra de competência internacional.
13 - Também nunca se contestou nem contesta que seja a Agravante uma associação de fiéis constituída na ordem jurídica canónica,
14 - Ou que o Estado Português tenha - e muito louvavelmente - reconhecido à Igreja e aos seus fiéis plena liberdade para todos os fins na Concordata referidos,
15 - Nomeadamente para o exercício da caridade, a maior de todas as virtudes, já na lição do Apóstolo Paulo.
16 - Tradicionalmente, as nossas misericórdias foram sempre associações de fiéis católicos.
17 - E se algumas saíram daquela órbita foi pela napoleonização das nossas instituições.
18 - Primeiro por Mousinho e seus asseclas, quando foi nacionalizada a Misericórdia de Lisboa, cujo nome é uma excrescência histórica,
19 - Aliás mantida para induzir e conservar em erro a parte menos esclarecida das nossas populações.
20 - Depois, o regime liberal durante toda a Monarquia Constitucional, a legislação de Afonso Costa e o Código Administrativo de Marcelo Caetano consagraram regime dualista que persistiu.
21 - Felizmente, a Misericórdia do Porto, foi sempre e mantém ainda característica de associação de fiéis católicos.
22 - Mas não é, repete - se, uma associação da Igreja Católica.
23 - O nosso legislador distinguiu os dois tipos de instituições no Estatuto das IPSS.
24 - Assim, na Secção II do Capitulo II ocupa - se das Instituições da Igreja Católica;
25 - Reservando para o capitulo III, secção II o regime das Irmandades da Misericórdia.
26 - Daqui parece ter logo de inferir - se que os foros têm de ser diferentes, bem como os regimes básicos,
27 - Certamente que a justiça eclesiástica para os primeiros
28 - E a justiça nacional para o que não for estritamente religioso nas segundas.
29 - A separação da Igreja e do Estado, dando a Deus o que é de Deus e a César o que é de César está assim perfeitamente delimitada.
30 - Dois regimes básicos, dois foros.
31 - E para as IPSS que não sejam instituições da Igreja Católica, stricto sensu, o foro determina - se segundo o art.º 7.° do Estatuto do Estatuto saído do DL 519 - 02/79, de 29 de Setembro,
32 - Mantido em vigor por todas as subsequentes alterações.
33 - É por ele que tem de aferir - se do foro competente para os presentes autos.
34 - As ressalvas que com pertinácia e afinco a Agravante pretende impor limitam-se às organizações da Igreja Católica que as Misericórdias não são, mau grado as suas sujeições canónicas.
35 - Depender da Igreja não é ser Igreja,
36 - Como depender do Estado não é ser Estado.
37 - E as sujeições canónicas que lhes são aplicáveis são as resultantes dos cânones 305, 321 a 326.
38 - A questão parece reduzir - se assim a uma situação de extrema clareza.
39 - Não é a disciplina eclesiástica, não é a integridade da fé, não é a não mácula dos costumes que estão em causa ...
40 - Mas tão - somente uma questão entre a Misericórdia e seus irmãos,
41 - A propósito duma assembleia geral que o Presidente da Mesa dirigiu em total desconformidade com os estatutos e até a lei portuguesa,
42 - Colocando, para além do mais, alguns irmãos na impossibilidade prática de votar.
43 - É, pois, típica e indiscutivelmente, uma questão que se levantou entre a Irmandade e os seus irmãos.
44 - E é para este tipo de questões que existe o art.º 7.° (o do foro competente) disposição que tem resistido a todas as alterações legislativas de que o nosso sistema tem sido tão pródigo ao longo dos últimos anos.
45 - Repetindo, pois, é certo que se está perante uma questão levantada entre a Instituição e seus associados sobre a matéria que não tem nada de religioso, que não contende com nenhum dos valores que a Igreja tem o direito de preservar.
46 - Os Tribunais Eclesiásticos, pela sua eminente dignidade, têm de ocupar-se de assuntos de maior transcendência nos domínios da fé e dos costumes.
Assim, ou por extemporaneidade das alegações a que se está respondendo,
Ou porque na providência cautelar se tomou já indiscutível a matéria para o caso in judice,
Ou pelo império do art.º 7 do Estatuto das IPSS, mas que se mantém em vigor, tem o presente recurso que improceder, mantendo-se a mui douta e perfeitamente alicerçada decisão do Venerando Tribunal da Relação do Porto.
………………………

VI –
Ultrapassada, por despacho do relator, a argumentação da intempestividade das alegações levantada pelo recorrido CC, a questão que se nos depara consiste em saber se os tribunais civis são competentes para conhecerem da presente causa.

Para sobre ela tomarmos posição, vamos:
Determinar se o decidido, no procedimento cautelar, sobre a competência formou caso julgado que valha nesta acção principal;
Indagar a natureza das misericórdias e, logo a seguir, a natureza da Santa Casa da Misericórdia do Porto;
Obtida esta, seguir para a aferição do seu regime jurídico atentando - sempre na perspectiva do acto eleitoral que se nos depara - no artigo 41.º da Constituição, no regime das Concordatas e no que resulta da lei interna portuguesa.

VII -
No plano factual, damos aqui, brevitatis causa, o que ficou dito supra em I.

VIII –
O procedimento cautelar instaurado foi preliminar relativamente à acção e nele se conheceu, com os limites próprios, de facto e de direito.
A competência do próprio tribunal integra-se no conhecimento de direito, de sorte que vale o comando do artigo 383.º, n.º4 do Código de Processo Civil. Não tem esse conhecimento qualquer influência na acção principal.
Mas, mesmo que, por este caminho, a tal não se chegasse, sempre haveria que atender ao argumento de maioria de razão que resulta do artigo 510.º, n.º3 do mesmo Diploma Legal. Se a declaração genérica feita no saneador da acção principal sobre a competência não constitui caso julgado mesmo dentro do processo, por maioria de razão, tal decisão tomada, também em termos genéricos, no procedimento cautelar (veja-se folhas 135 do I volume) deve estar despida da força própria daquela figura.

IX –
As misericórdias vêm de muito longe na nossa história. Em 15 de Agosto de 1498 foi fundada a primeira, em Lisboa e, à morte da rainha D. Leonor, em 1525, já havia em Portugal 61.
Com um regime jurídico nem sempre claro, como é bem compreensível, foram atingidas com o artigo 43.º do Decreto n.º23 de 16.5.1832, tendo a respectiva tutela passado, pelo menos no plano legal, para os perfeitos das províncias. Depois, o artigo 108.º § 8.º do Código Administrativo de 1842, passou a tutela para a esfera do governador civil, que continuou com o artigo 186.º do Código Administrativo de 1878 e com o artigo 220.º, n.º2 do Código Administrativo de 1886.
O Código Administrativo de 1936-40 incluiu as misericórdias no capítulo dedicado às associações beneficentes ou humanitárias, ficando a criação e administração daquelas reservada às irmandades ou confrarias da Igreja Católica, ainda que os “compromissos” carecessem de aprovação do Governo (artigos 372.º do Decreto-Lei n.º 27.424 de 31.12.1936 e 433.º do Decreto-Lei n.º 31.095, de 31.12.1940).
Com o Decreto-Lei n.º618/75, de 11.11 foi levada a cabo a nacionalização dos hospitais das misericórdias.
Seguiu-se o Decreto-Lei n.º 519-G/79, de 29.12 que, embora considerando as misericórdias como pessoas colectivas de direito privado do Estado Português, as teve como incluídas na ordem jurídica canónica, com as sujeições canónicas daí resultantes (art.ºs 56.º e 57.º).
Com o Decreto-Lei n.º119/83, de 25.2. – que aprovou o que chamou “Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social” - acabou-se com a distinção entre irmandades e misericórdias, reconheceram-se ambas como “constituídas na ordem jurídica canónica”(artigo 68.º, n.º1) e precisou-se que se lhes “aplica directamente o regime jurídico previsto no presente diploma, sem prejuízo das sujeições canónicas que lhe são próprias.” (2)ssa para o presente caso.

Paralelamente a esta evolução, situada no direito interno português, caminhou, vinda também de muito longe no tempo, toda uma realidade canónica que teve como objecto as misericórdias.
Actualmente, o Código de Direito Canónico de 1983, dedica os cânones 298 e seguintes às “Associações de Fiéis”, precisando logo que “existem na Igreja” associações distintas, incluindo as destinadas a actividades de apostolado, contando-se entre elas, as que visam o exercício de obras de piedade ou de caridade.
Dos cânones 305.º e 323 resulta que todas as associações de fiéis estão sujeitas à vigilância da autoridade eclesiástica competente. O que é reafirmado no artigo 11.º das “Normas Gerais para Regulamentação das Associações de Fiéis”, aprovadas pela Conferência Episcopal Portuguesa e publicadas para entrarem de imediato em vigor em 15.3.1988, sujeitando a tais normas gerais – agora já no artigo 116.º § 1.º - todas as associações de fiéis, quer existentes antes do actual Código de Direito Canónico, quer surgidas depois. Resultando explicitamente do § 2.º do artigo 41.º que as associações de fiéis podem ser, no plano civil, instituições particulares de solidariedade social.
E, reunida em 15.11.1989, em Fátima, a Conferência Episcopal emitiu o que chamou “Declaração Conjunta dos Bispos sobre a dimensão pastoral e canónica das Misericórdias Portuguesas”, constando do seu ponto 4 o seguinte:
“Nesta conformidade e tendo em conta: que a Autoridade Eclesiástica interveio, habitualmente, na existência e acção das Irmandades da Misericórdia através de actos jurídicos; que as Misericórdias têm, na sua maior parte erecção canónica e Estatutos aprovados pelo Ordinário diocesano; que mantêm culto público em igrejas e capelas próprias com capelão nomeado; que continuam a dedicar-se a actividades de pastoral social de grande alcance; que muito há a esperar de cada Santa Casa da Misericórdia e do seu conjunto, bem como da acção das Misericórdias Portuguesas, a Conferência Episcopal Portuguesa, sem esquecer a fisionomia própria das Misericórdias, criada através da história, e desejando que elas a conservem, considera as Misericórdias Portuguesas Associações Públicas de Fiéis, com os benefícios e exigências que lhes advêm do regime do Código de Direito Canónico, especialmente nos cânones 301 e seg.s e 312 e seg.s.”
Este texto encerra já uma tomada de posição sobre a natureza pública ou privada das misericórdias enquanto associações de fiéis, discussão que, se conduzisse à natureza privada, levaria as autoridades da igreja – segundo alguns autores - a um regime despido de jurisdicionalidade. Limitar-se-iam, no dizer de Vítor Melícias (Natureza Jurídica das Misericórdias, Separata de “As Associações na Igreja”, 177) a “uma genérica vigilância da autoridade eclesiástica”.
A natureza de associações públicas foi acolhida e serviu de fundamento ao Supremo Tribunal da Signatura Apostólica (a mais alta instância judicial canónica), o qual, seguindo jurisprudência anterior que ele próprio interpretou, veio, na “Sentença Definitiva” de 30.4.2005, afirmar:
“De facto, o reconhecimento da Irmandade (de Montargil) como instituição privada de solidariedade social, em direito civil, de modo algum impede que a mesma associação tenha a natureza de associação pública, no Direito Canónico.
O reconhecimento da associação, segundo o Direito civil não inclui a perda da sua natureza canónica.
Não pode, portanto, afirmar-se que “não obstante a erecção canónica a SCMM (Santa Casa da Misericórdia de Montargil) deve ser considerada como associação privada. Mais: tendo em conta a sua história e natureza canónica, a mesma na Igreja, deve ser tida como associação pública.”

X -
A Santa Casa da Misericórdia do Porto vem também de muito longe no tempo, tendo estado sob a tutela do Bispo do Porto desde a Fundação até ao já referido Código Administrativo de 1842.
No artigo1.º do seu “Compromisso”(denominação própria para os seus estatutos, conforme n.º2 do artigo 68.º do DL n.º119/83) – e à semelhança da de Montargil a que alude a citada “sentença definitiva” - diz-se “constituída na Ordem Jurídica Canónica, com o objectivo de satisfazer carências sociais e de praticar actos de culto católico, de harmonia com o seu espírito tradicional, enformado pelos princípios da doutrina e moral cristãs.”
Acrescentando já no número 2 que:
“ Em conformidade com a natureza que lhe provém da sua erecção canónica, a Irmandade está sujeita ao Ordinário Diocesano de modo similar ao das demais associações de fiéis, ressalvados os seus privilégios.”

XI –
De tudo o que vimos referindo, podemos extrair uma conclusão:
A Santa Casa da Misericórdia do Porto, como misericórdia e atento o seu compromisso, é uma instituição integrante da ordem jurídica canónica como associação de fiéis pública, que visa – enformada pelos princípios da doutrina e moral cristãs – satisfazer carências sociais e praticar actos de culto católico, tendo, na ordem jurídica civil, a natureza de instituição particular de solidariedade social.

XII –
Obtida esta precisão conceptual, há primeiro que ver se o respectivo regime jurídico – na vertente, que nos interessa, da competência ou incompetência dos tribunais civis para conhecimento da impugnação duma assembleia geral em que se procedeu a eleição dos corpos gerentes – se pode retirar da Constituição da República Portuguesa.
Acima de tudo, dela, por ser o conjunto de normas que está no topo do nosso ordenamento jurídico.

Nos termos do artigo 41.º, n.º4:
“ As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto”.
Está aqui uma emanação, em duas vertentes, da inviolabilidade de consciência, de religião e de culto.
A primeira consiste na separação entre as igrejas e outras comunidades religiosas, por um lado, e o Estado por outro;
A segunda, concatenada com a primeira, cifra-se na liberdade de organização e no exercício das funções e do culto que assistem àquelas.
A propósito deste regime de liberdade e seus limites, Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, anotação a este artigo) acentuam a “não ingerência do Estado na organização das igrejas e no exercício das suas funções de culto”, com ressalva que aqui não nos interessa e Jorge Miranda vai mesmo mais longe, admitindo apenas os limites resultantes do artigo 29.º, n.º2 da Declaração Universal dos Direitos do Homem (A Concordata e a Ordem Constitucional Portuguesa, in A Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa, ed. da Almedina, 79).

Mas, à latíssima possibilidade conferida às igrejas e confissões religiosas de se organizarem pode ser oposto o regime de liberdade que também, quanto a este ponto, enforma o Estado Português.
Podendo, então, dar-se o caso – sempre pensando no presente processo - de haver instituições que, porque prosseguem fins não só de culto religioso, como assistenciais, possam oscilar entre um lado e outro, de acordo com critérios puramente políticos ou até estarem sujeitas a regimes jurídicos híbridos.
Ultrapassadas historicamente as agudezas duma relação nem sempre boa entre o Estado e a Igreja Católica, foram mesmo concretizados acordos reguladores dos limites próprios daquele e desta. Que têm implicação manifesta nestes casos em que as instituições podem assim oscilar.
Temos, pois, aqui uma consensualidade que vai preencher o que de vazio fica com a interpretação daquele artigo da Constituição.
Este não alcança, portanto, o regime jurídico das misericórdias, antes e apenas coloca o Estado Português e a Santa Sé em pé de igualdade para livremente acordarem nesse mesmo regime jurídico.
Não é este preceito da Constituição que proporciona a solução para o nosso caso, valendo somente para se considerar aberto o caminho que foi percorrido com a celebração das Concordatas.
Como referem Vital Moreira e Gomes Canotilho (ob. o loc. citado) “A separação entre o Estado e as igrejas e confissões religiosas não impede, em termos absolutos, a celebração de concordatas ou convenções entre um e outras, para regular as respectivas relações institucionais e concretizar alguma especificidade que possa haver lugar…”

XIII -
No atentar nas Concordatas, interessa-nos a Constituição Portuguesa sob outro prisma.
Reportamo-nos ao artigo 8.º, n.º2 segundo o qual:
“As normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português.”
Deste preceito retirou o Tribunal Constitucional a interpretação de que “a normas do direito internacional convencional detêm primazia na escala hierárquica sobre o direito interno anterior e posterior” - Acórdãos n.ºs 118/85, 409/87 e 218/88, no BMJ n.ºs 360, 501, 370, 175 e 380,183, respectivamente.
Mais referindo aquele tribunal nestes arestos que:
“ Uma norma de direito interno que contrarie uma convenção internacional em vigor na ordem interna contraria igualmente o citado princípio constitucional da primazia do direito internacional convencional, não podendo deixar de haver-se por prevalecente o vício da inconstitucionalidade, que absorve, consumindo-o, o vício da ilegalidade.”
Não nos oferece dúvida, por outro lado, que as Concordatas que Portugal assinou com a Santa Sé estão compreendidas naquele conceito de “convenção internacional” e que vigoram na ordem interna. Aliás, se dúvidas houvessem, a sua simples leitura dissipá-las-ia.
Entendemos, então, acolher sem qualquer reserva, as palavras de Jorge Miranda (Estudo citado, agora a páginas 69) quando afirma, abordando matéria relativa às Concordatas, que:
“Consequentemente, a emissão de norma interna contrária a norma internacional não constitui apenas o Estado em responsabilidade internacional; implica também a não obrigatoriedade da norma interna, por ineficácia (não propriamente por invalidade, pois o tratado não é fundamento de validade, mas tão só um obstáculo à sua eficácia).” Prosseguindo o mesmo autor, em afirmação na qual também nos louvamos, que compete aos tribunais em geral fiscalizar a contradição, atento o princípio que resultava do artigo 207.º da Constituição e agora está plasmado no artigo 204.º. Ideias que também são referidas por Vasco Pereira da Silva, em “O Património Cultural da Igreja, inserto na obra citada da Almedina, a páginas 124 e seguintes.(3)

Temos, então e sempre pensando no que especificamente nos importa, uma hierarquia:
Primeiro, a Constituição da República;
Depois, as Concordatas entre Portugal e a Santa Sé (abstraindo agora da questão de saber qual delas deve ser tida em conta e de determinar se o seu não acatamento constitui também ofensa à própria Constituição);
Em terceiro lugar, as normas internas portuguesas.

XIV –
Esta hierarquia, na sua vertente relativa ao cotejo entre as normas da Concordata e as normas internas é, aliás, afirmada pelas próprias leis internas.
É o caso do artigo 44.º do Decreto-Lei n.º119/83, de 25.2:
“ A aplicação das disposições do presente Estatuto às instituições da Igreja Católica é feita com respeito das disposições da Concordata celebrada entre a Santa Sé e a República Portuguesa em 7 de Maio de 1940.”
Assim como o artigo 87.º n.º1 da Lei de Bases da Segurança Social (n.º32/2002, de 20.12), quando, reportando-se às instituições particulares de solidariedade social, ressalva a respectiva natureza, autonomia e identidade.
Trata-se, nestes casos, mais do que uma necessidade sob o ponto de vista técnico-jurídico, duma manifestação da sã e pacífica convivência que a separação constitucional não preclude, entre o Estado e a Igreja.

XV –
A hierarquia de que vimos falando entre as normas constantes das Concordatas e as normas de direito interno português leva-nos a atentar no teor daquelas.
E, curiosamente, ao afastamento da sua relevância, num estrito campo.
Expliquê-mo-nos:
De acordo com os artigos 3.º e 4.º da Concordata de 1940 a Igreja Católica em Portugal pode organizar-se livremente de harmonia com as normas de Direito Canónico e constituir dessa forma associações ou organizações que se administram livremente sob a vigilância e fiscalização da competente Autoridade eclesiástica.
Mas acrescenta-se:
“Se, porém, além de fins religiosos, se propuserem também fins de assistência e beneficência em cumprimento de deveres estatutários ou de encargos que onerem heranças, legados ou doações, ficam, na parte respectiva, sujeitas ao regime instituído pelo direito português para essas associações ou corporações…”
Por sua vez, a Concordata de 2004 também estabelece que:
“As pessoas jurídicas canónicas, reconhecidas nos termos do artigo 10.º, que, além de fins religiosos, prossigam fins de assistência e solidariedade, desenvolvem a respectiva actividade de acordo com o regime jurídico instituído pelo direito português…”
Ou seja, é o próprio regime concordatário, que, olhado em primazia, conduz à aplicação do direito interno português no que concerne à actividade assistencial das instituições. Não é este que prevalece relativamente àquele ou que se coloca a par dele, mas aquele que determina, em plano superior, a aplicação deste.

XVI –
Só que, no próprio artigo 4.º da Concordata de 1940 precisa-se que o regime instituído para o direito português para estas associações se tornará efectivo através do Ordinário competente.
Cremos estar aqui uma estatuição relativa à incompetência dos tribunais civis para impor o próprio “regime instituído pelo direito português”. Não quiseram os outorgantes o normal, ou seja, que fossem os tribunais civis portugueses a velarem pelo cumprimento do direito interno nacional.
E, lembrê-mo-nos sempre, estamos em plano hierarquicamente superior ao das normas de direito interno português.
Assim, o artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 519-C2/79 de 29.12. – que se mantém em vigor por força do disposto no artigo 98.º, al. b) do já falado Decreto-Lei n.º119/83, de 25.2 - e que estatui que compete aos tribunais conhecer das questões que se levantem entre as instituições e os seus associados tem de ceder – na sua interpretação, mais conforme, ainda que não expressa, de que se reporta aos tribunais civis – perante aquela disposição da Concordata que atribui competência ao Ordinário.
Do mesmo modo, se, interpretando o próprio Decreto-Lei n.º 119/83, chegássemos à competência dos tribunais civis, teríamos de a afastar porquanto, já em plano superior, a questão estava resolvida. A expressão “Sem prejuízo da tutela do Estado”, do artigo 48.º e, bem assim, o artigo 69.º, têm de ser interpretados no sentido de não beliscarem a competência atribuída ao Ordinário pela Concordata.(Cfr-se, a este propósito, as referências que faz Silvestre Ourives Marques, na mencionada publicação da Almedina, páginas 107).
Em contrário, a parte final daquele artigo 48.º deve ser entendida como reforçadora do que já consta daquele artigo 4.º da Concordata, precisando um caso de intervenção das autoridades eclesiásticas. Precisamente a da aprovação dos corpos gerentes das instituições.

XVII –
Esta nossa construção complica-se, no entanto, com a entrada em vigor, em 18.12.2004(4)
, da Concordata actualmente vigente.
Nela se continua, para além do regime de liberdade de organização em geral, o regime de livre constituição, modificação e extinção de pessoas jurídicas canónicas, com reconhecimento da personalidade jurídica por parte do Estado Português.
Tendo-se também atentado nas pessoas jurídicas canónicas que, além dos fins religiosos, prossigam fins de assistência e solidariedade. Estatuiu-se, em consonância com o que vinha da anterior concordata, que desenvolvem a respectiva actividade de acordo com o regime jurídico instituído pelo direito português e gozam dos direitos e benefícios atribuídos às pessoas colectivas privadas com fins da mesma natureza.

XVIII –
Mas existe uma diferença.
Desapareceu a referência do artigo 4.º da Concordata de 1940 quanto à imposição do direito português pelo Ordinário competente. Pelo contrário, ficou estatuído, no artigo 11.º, que, regendo-se as pessoas jurídicas canónicas pelo direito canónico e pelo direito português, cada um é aplicado pelas respectivas autoridades.
Está em causa a violação do direito canónico : será chamada a intervir a autoridade da Igreja. Está em causa a violação do direito interno português : recorre-se aos tribunais civis.

XIX –
Levantar-se-ia, então, a questão de saber se os autores invocam a violação do direito canónico ou do direito interno português.
O que eles invocam é a violação do compromisso e este situa-se no âmbito do direito canónico, pois até na parte final se refere, em letra manuscrita, que “estão conformes às Normas de Direito Geral da Igreja e do Regulamento Geral das Associações Religiosas”.
Manteve-se, pois, para este caso, a competência do Ordinário.

XX -
De qualquer modo, para o caso de se entender que os autores, numa perspectiva indirecta relativa ao modo de funcionamento das assembleias gerais das associações de acordo com o direito interno português, também invocam a violação deste, sempre haveria a considerar que:
A Concordata de 1940 deu lugar à de 2004 em 18.12.2004.
A deliberação da assembleia geral que se ataca teve lugar em 28.11.2004.

O artigo 65.º, n.º1 do Código de Processo Civil começa por ressalvar o que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais.
Fica, assim, novamente depositada no teor das Concordatas a resolução do conflito entre o Ordinário competente querido pela de 1940 e as autoridades civis que, nesta hipótese, poderiam ser chamadas.
Não se trata da aplicação do princípio da lei reguladora da competência emergente do artigo 22.º da LOFTJ. Não houve sucessão de competências de tribunais, em ordem a saber-se qual deles deve ser o competente. Trata-se antes de saber quem tinha a competência para fazer observar o direito que se invoca na petição inicial como violado.
E, assim sendo, entendemos que a competência há-de ser encontrada na disposição concordatária vigente ao tempo do acto que se ataca.
Segundo os autores, em 28.11.2004, foram violadas normas jurídicas cuja observação, porque vigorava a Concordata de 1940, havia de ser tornada efectiva pelo Ordinário competente. É junto dele que terão de ir.
Noutro entendimento – só admissível, aliás, dando de barato a extensão supra referida - estariam as autoridades civis portuguesas a invadir o que era da competência de outrem, a impor um direito quando não lhes cabia a elas impô-lo. Uma inaceitável retroactividade.

XXI –
A competência do Ordinário diocesano para casos com grandes semelhanças ao nosso corresponde, aliás, a orientação deste tribunal, plasmada nos Acórdãos de 11.7.1985 (BMJ 349, 432), 27.1.2005 e 17.2.2005, estes dois podendo ver-se em www.dgsi.pt. Ainda que não corresponda a orientação uniforme da nossa jurisprudência.

XXII –
Nestes termos, concede-se provimento ao recurso, revogando-se a decisão da Relação para subsistir a de primeira instância.
Custas pelos recorridos.

Lisboa, 26 de Abril de 2007

João Bernardo( relator)
Oliveira Rocha
Oliveira Vasconcelos
_____________________________
(1) Na enumeração da recorrente há dois números “48”.
(2) Este Decreto-Lei ressalva, logo no artigo 2.º, que “O Estatuto não é aplicável à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa”, mas esta ressalva – que, corresponde, aliás, ao que já vem de muito longe quando se estatui sobre as Misericórdias - não nos interessa para o presente caso
(3) A primazia das Concordatas é também afirmada, relativamente às normas constantes do Código de Direito Canónico, no cânone 3 deste.
(4) Artigo 33.º da própria Concordata e Aviso n.º23/2005 do MNE, publicado no Diário da República de 26.1.2005.