quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

AUTARQUIAS QUEREM GESTÃO DOS HOSPITAIS CONCELHIOS

A Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) reivindicou ontem (04.12.09) a gestão dos chamados hospitais concelhios. Durante a sessão de abertura do XVIII Congresso da ANMP, que está a decorrer em Viseu, o presidente do conselho directivo, o social-democrata Fernando Ruas, justificou que o poder local, por estar mais próximo das populações, pode ser uma "alavanca" para que se alcancem melhores resultados na área da saúde. Por esta razão exigiu também que os municípios tenham uma palavra a dizer no planeamento e programação de equipamentos de saúde, assim como na definição de políticas, nomeadamente em relação aos programas de cuidados continuados.
Estas mesmas reivindicações já haviam sido apresentadas nas conclusões do último congresso efaziam parte de um pacote que estava a ser negociado com o antigo ministro da Saúde, Correia de Campos, antes de ter saído do anterior Governo.
As reivindicações do presidente da ANMP foram feitas na presença da ministra da Saúde, que participou na abertura dos trabalhos. Ana Jorge limitou-se a reafirmar o empenhamento para continuar a trabalhar em parcerias nas áreas em que as autarquias passarão a assumir competências.
Público, pág. 13, 05.12.09

Decreto sobre a Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Alfaiates

Decreto sobre a Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Alfaiates
Manuel da Rocha Felício, Bispo da Guarda, no uso dos direitos e competências que lhe são concedidas pela Sé Apostólica
Tendo em conta que a Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Alfaiates é uma Associação de Fiéis e, enquanto tal, se regula pelo Direito Canónico, pelas Normas Gerais das Associações de Fiéis publicadas pela Conferência Episcopal Portuguesa em 2008, pelo seu Compromisso próprio e, enquanto IPSS, também pelo Decreto Lei n° 119/83;

Tendo sido levantadas dúvidas sobre a legitimidade de alguns “irmãos” intervirem como eleitores e elegíveis na assembleia eleitoral que esteve marcada para 7 de Fevereiro último;
Tendo constatado posteriormente que não há qualquer registo do cumprimento por parte dos “irmãos” inscritos do disposto no n° 4 do art° 8° do Compromisso desta Irmandade, onde expressamente se diz o seguinte: “A admissão dos novos irmãos somente será considerada definitiva depois de eles assinarem perante o Provedor documento pelo qual se comprometem a desempenhar os seus deveres de irmãos”;
Nomeio uma comissão administrativa para presidir à Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Alfaiates e com o mandato expresso de, no mais curto espaço de tempo possível, dar cumprimento às seguintes missões:

1ª) Executar o n° 4 do art° 8° do Compromisso desta Irmandade, considerando para o efeito já cumpridos os n°s 1, 2, 3 e 5 do mesmo art°. O cumprimento deste n° 4 do art° 8° para cada um dos “irmãos” inscritos será feito com a presença pessoal ou através de outra pessoa para o efeito credenciada ou através de carta devidamente assinada que ficará em arquivo.

2ª) Levar em linha de conta que a regularização a que se refere o n° anterior se restringe aos “irmãos” que foram inscritos na secretaria até à data que leva este decreto

3ª) Para efectivar o processo a que se refere o n° 4 do art° 8° do Compromisso, a Comissão Cdministrativa fica expressamente autorizada a usar dos poderes próprios da Mesa Administrativa.

4ª) Enviar à Cúria Diocesana, depois de completados os processos de admissão, um caderno onde conste o nome de todos e cada um dos irmãos admitidos. Este será também o caderno dos irmãos eleitores e elegíveis que constituirá a base do próximo acto eleitoral.

5ª) Marcar o próximo acto eleitoral que não poderá acontecer menos de um mês depois de apresentada na Cúria diocesana a documentação a que se refere o número anterior e também deve realizar-se no prazo máximo de meio ano, a contar da data deste decreto.

6ª ) Gerir os assuntos correntes da Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Alfaiates, nomeadamente os que derivam da sua condição de ser uma IPSS, com obrigação de convocar as assembleias gerais ordinárias previstas no seu Compromisso e na lei geral.
7ª ) Reunir regularmente, de acordo com a periodicidade prevista no Compromisso para a Mesa Administrativa, sendo destas suas reuniões elaboradas actas assinadas por todos os presentes.

8ª) Tal como o Compromisso determina para a Mesa Administrativa, esta Comissão deliberará, por maioria simples, usando o Presidente do voto de qualidade e só podendo haver deliberações quando estiver presente a maioria dos seus membros.

9ª) A esta Comissão Administrativa são conferidos poderes expressos para convocar uma assembleia geral extraordinária que aprecie e vote eventual alteração do art° do Compromisso onde se exige um mínimo de 200 irmãos para que uma assembleia geral possa funcionar.

10ª) A Comissão Administrativa da Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Alfaiates fica assim constituída:
Presidente: Diácono António Lucas Fernandes
Vogais: Joaquim Manuel Baptista Aparício, Maria Leonor Esteves Moreira, Messias Bairras.

A posse será dada no Paço Episcopal pelo Bispo Diocesano ou um dos seus Vigários devidamente mandatados para o efeito, estando presente o actual Provedor, que nesse momento cessará funções.
Deste Decreto será dado conhecimento à Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Alfaiates e à Comunidade Cristã local.

Guarda e Casa Episcopal, 24 de Março de 2009

+ Manuel Felício, Bispo da Guarda

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Arcebispo Primaz reúne com Misericórdias

O Arcebispo Primaz, D. Jorge Ortiga reúne-se, hoje, a partir das 11h00, com os provedores das Santas Casas da Misericórdia que actuam no âmbito territorial da Arquidiocese de Braga. O encontro, que deve juntar algumas dezenas de provedores e outros mesários das instituições cuja missão é colocar em prática as Obras de Misericórdia (corporais e espirituais), tem lugar no Centro Cultural e Pastoral arquidiocesano, no edifício do Seminário de Nossa Senhora da Conceição (Seminário Menor) e vai possibilitar uma reflexão conjunta da acção social daquelas instituições.

Publicado a 02-12-2009
Diário do Minho

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

O frade que é uma fraude histórica

O frade que é uma fraude histórica
por Licínio Lima

A Avenida Frei Miguel Contreiras existe. É uma transversal à Avenida de Roma onde está situado o Teatro Maria Matos. A atribuição foi deliberada pela Câmara de Lisboa em 1955, em homenagem ao frade espanhol que, segundo a História de Portugal, fundou a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa em 1498, juntamente com a rainha D. Leonor. Esta versão, porém, é uma pura mentira. Aquele frade é uma fraude, concluíram agora os investigadores, garantindo que tal pessoa nunca existiu.

A história também mente, gerando lendas e mitos que baralham a realidade. Isto aconteceu em Portugal em finais do século XV e inícios do século XVI. Conta a História oficial, em manuais e enciclopédias, que frei Miguel Contreiras, frade espanhol da Ordem da Santíssima Trindade, falecido em 1505, foi o grande instituidor e primeiro provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, fundada em 1498. As crónicas asseguram que, sendo confessor da rainha D. Leonor, e uma figura venerada por todos em Lisboa, a quem o povo chamava «o apóstolo dos pobres», a ele se deveu a motivação da monarca para erigir a histórica instituição de assistência aos mais carenciados – ainda hoje viva e pujante.
Para os portugueses tudo isto é tão real que, em 1955, a Câmara de Lisboa deliberou atribuir ao frade trinitário não uma simples rua ou calçada, mas uma avenida, numa das mais importantes artérias da capital, transversal à Avenida de Roma, onde se situa o Teatro Maria Matos – a Avenida Frei Miguel Contreiras.
Mas, ao contrário da patrona do teatro, que na realidade existiu, e muitos documentos o comprovam, o frade nunca existiu.
«A verdade é que, documentalmente, frei Miguel não existe, não sobrevivendo sequer em qualquer memória impressa ou manuscrita anterior a 1574-1575», garante Ivo Carneiro de Sousa no seu trabalho académico Da Descoberta da Misericórdia à Fundação das Misericórdias (1498-1525), apresentado quando da sua agregação à Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Segundo este investigador, as primeiras referências documentais sobre o frade, que levaram os historiadores a crer na sua existência, aparecem somente a partir de 1574. Ou seja, quando haviam passado já 76 anos desde a fundação da Santa Casa.
No mesmo sentido aponta o Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR) da Universidade Católica Portuguesa que anda há 12 anos a reunir toda a documentação sobre a história das Misericórdias. Na introdução do Volume 3 da Portugaliae Monumenta Misericordiarum – coordenado pela historiadora Isabel dos Guimarães Sá, professora na Universidade do Minho, pode ler-se: «Impõem-se algumas considerações finais sobre duas questões que a documentação aqui reunida esclarece pela negativa, isto é, pela ausência de referências que lhe são feitas.» E especifica-se: «Em primeiro lugar, a inexistência de qualquer menção à figura de frei Miguel Contreiras em todo o espólio reunido. A ter existido, e a ter tido qualquer intervenção relevante neste campo, o trinitário não deixou qualquer rasto na documentação coeva, o que é, pelo menos, estranho.» A segunda questão levantada naquele volume, sem interesse para este trabalho jornalístico, é relativa ao real papel da rainha na fundação da Misericórdia de Lisboa.

Estranho silêncio
«Estranho» é a expressão usada pelo CEHR para referir a inexistência documental do frade. Porém, pode perguntar-se: estará esta ausência de documentação relacionada com o seu carácter, tendo-se oposto, por humildade, à menção do seu nome em documentos?
A hipótese é absurda. Mas, a ser possível, teriam de existir referências noutros lados, nomeadamente nos escritos da rainha D. Leonor. «Conseguimos nos nossos diferentes trabalhos identificar dezenas e dezenas de colaboradores religiosos da monarca, incluindo os seus principais confessores – franciscanos, lóios, alguns bispos – mas nunca se encontrou a mínima referência a qualquer frei Miguel Contreiras», garante Ivo Carneiro de Sousa, que adianta: «Com efeito, toda a extensa documentação que temos vindo a resumir e a estudar em torno de D. Leonor nunca identificou qualquer colaborador da rainha próximo da figura do frade trino.»
Embora sem referências em Portugal, pode, porém, admitir-se a existência nos arquivos da Ordem da Santíssima Trindade, fundada em Marselha, em 1198, de que frei Miguel, alegadamente, era membro.
Mas nem aqui a questão se resolve. E descobriu-se isso de forma curiosa.
Era o ano de 1997. Na União das Misericórdias Portuguesas (UMP) preparava-se a celebração do quinto centenário da fundação de várias Santas Casas contemporâneas da de Lisboa. Foi quando Manuel Ferreira da Silva, actual responsável pelo centro de documentação da instituição, director e fundador do jornal Voz das Misericórdias, recebeu uma carta de um frade trinitário que, em Roma, preparava uma tese de doutoramento sobre a história da Ordem da Santíssima Trindade.
Nessa missiva, conta Ferreira da Silva, o frade, de nome Pedro Alíaga, explica que ao passar por Ceuta reparou que num dos conventos da sua Ordem havia referências a umas «possessiones» da Misericórdia de Lisboa. E pergunta: «Existe ainda esta Misericórdia? Pode enviar-me alguma documentação?» Ferreira da Silva, surpreendido, diz-lhe que a Santa Casa de Lisboa não só está viva, e pujante, como na sua génese prima um seu antigo confrade, de nome frei Miguel Contreiras, e conta-lhe a circunstância de este ter sido o confessor da rainha D. Leonor, etc., recitando a História de Portugal. Com a resposta, enviou-lhe também o livro que acabara de escrever a propósito do quinto centenário: Rainha D. Leonor e as Misericórdias Portuguesas, com mais informação.
Frei Alíaga voltou ao assunto passados uns tempos. Na sua segunda missiva já garantia que havia vasculhado os arquivos dos frades trinos em Roma, em que constam os nomes de todos os membros da ordem, desde a fundação, e que sobre frei Miguel Contreiras nenhuma referência encontrara. E pergunta: «Quem é esse frade?»
O director do Voz das Misericórdias, na altura com 77 anos – hoje tem 90 –, pensou que do outro lado estaria algum brincalhão. Mas um pormenor chamou-lhe a atenção. Frei Alíaga enviara-lhe também um livro sobre a história da Ordem da Santíssima Trindade, com artigos de vários autores, incluindo alguns portugueses, e verificou que em nenhum deles se faz qualquer menção nem a Portugal nem à Misericórdia de Lisboa. Neste sentido, questionou: «Será que os frades trinos quiseram apagar Contreiras da sua memória?»
Demonstrado o vazio em Roma, sobrava ainda uma hipótese. E em Espanha, nomeadamente em Valência, onde se diz que o frade trino terá nascido, haverá alguma referência à sua pessoa?
Isabel dos Guimarães Sá, que escreveu o livro Quando o Rico Se Faz Pobre: Misericórdias, Caridade e Poder no Império Português – 1500-1800, é taxativa: «A contribuição real de frei Miguel Contreiras para a criação da Misericórdia de Lisboa é desconhecida. De concreto, sabemos muito pouco acerca desta figura: que seria castelhano e que pertencia à Ordem da Trindade. Foi pelo menos o que ficou a constar; mas sem quaisquer provas documentais a confirmar. Nem nos arquivos da Ordem Trinitária em Espanha.»
Os historiadores já praticamente abandonaram a hipótese de que frei Miguel tenha existido. Mas há uma excepção. Veríssimo Serrão, catedrático da Universidade de Coimbra e ex-presidente da Academia Portuguesa de História, no seu livro sobre a Misericórdia de Lisboa, de 1998, mantém vivo e intacto o frade espanhol. O historiador apresenta-o fiel à tradição, convencido da sua existência. Foi com essa mesma convicção que a Câmara de Lisboa o colocou na toponímia em 1955.
Na UMP, porém, havia dúvidas, e estava em marcha a celebração do pentacentenário de várias Santas Casas. O padre Vítor Melícias, que então presidia à instituição, e que também já havia sido provedor da Misericórdia de Lisboa, solicitou ao CEHR da Universidade Católica que fizesse o levantamento de toda a documentação disponível sobre as Misericórdias portuguesas. Esse trabalho está hoje bastante adiantado – já vai em sete volumes – e uma das conclusões é precisamente esta: «Não há documentos que comprovem a existência de frei Miguel Contreiras.» As investigações de Ivo Carneiro de Sousa vão no mesmo sentido: «A respeito de Contreiras nada existe de concreto, de real e verdade confirmada, que nos permita redigir a seu respeito uma certidão de óbito.» Em suma, segundo os investigadores, nenhum documento existe a comprovar que Contreiras tenha estado ligado à fundação da Misericórdia de Lisboa, em 1498, ou que tivesse sido o seu primeiro provedor, ou que fora uma figura próxima da rainha D. Leonor.

A necessidade de um mito
Quem inventou, então, frei Miguel Contreiras? Como foi possível que a lenda tenha invadido a investigação académica ao ponto de a história a assumir como verdade até hoje?
Tudo tem explicação. Naquele tempo existia em Portugal uma instituição religiosa chamada Ordem da Santíssima Trindade, fundada em Marselha em 1198. Depois de se instalarem em Espanha, os frades, em 1207, trouxeram-na para Portugal. Resgatar cativos era a missão específica que o papa lhes atribuíra desde o início. Em época de conquistas e descobrimentos, muita gente ficava presa em reinos de aquém e de além-mar, muitas vezes às mãos de corsários. Para alguns, só a troco de dinheiro era a liberdade conseguida. Assim, quando se anunciava a possibilidade de resgatar alguém, logo os frades promoviam peditórios pelas ruas de Lisboa até conseguirem o montante necessário. Por cada cativo pagavam, em média, 350 patacas e, por vezes, 410. D. Sebastião, em documento de 16 de Maio de 1561, chegou mesmo a conferir-lhes o exclusivo dos resgates em terra de muçulmanos.
Em meados do século XVI já as Misericórdias estavam espalhadas pelo país e com uma forte dinâmica de gestão no campo da solidariedade social. Nos reinados de D. Sebastião e do cardeal D. Henrique, recorde-se, foi-lhes atribuída, nomeadamente, a administração dos hospitais civis. Assim, foram deixando de ser «corporações de mão-morta» – cujo único rendimento, por lei, só poderia advir das esmolas. Aos poucos foram-se transformando em instituições jurídicas com competência para gerir bens. No início da segunda metade do século XVI, o seu poder económico e de influência chamava a atenção.
Nessa época, os trinitários encontravam-se mergulhados numa crise. Os cativos eram cada vez menos, e a sua credibilidade junto da população também não era a melhor. Candidatos a frades trinitários quase não existiam. Ivo Carneiro de Sousa conta que o próprio poder central, já no tempo de D. João II, quis «estatizar» a remissão dos cativos, chegando mesmo a criar uma provedoria para esse efeito. A Misericórdia quis também, a certa altura, assumir essa provedoria, e fazia pressão para que isso acontecesse. Os frades encontravam-se, pois, sem perspectivas de futuro. Nem a benesse de D. Sebastião foi suficiente para os revigorar.
No meio da aflição, os responsáveis trinitários apelavam ao papa para que lhes restituísse a total administração e encargo dos cativos. Mas sem êxito. A Ordem corria o perigo de se extinguir em Portugal.

A invenção de um nome
Corria o ano 1574 – 76 anos depois da criação da Santa Casa – e, estando os frades mergulhados na crise, o então responsável pela Ordem da Trindade em Portugal, frei Bernardo da Madre de Deus, enviou uma representação à Misericórdia de Lisboa com dois pedidos concretos: primeiro, que a figura de frei Miguel Contreiras voltasse a ser pintada nas suas bandeiras, justificando-se que se tratava de um «antigo costume» caído em desuso com o tempo; segundo, que a pintura do frade passasse a constar em todas as caixas de esmolas da Santa Casa espalhadas pelas igrejas da cidade.
Os responsáveis da confraria ficaram surpreendidos. Na resposta, garantem que nunca tinham ouvido falar de tal frade nem em tais desenhos.
Mas frei Bernardo não desarmou. Em seguida, recorre ao bispo de Lisboa, D. Jorge de Almeida, e, num verdadeiro golpe de génio, pede-lhe autorização para formar aquilo a que hoje chamaríamos tribunal arbitral. O objectivo era inquirir testemunhas que tivessem ouvido falar de Contreiras e do seu papel na fundação da Misericórdia, com vista a provar a sua existência.
Os requerimentos à Misericórdia e ao bispo eram sempre devidamente fundamentados. Frei Bernardo «defendia, em termos concretos, que havia sido “frei Miguel Contreiras, mestre em a Sagrada Teologia, primeiro e principal que instituiu esta santa irmandade”, como se provava, a seu ver, pela vetusta tradição de o representar e identificar nas bandeiras da confraria», conta Ivo Carneiro de Sousa.
Com os argumentos, frei Bernardo enviava também elementos biográficos. Frei Miguel era descrito como frade e prior do Convento da Trindade situado junto à muralha de Lisboa, em São Roque, onde teria chegado aos 56 anos, vindo de Espanha, e onde falecera em 1505. Era ainda referido como percorrendo habitualmente as ruas de Lisboa, sempre acompanhado por um anão e por um jumento, esmolando caritativamente para presos e doentes, enquanto a população, «ao ver passar tão piedosa figura», parava, exclamando: «Aí vai o apóstolo de Lisboa, o pai dos pobres, o amparo das órfãs, o remédio de todos.» Nessas mesmas notas, o frade surgia como um pregador importante devido aos seus sermões na Sé e noutras igrejas, privando com os grandes de Portugal, mas vivendo entre os pobres e indigentes. Confessava toda a gente e acompanhava os defuntos até à sepultura. Terá morrido aos 74 anos e - segundo frei Bernardo – esse facto provocou uma geral comoção na cidade. Naquele mesmo convento terá sido enterrado, em campa rasa, sem grandes honras, como um pobre. O convento desapareceu no terramoto de 1755.
Estes memorandos biográficos eram divulgados à medida que iam sendo escritos. Mas a bandeira, em que alegadamente o «apóstolo de Lisboa» teria estado desenhado, era, quase em exclusivo, a grande prova da sua existência. Era neste pormenor que frei Bernardo insistia.
Ivo Carneiro de Sousa explica que todas as irmandades, inclusive as que já vinham da Idade Média, possuíam uma bandeira, o estandarte da instituição, adornada com uma iconografia muito genérica. Geralmente apresentavam uma imagem da Virgem Maria com um largo manto que a todos acolhia. De um lado, aparecia o poder espiritual – papa, cardeais, bispos… –, do outro, o poder temporal – imperador, rei, rainha, etc.
«Algumas bandeiras quinhentistas exibiam, de facto, uma pequena legenda com as iniciais F.M. – e não o trigrama F.M.I. – que podemos acreditar quererem dizer simplesmente Fraternitate Misericórdiae (Irmandade da Misericórdia). A inscrição encontra-se em alguns desenhos e iluminuras ligados às Misericórdias portuguesas e que julgamos seguir de perto a iconografia das bandeiras de outras companhias da Misericórdia, como por exemplo a de Florença [Itália]», esclarece o professor do Porto, assegurando que nunca ninguém demonstrou que tivesse existido o desenho de frei Miguel na primeira bandeira da Misericórdia de Lisboa, tal como defendeu o responsável dos trinitários.

A violação da história
Mas perante a insistência dos frades, que já tinham envolvido o bispo de Lisboa na contenda, e face à acumulação dos dados biográficos que iam recebendo, os responsáveis da Santa Casa, ainda em 1574, decidiram formar uma comissão para analisar o pedido de frei Bernardo. O grupo de trabalho foi formado por 12 membros da irmandade: seis nobres e seis artistas.
Entretanto, foi também criado o tribunal proposto ao bispo de Lisboa, tendo sido arroladas 18 testemunhas. Pouco credíveis, segundo Ivo Carneiro de Sousa. «Todas as testemunhas do processo eram ou trinos ou pessoas indicadas pelo próprio frei Bernardo, não tendo apresentado qualquer prova documental a comprovar as pretensões defendidas pelo provincial, testemunhando apenas alguns dos intervenientes “ouvirem dizer” que nas bandeiras primitivas da Misericórdia de Lisboa se encontrava pintado um frade da Trindade», conta o professor, que observa ainda: «Das 18 testemunhas inquiridas só quatro tinham ouvido falar de Contreiras, nomeando-o de formas diversas: Mestre Miguel, Castelhano, Frei Miguel de Valença ou, simplesmente, Frei Miguel.» Mas apesar de os testemunhos serem difusos, os pormenores biográficos que iam surgindo eram concretos. Biografia essa que invadiu a história e a investigação. A figura do frade acompanhado do jumento e do anão chegou, como sendo facto real, até aos nossos dias.

A facada na história
Aqueles apontamentos biográficos acabaram por produzir algum efeito. A 15 de Setembro de 1576, dois anos após a detonação da polémica, a comissão de seis nobres e seis artistas decide então aceitar a tese de frei Bernardo. Que pressões estiveram por detrás de tal decisão? Ninguém sabe…
O certo é que, a partir daquela data, as bandeiras da Misericórdia passaram a exibir um rei e uma rainha, em memória de D. Manuel e D. Leonor, «como primeiros irmãos da irmandade», e um «religioso da Santíssima Trindade, grave, velho e macilento, de joelhos e mãos levantadas com estas letras: F.M.I. – que querem dizer “Frei Miguel Instituidor”». Mais tarde, frei Bernardo viu também satisfeito o seu outro pedido: todas as caixas das esmolas da irmandade, espalhadas pelas igrejas da cidade, passaram a estar pintadas com um frade trino.
A comissão da Santa Casa justificou a sua decisão frisando que, além de «mestre em a sagrada Teologia», frei Contreiras foi também, note-se, «confessor da Augustíssima Rainha D. Leonor». Ora, nunca antes frei Bernardo referira, em lado algum, que o frade espanhol havia sido confessor da monarca. Este acrescento, que invadiu depois a investigação histórica, terá sido como que uma «saída airosa» perante a pouca consistência da tese da bandeira. A Misericórdia, com aquela decisão, proclama Contreiras como «instituidor» da irmandade de Lisboa, lembrando que desta, «como de fonte, manaram todas as demais do Reino» – lê-se no decreto. A maior mentira da história acabara de ser desenhada. A figura da rainha D. Leonor, enquanto verdadeira fundadora da Santa Casa, fora «assassinada».

A consolidação espanhola
Entretanto, a partir de 1580, Portugal passou a ser governado de Madrid, com a entrada em cena dos reis Filipes de Espanha. Os monarcas, com agrado, viram a pujança das Misericórdias, já espalhadas por todo o país, enaltecendo o facto de na sua génese ter estado um concidadão espanhol.
Os frades trinos, por seu lado, mantinham aceso o objectivo de abandonar a remissão dos cativos, que esteve na génese da sua criação, e que já quase não fazia sentido, além de não dar lucro, para se dedicarem à gestão de obras de caridade. Assumir o controlo da Misericórdia de Lisboa seria o seu objectivo. Mas a mudança de carisma só era possível mediante uma autorização papal. O reconhecimento de frei Miguel como instituidor da Santa Casa de Lisboa, que já haviam logrado em 1576, foi um importante passo para figurar como elemento justificativo nos requerimentos enviados ao papa. Com a vinda dos Filipes, e tendo em conta a nacionalidade do frade, foi fácil para a Ordem da Trindade obter mais apoios para a sua causa.
Foi neste contexto que, a 26 de Abril de 1627, «Filipe III obrigou todas as Misericórdias do Reino a pintarem as suas bandeiras seguindo o modelo do pendão da confraria-mãe de Lisboa», conta Ivo Carneiro de Sousa. A partir daquela data, o F.M.I. cravado nas bandeiras alargou-se a todas as Santas Casas. Com aquele gesto, o rei dizia ao país e ao mundo, e ao Vaticano, que foi um frade espanhol da Ordem da Santíssima Trindade o grande fundador das Misericórdias.
Esta deliberação, porém, foi vista como uma imposição, uma afronta, espanhola. Por isso, com a Restauração, em 1640, e expulsos os espanhóis de Portugal, a maior parte das Misericórdias retirou o F.M.I. das suas bandeiras.
Com esta reviravolta política, o ataque dos trinitários à Misericórdia de Lisboa também desapareceu. Mas, sem nunca abandonar as teses de frei Bernardo. Para os frades portugueses da Ordem da Santíssima Trindade, frei Miguel passou a ser uma figura real que os ligava à génese da Misericórdia de Lisboa, mantendo todos os ingredientes biográficos inventados em 1574.
Uma das representações mais completas e pormenorizadas da fundação da Misericórdia de Lisboa surge nas páginas do célebre Santuário Mariano, da autoria de frei Agostinho de Santa Maria. A obra, escrita em 1707, apresenta Contreiras como primeiro provedor da Misericórdia de Lisboa e co-autor dos estatutos (Compromisso), sendo descrito com todas as virtudes de «santo e venerado varão». Frei Bernardo conseguira criar uma lenda chamada frei Miguel Contreiras.

A consagração histórica
Chegados aos fins do século XIX, e com a ascensão da maçonaria em Portugal, rebenta o debate sobre o papel da Igreja no seio das Misericórdias. Os iluminados da Revolução Francesa laicizante defendiam que a Misericórdia deveria ser separada da confraria. Esta poderia continuar dedicada aos serviços religiosos, enquanto a Misericórdia, gerida pela sociedade civil, se dedicaria aos serviços de apoio social – gestão de hospitais, assistência aos pobres, etc., independente da Igreja.
Estando este debate no ar, Costa Goodolphim escreveu em 1897 a obra As Misericórdias, fazendo a apologia da ligação da Igreja às Santas Casas, desde a sua génese. Com uma tese antilaicista, ou antimaçónica, em defesa dos valores cristãos, e tendo como principal fonte histórica frei Agostinho de Santa Maria, Goodolphim apresenta Contreiras como tendo sido «a alma, a cabeça pensante» daquelas instituições. Na mesma altura surgiram uma série de artigos da autoria de Vítor Ribeiro intitulados «Exemplos de bem: frei Miguel Contreiras». Este autor, assim como Costa Goodolphim, «exultam a figura do frade trino». O objectivo terá sido o de fundamentarem as raízes espirituais das Misericórdias, considera Ivo Carneiro de Sousa.
A invenção de frei Bernardo, já consolidada por frei Agostinho de Santa Maria, foi assim consagrada por Goodolphim e Vítor Ribeiro. Nunca ninguém colocou em dúvida a honestidade intelectual destes historiadores. Nem mesmo Veríssimo Serrão, em 1998.
Há, no entanto, uma excepção a que nunca ninguém ligou. Em 1932, Artur de Magalhães Basto escreveu a História da Misericórdia do Porto e, preto no branco, assume que frei Miguel Contreiras nunca existiu. O autor estudou a fundo os depoimentos das 18 testemunhas chamadas a tribunal por frei Bernardo, em 1574, cuja documentação continua disponível para os investigadores, tendo concluído o que agora a maioria dos historiadores já assume. Artur de Magalhães Basto, contudo, acabou por não ter qualquer impacte na historiografia. A sua tese foi vista como uma tentativa demagógica de enaltecer a Misericórdia do Porto em detrimento da de Lisboa.
A 9 de Agosto de 1939, o município da capital encomendou a Gustavo de Matos Sequeira uma história da cidade. A obra paga totalmente pela câmara, intitulada Carmo e a Trindade, volta a exaltar Contreiras, na linha de Gooldophim e de Vítor Ribeiro. «Frei Miguel era a providência dos pobres. Adoravam-no. Quando pregava na Igreja, enchia-se esta até à porta e transbordava até ao rossio da Trindade. Quando morreu, a populaça alfacinha pôs luto no coração», escreveu Gustavo de Matos Ferreira no primeiro dos três volumes da sua obra.
Foi citando este autor que a Câmara de Lisboa deliberou em 1955 atribuir o nome de uma avenida ao frade trinitário que a história consagrou como o grande instituidor das Misericórdias, mas que, na realidade, nunca existiu. Na luta pela sobrevivência, uma ordem religiosa inventou um espanhol para ser lenda na História de Portugal.

Retratos espalhados pelo mundo
Um enorme retrato de frei Miguel Contreiras permanece na sala da administração da Misericórdia de Lisboa. Trata-se de uma imagem pintada por Tomás da Conceição, a pedido do provedor Tomás de Carvalho. Pensa-se que terá sido uma cópia ampliada e melhorada a partir de um outro retrato pintado em 1776 por Carlos António Leonni que actualmente se encontra na Biblioteca Nacional. Desconhece-se que figura inspirou este último. Também no Brasil, onde actualmente existem cerca de cinco mil Misericórdias, nascidas a partir do exemplo da de Lisboa, se ergueu uma estátua de frei Miguel Contreiras. O testemunho público de homenagem ao frade encontra-se exposto no vestíbulo do Hospital da Misericórdia do Rio de Janeiro, mesmo ao lado da do padre Anchieta, o fundador daquela Santa Casa. Anchieta, o missionário jesuíta de origem espanhola, fundador da cidade de São Paulo e beatificado pelo papa João Paulo II em 1980, é uma figura venerada em todo o Brasil, que se estuda nas escolas do ensino básico. As estátuas estão lado a lado desde 1841.

A pujança das Misericórdias
A primeira Misericórdia portuguesa é a de Lisboa, nascida em 1498, com o impulso da rainha D. Leonor, viúva do rei D. João II, e do seu irmão o rei D. Manuel I. Ainda no tempo destes dois monarcas foram fundadas várias Misericórdias ao longo do país, nomeadamente as de Porto, Viseu e Braga, também a de Goa, na Índia, entre outras. Hoje existem cerca de quatrocentas em Portugal. No Brasil são mais de cinco mil. Em África são várias. Paris e Luxemburgo também as têm e estão activas. Há ainda uma Misericórdia na Ucrânia, e poderá brevemente nascer outra na Rússia. A de Lisboa é a única que, em Portugal, é do Estado e é gerida com o estatuto de fundação. Sempre que muda a cor política do governo muda também o provedor. As demais Misericórdias pertencem à Igreja, e os provedores são eleitos pelos irmãos em assembleia geral. A eleição tem de ser sempre ratificada pelo bispo da diocese correspondente. Tal como no século XIX, estando actualmente pujante a actividade das Misericórdias, que vivem na subsidiodependência do Estado, com muito dinheiro envolvido, e com dirigentes a saltarem das instituições do Estado para as Misericórdias, e vice-versa, conforme vão mudando os governos, há agora um movimento que pretende afirmar a autonomia dessas instituições face à Igreja. A Conferência Episcopal Portuguesa faltou à tomada de posse dos dirigentes que neste momento estão à frente da União das Misericórdias Portuguesas. O conflito está aberto.

«Julgo que é uma lenda»
VÍTOR MELÍCIAS, ex-presidente da União das Misericórdias Portuguesas
«Entendo que se deve aprofundar a investigação histórica sobre a matéria, embora dos últimos dados publicados pelos peritos vá resultando a convicção que, de facto, não há possibilidade de se ver uma prova inequívoca e cabal de que Frei Miguel tenha existido historicamente. Há dados no processo histórico que me causam as maiores reservas. O caso, por exemplo, de ser evocado que F.M.I., que vem referido em várias bandeiras, possa significar Frei Miguel Instituidor. Para mim, não parece ter o mínimo de fundamento. As insígnias das instituições tinham inscrito Fraternitatis Misericordiae Insigniam (Insígnia da Fraternidade da Misericórdia). Nada disto tem a ver com o velho senhor que seria representado na bandeira da Santa Casa de Lisboa. Mas, a verdade é que se transformou num mito. Alguns historiadores veicularam a convicção que ele teria, de facto, existido e que teria tido um papel importante na nobilização da solidariedade lisboeta em favor dos mais pobres. Muito disto julgo que é lenda, e não propriamente um mito. Seria importante aprofundar ainda mais a investigação histórica. E procurar critérios mais adequados para que de uma vez por todas se afira se Frei Miguel existiu ou não».

É uma fraude documental
ISABEL DOS GUIMARÃES SÁ, historiadora
«O historiador Artur de Magalhães Basto, no seu estudo sobre a Misericórdia do Porto, publicou uma série de documentos que punham em dúvida a existência de Frei Miguel. Com efeito, apresenta um processo cujos documentos se reportam aos anos de 1580-1590, posteriores em muito ao frade, supostamente confessor de D. Leonor (1458-1525). Na altura, esse processo destinava-se a apoiar uma pretensão de monopólio dos resgates de cativos no Norte de África por parte da ordem dos trinitários, que efectivamente tinha essa como sua especialidade, sendo que uma das concorrentes a essa actuação seria a Misericórdia de Lisboa. A existência do frade, castelhano, era muito conveniente, tanto mais que os reis de Portugal da altura eram os Filipes.
Magalhães Basto, um pouco contra a corrente mainstream, protagonizada pelo médico-historiador Fernando da Silva Correia, atreveu-se a negar portanto a existência do frade. Mais tarde, já na década de 80-90 do século XX, Ivo Carneiro de Sousa retomou o assunto, corroborando que na sua tese de doutoramento sobre D. Leonor o frade não aparecia na documentação. Ainda mais recentemente, a propósito de uma biografia da mesma rainha (a publicar em breve), continuo a não encontrar referencias ao frade, nem sequer a um frei Miguel. Tudo aponta portanto para que se trate de uma fraude documental ocorrida no final do século XVI, o que, à luz da feroz concorrência entre instituições, faz todo o sentido. Não se encontram vestígios documentais de Frei Miguel Contreiras. As buscas prosseguem no entanto, havendo até algum ‘sebastianismo’ em torno desta figura, que pode aparecer eventualmente na documentação. É pouco provável, tanto mais que ela não é muita, depois das perdas causadas pelo terramoto de 1755. Mas creio que ainda há quem procure. Em todo o caso, se o nome da rua de Lisboa é o problema, tem valor histórico mais por se reportar a uma época (o Estado Novo) do que propriamente validade científica. Continua a ser testemunho da ignorância dos políticos sobre os conhecimentos que a investigação histórica produz. Mas que Magalhães Basto fez um estudo muito sério da questão, não há como negar».

«O homem andou por aí»
VERÍSSIMO SERRÃO, historiador
«Há duas ou três notas sobre o aparecimento de Frei Miguel Contreiras. Se amanhã houver alguém que negue a veracidade dessas notas teremos de aceitar isso. Não posso jurar a pés juntos que Frei Miguel Contreiras tenha existido. Mas também não há nenhum interesse em mostrar que ele não existiu. Na altura, as pessoas da aristocracia tinham os seus confessores, os seus informadores. Os fenómenos de piedade, da reverência, eram muito ouvidos. Mas, de facto, não se conhece nada da vida de Miguel Contreiras, e as notícias sobre a sua existência são secundárias. Agora, não podia fazer um livro a pedido da provedora (Fernanda Mota Pinto) também negando logo essa ligação de frei Miguel à Misericórdia: que veio para Lisboa, quer era confessor da rainha D. Leonor, etc.. Não há nada que o afirme, mas também não há nada que o desminta. As enciclopédias mantêm o que diz a tradição. Não há nada que diga que se trata de uma ilusão ou de uma fantasia. Na Santa Casa existe um quadro do frade, tal como em muitas igrejas das Misericórdias espalhadas pelo país».

Algumas perguntas
LICÍNIO LIMA, jornalista
Impõe-se perguntar: Como foi possível? Como foi possível criar-se assim uma lenda na história de Portugal? Como foi possível que tivesse perdurado mais de cinco séculos?
Não havendo dúvidas quanto ao que é descrito nas páginas desta revista, é chegada a hora de os historiadores tomarem a palavra e obrigarem os nossos manuais e enciclopédias a alterarem as suas verdades. É a hora de trazer a verdade para a história. As consequências terão de ser visíveis ao nível da toponímia de Lisboa, devendo também a Academia Portuguesa de História manifestar-se relativamente ao assunto. Pode não ser grave, nem ter causado grandes prejuízos. Mas a verdade é a verdade. E a verdade histórica tem de se impor. Mas cuidado com o que se pretende fazer com a verdade histórica. Usar esta investigação para desligar as Misericórdias da Igreja, com o fundamento de que a sua génese é puramente laica, sem raízes espirituais, tal com pretenderam fazer no século XIX, é também uma fraude. Tão grande quanto foi a invenção de frei Miguel Contreiras. A rainha D. Leonor fundou as Santas Casas para elas serem face visível da caridade cristã. E é isso que devem continuar a ser. Exceptua-se aqui, evidentemente, a de Lisboa. A sua nacionalização e o seu actual estatuto jurídico, de Fundação, são também, como frei Miguel, uma monumental fraude nacional.

Notícias Magazine - 29NOV2009

Avenida Frei Miguel Contreiras pode mudar de nome

Investigação
Avenida Frei Miguel Contreiras pode mudar de nome
por LICÍNIO LIMAHoje

O frade que dá nome a uma avenida da capital e que as enciclopédias históricas referem como fundador da Misericórdia de Lisboa, em 1498, nunca existiu. Investigadores falam em fraude histórica do século XVI

A atribuição do nome de Frei Miguel Contreiras a uma Avenida, em Lisboa, "é o testemunho da ignorância dos políticos sobre os conhecimentos que a investigação histórica produz", diz Isabel dos Guimarães Sá, historiadora da Universidade do Minho, frisando que não há documentos históricos que comprovem a existência daquele frade, tido como o fundador da Misericórdia de Lisboa, em 1498, a par da rainha D. Leonor. A opinião da historiadora é partilhada por outros investigadores, que concluem que aquele frade foi uma invenção da Ordem dos Trinitários, em luta pela sobrevivência.

Reagindo a esta alegada "fraude histórica" , noticiada ontem na Notícias Magazine, o actual provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Rui Cunha, em declarações ao DN, considera a discussão "estimulante" , e apela para que os historiadores a aprofundem.

Fonte oficial da autarquia lisboeta, por sue lado, explicou que cabe agora à comissão de toponímia avaliar os dados históricos disponíveis e decidir se a avenida vai ter de mudar de nome.

Foi em 1954 que a Câmara de Lisboa incluiu Frei Miguel de Contreiras na toponímia da cidade (ver caixa). A fundamentação histórica foi retirada da obra de Gustavo de Matos Ferreira, de 1939, intitulada "O Carmo e a Trindade".

O autor elabora a história da Capital e apresenta Miguel de Contreiras como um frade pertencente à Ordem da Santíssima Trindade, confessor da rainha D. Leonor, e por todos conhecido em Lisboa. "Frei Miguel era a providência dos pobres. Adoravam-no. Quando pregava na Igreja, enchia-se esta até à porta e transbordava até ao rossio da Trindade. Quando morreu, a populaça alfacinha pôs luto no coração". Esta descrição de Matos Ferreira foi retirada de autores do século de XIX, nomeadamente de Costa Goodolphim e Vítor Ribeiro que também apresentavam o frade trinitário como "a alma, a cabeça pensante" da Misericórdia de Lisboa". Aqueles dois autores, por sua vez, inspiraram-se nas páginas do célebre "Santuário Mariano", da autoria de Frei Agostinho de Santa Maria. A obra escrita em 1707 apresenta Contreiras como primeiro provedor da Misericórdia de Lisboa e co-autor dos estatutos (Compromisso), sendo descrito com todas as virtudes de "santo e venerado varão".

Mas, "a verdade é que, documentalmente, Frei Miguel não existe, não sobrevivendo sequer em qualquer memória impressa ou manuscrita anterior a 1574-1575", garante Ivo Carneiro de Sousa na sua tese "Da Descoberta da Misericórdia à Fundação das Misericórdias (1498-1525)", apresentada aquando da sua agregação à Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

Segundo este investigador, as primeiras referências documentais sobre o frade, que levaram os historiadores a crer na sua existência, só aparecem a partir de 1574, já 76 anos depois da fundação da Santa Casa.

No mesmo sentido aponta o Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR) da Universidade Católica Portuguesa que anda há 12 anos a reunir toda a documentação sobre a história das Misericórdias. Na introdução do Volume 3 da Portugaliae Monumenta Misericordiarum - coordenado pela historiadora Isabel dos Guimarães Sá, professora na Universidade do Minho, pode ler-se: "Impõe-se algumas considerações finais sobre duas questões que a documentação aqui reunida esclarece pela negativa, isto é, pela ausência de referências que lhe são feitas". E especifica-se: "Em primeiro lugar, a inexistência de qualquer menção à figura de Frei Miguel de Contreiras em todo o espólio reunido. A ter existido, e a ter tido qualquer intervenção relevante, o trinitário não deixou qualquer rasto na documentação coeva, o que é, pelo menos, estranho". Ivo Carneiro acrescenta: "O que existe sobre frei Miguel não chega, sequer, para fazer uma certidão de óbito."

Segundo os investigadores, frei Miguel foi inventado pelos trinitários que, na altura, queriam tomar conta da Misericórdia de Lisboa.
Diário de Notícias - 30NOV2009

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Direitos da Criança: Convenção sobre os Direitos da Criança

Direitos da Criança: Convenção sobre os Direitos da Criança

(Assinada por Portugal a 26 de Janeiro de 1990 e aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 20/90, de 12 de Setembro. Ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 49/90, da mesma data. Ambos os documentos se encontram publicados no Diário da República, I Série A, n.º 211/90. O instrumento de ratificação foi depositado junto do Secretário-Geral das Nações Unidas a 21 de Setembro de 1990)

A Assembleia Geral
Lembrando as suas resoluções anteriores, em especial as resoluções 33/166 de 20 de Dezembro de 1978 e 43/112 de 8 de Dezembro de 1988, e as resoluções da Comissão dos Direitos do Homem e do Conselho Económico e Social relativas à questão da elaboração de uma convenção sobre os direitos da criança,

Tomando nota, em particular, da resolução 1989/57 de 8 de Março de 1989 (1) da Comissão dos Direitos do Homem pela qual a Comissão decidiu transmitir o projecto da Convenção sobre os Direitos da Criança, através do Conselho Económico e Social, à Assembleia Geral, bem como a resolução 1989/79 de 24 de Maio de 1989 do Conselho Económico e Social.

Reafirmando que os Direitos da Criança exigem uma especial protecção e melhorias contínuas na situação das crianças em todo o mundo, bem como o seu desenvolvimento e a sua evolução em condições de paz e segurança.

Profundamente preocupada pelo facto de a situação das crianças permanecer crítica em muitas partes do mundo, como resultado de condições sociais inadequadas, calamidades naturais, conflitos armados, exploração, analfabetismo, fome e deficiências, e convicta de que é necessária uma acção nacional e internacional urgente e efectiva,

Consciente do importante papel do Fundo das Nações Unidas para as crianças e do papel das Nações Unidas na promoção do bem estar das crianças e do seu desenvolvimento,

Convicta de que uma convenção internacional sobre os direitos da criança, como uma realização das Nações Unidas no domínio dos direitos do homem, traria uma contribuição positiva à protecção dos direitos das crianças e à garantia do seu bem estar,

Consciente de que 1989 é o ano do trigésimo aniversário da Declaração sobre os Direitos da Criança (2) e o décimo aniversário do Ano Internacional da Criança,

1. Exprime o seu apreço pela conclusão da elaboração do texto da Convenção sobre os Direitos da Criança pela Comissão dos Direitos do Homem

2. Adopta e abre à assinatura, ratificação e adesão a Convenção sobre os Direitos da criança contida no anexo à presente Resolução,

3. Convida os Estados membros a considerarem a possibilidade de assinatura e ratificação ou adesão à Convenção como prioridade e exprime o desejo de que ela entre em vigor no mais breve trecho,

4. Solicita ao Secretário Geral que forneça os meios e o auxílio necessários à difusão de informações sobre a Convenção,

5. Convida os serviços e organismos das Nações Unidas, bem como organizações intergovernamentais e não governamentais, a intensificarem os seus esforços com vista à difusão de informações sobre a Convenção e à promoção da sua compreensão,

6. Solicita ao Secretário-Geral que apresente um relatório sobre a situação da Convenção sobre os Direitos da Criança, à Assembleia Geral na sua quadragésima quinta sessão.

7. Decide considerar o relatório do Secretário-Geral na sua quadragésima quinta sessão sob o tema "Aplicação da Convenção sobre os Direitos da Criança"

61.ª Reunião Plenária
20 de Novembro de 1989


ANEXO

Convenção sobre os Direitos da Criança *

Preâmbulo

Os Estados Partes na presente Convenção:

Considerando que, em conformidade com os princípios proclamados pela Carta das Nações Unidas, o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo;

Tendo presente que, na Carta, os povos das Nações Unidas proclamaram, de novo, a sua fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana e que resolveram favorecer o progresso social e instaurar melhores condições de vida numa liberdade mais ampla;

Reconhecendo que as Nações Unidas, na Declaração Universal dos Direitos do Homem (3) e nos pactos internacionais relativos aos direitos do homem (4), proclamaram e acordaram em que toda a pessoa humana pode invocar os direitos e liberdades aqui enunciados, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, nascimento ou de qualquer outra situação;

Recordando que, na Declaração Universal dos Direitos do Homem, a Organização das Nações Unidas proclamou que a infância tem direito a uma ajuda e assistência especiais;

Convictos de que a família, elemento natural e fundamental da sociedade e meio natural para o crescimento e bem-estar de todos os seus membros, e em particular das crianças, deve receber a protecção e a assistência necessárias para desempenhar plenamente o seu papel na comunidade;

Reconhecendo que a criança, para o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade, deve crescer num ambiente familiar, em clima de felicidade, amor e compreensão;

Considerando que importa preparar plenamente a criança para viver uma vida individual na sociedade e ser educada no espírito dos ideais proclamados na Carta das Nações Unidas e, em particular, num espírito de paz, dignidade, tolerância, liberdade e solidariedade;

Tendo presente que a necessidade de garantir uma protecção especial à criança foi enunciada pela Declaração de Genebra de 1924 sobre os Direitos da Criança (5) e pela Declaração dos Direitos da Criança adoptada pelas Nações Unidas em 1959 (2), e foi reconhecida pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (nomeadamente nos artigos 23.º e 24.º) 4, pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (nomeadamente o artigo 10.º) e pelos estatutos e instrumentos pertinentes das agências especializadas e organizações internacionais que se dedicam ao bem-estar da criança;

Tendo presente que, como indicado na Declaração dos Direitos da Criança, adoptada em 20 de Novembro de 1959 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, «a criança, por motivo da sua falta de maturidade física e intelectual, tem necessidade de uma protecção e cuidados especiais, nomeadamente de protecção jurídica adequada, tanto antes como depois do nascimento» (6) ;

Recordando as disposições da Declaração sobre os Princípios Sociais e Jurídicos Aplicáveis à Protecção e Bem-Estar das Crianças, com Especial Referência à Adopção e Colocação Familiar nos Planos Nacional e Internacional (7) (Resolução n.º 41/85 da Assembleia Geral, de 3 de Dezembro de 1986), o Conjunto de Regras Mínimas das Nações Unidas relativas à Administração da Justiça para Menores («Regras de Beijing») (8) (Resolução n.º 40/33 da Assembleia Geral, de 29 de Novembro de 1985) e a Declaração sobre Protecção de Mulheres e Crianças em Situação de Emergência ou de Conflito Armado (Resolução n.º 3318 (XXIX) da Assembleia Geral, de 14 de Dezembro de 1974) (9);

Reconhecendo que em todos os países do mundo há crianças que vivem em condições particularmente difíceis e que importa assegurar uma atenção especial a essas crianças;

Tendo devidamente em conta a importância das tradições e valores culturais de cada povo para a protecção e o desenvolvimento harmonioso da criança;

Reconhecendo a importância da cooperação internacional para a melhoria das condições de vida das crianças em todos os países, em particular nos países em desenvolvimento;

Acordam no seguinte:

PARTE I

Artigo 1.º

Nos termos da presente Convenção, criança é todo o ser humano menor de 18 anos, salvo se, nos termos da lei que lhe for aplicável, atingir a maioridade mais cedo.


Artigo 2.º

1. Os Estados Partes comprometem-se a respeitar e a garantir os direitos previstos na presente Convenção a todas as crianças que se encontrem sujeitas à sua jurisdição, sem discriminação alguma, independentemente de qualquer consideração de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou outra da criança, de seus pais ou representantes legais, ou da sua origem nacional, étnica ou social, fortuna, incapacidade, nascimento ou de qualquer outra situação.

2. Os Estados Partes tomam todas as medidas adequadas para que a criança seja efectivamente protegida contra todas as formas de discriminação ou de sanção decorrentes da situação jurídica, de actividades, opiniões expressas ou convicções de seus pais, representantes legais ou outros membros da sua família.

Artigo 3.º

1. Todas as decisões relativas a crianças, adoptadas por instituições públicas ou privadas de protecção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança.

2. Os Estados Partes comprometem-se a garantir à criança a protecção e os cuidados necessários ao seu bem-estar, tendo em conta os direitos e deveres dos pais, representantes legais ou outras pessoas que a tenham legalmente a seu cargo e, para este efeito, tomam todas as medidas legislativas e administrativas adequadas.

3. Os Estados Partes garantem que o funcionamento de instituições, serviços e estabelecimentos que têm crianças a seu cargo e asseguram que a sua protecção seja conforme às normas fixadas pelas autoridades competentes, nomeadamente nos domínios da segurança e saúde, relativamente ao número e qualificação do seu pessoal, bem como quanto à existência de uma adequada fiscalização.

Artigo 4.º
Os Estados Partes comprometem-se a tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras necessárias à realização dos direitos reconhecidos pela presente Convenção. No caso de direitos económicos, sociais e culturais, tomam essas medidas no limite máximo dos seus recursos disponíveis e, se necessário, no quadro da cooperação internacional.

Artigo 5.º
Os Estados Partes respeitam as responsabilidades, direitos e deveres dos pais e, sendo caso disso, dos membros da família alargada ou da comunidade nos termos dos costumes locais, dos representantes legais ou de outras pessoas que tenham a criança legalmente a seu cargo, de assegurar à criança, de forma compatível com o desenvolvimento das suas capacidades, a orientação e os conselhos adequados ao exercício dos direitos que lhe são reconhecidos pela presente Convenção.

Artigo 6.º

1. Os Estados Partes reconhecem à criança o direito inerente à vida.

2. Os Estados Partes asseguram na máxima medida possível a sobrevivência e o desenvolvimento da criança.

Artigo 7.º

1. A criança é registada imediatamente após o nascimento e tem desde o nascimento o direito a um nome, o direito a adquirir uma nacionalidade e, sempre que possível, o direito de conhecer os seus pais e de ser educada por eles.

2. Os Estados Partes garantem a realização destes direitos de harmonia com a legislação nacional e as obrigações decorrentes dos instrumentos jurídicos internacionais relevantes neste domínio, nomeadamente nos casos em que, de outro modo, a criança ficasse apátrida.

Artigo 8.º

1. Os Estados Partes comprometem-se a respeitar o direito da criança e a preservar a sua identidade, incluindo a nacionalidade, o nome e relações familiares, nos termos da lei, sem ingerência ilegal.

2. No caso de uma criança ser ilegalmente privada de todos os elementos constitutivos da sua identidade ou de alguns deles, os Estados Partes devem assegurar-lhe assistência e protecção adequadas, de forma que a sua identidade seja restabelecida o mais rapidamente possível.

Artigo 9.º

1. Os Estados Partes garantem que a criança não é separada de seus pais contra a vontade destes, salvo se as autoridades competentes decidirem, sem prejuízo de revisão judicial e de harmonia com a legislação e o processo aplicáveis, que essa separação é necessária no interesse superior da criança. Tal decisão pode mostrar-se necessária no caso de, por exemplo, os pais maltratarem ou negligenciarem a criança ou no caso de os pais viverem separados e uma decisão sobre o lugar da residência da criança tiver de ser tomada.

2. Em todos os casos previstos no n.º 1 todas as partes interessadas devem ter a possibilidade de participar nas deliberações e de dar a conhecer os seus pontos de vista.

3. Os Estados Partes respeitam o direito da criança separada de um ou de ambos os seus pais de manter regularmente relações pessoais e contactos directos com ambos, salvo se tal se mostrar contrário ao interesse superior da criança.

4. Quando a separação resultar de medidas tomadas por um Estado Parte, tais como a detenção, prisão, exílio, expulsão ou morte (incluindo a morte ocorrida no decurso de detenção, independentemente da sua causa) de ambos os pais ou de um deles, ou da criança, o Estado Parte, se tal lhe for solicitado, dará aos pais, à criança ou, sendo esse o caso, a um outro membro da família informações essenciais sobre o local onde se encontram o membro ou membros da família, a menos que a divulgação de tais informações se mostre prejudicial ao bem-estar da criança. Os Estados Partes comprometem-se, além disso, a que a apresentação de um pedido de tal natureza não determine em si mesmo consequências adversas para a pessoa ou pessoas interessadas.

Artigo 10.º

1. Nos termos da obrigação decorrente para os Estados Partes ao abrigo do n.º 1 do artigo 9.º, todos os pedidos formulados por uma criança ou por seus pais para entrar num Estado Parte ou para o deixar, com o fim de reunificação familiar, são considerados pelos Estados Partes de forma positiva, com humanidade e diligência. Os Estados Partes garantem, além disso, que a apresentação de um tal pedido não determinará consequências adversas para os seus autores ou para os membros das suas famílias.

2. Uma criança cujos pais residem em diferentes Estados Partes tem o direito de manter, salvo circunstâncias excepcionais, relações pessoais e contactos directos regulares com ambos. Para esse efeito, e nos termos da obrigação que decorre para os Estados Partes ao abrigo do n.º 2 do artigo 9.º, os Estados Partes respeitam o direito da criança e de seus pais de deixar qualquer país, incluindo o seu, e de regressar ao seu próprio país. O direito de deixar um país só pode ser objecto de restrições que, sendo previstas na lei, constituam disposições necessárias para proteger a segurança nacional, a ordem pública, a saúde ou moral públicas, ou os direitos e liberdades de outrem, e se mostrem compatíveis com os outros direitos reconhecidos na presente Convenção.

Artigo 11.º

1. Os Estados Partes tomam as medidas adequadas para combater a deslocação e a retenção ilícitas de crianças no estrangeiro.

2. Para esse efeito, os Estados Partes promovem a conclusão de acordos bilaterais ou multilaterais ou a adesão a acordos existentes.

Artigo 12.º

1. Os Estados Partes garantem à criança com capacidade de discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhe respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade.

2. Para este fim, é assegurada à criança a oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais e administrativos que lhe respeitem, seja directamente, seja através de representante ou de organismo adequado, segundo as modalidades previstas pelas regras de processo da legislação nacional.

Artigo 13.º

1. A criança tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de procurar, receber e expandir informações e ideias de toda a espécie, sem considerações de fronteiras, sob forma oral, escrita, impressa ou artística ou por qualquer outro meio à escolha da criança.

2. O exercício deste direito só pode ser objecto de restrições previstas na lei e que sejam necessárias:

a) Ao respeito dos direitos e da reputação de outrem;

b) À salvaguarda da segurança nacional, da ordem pública, da saúde ou da moral públicas.

Artigo 14.º
1. Os Estados Partes respeitam o direito da criança à liberdade de pensamento, de consciência e de religião.

2. Os Estados Partes respeitam os direitos e deveres dos pais e, sendo caso disso, dos representantes legais, de orientar a criança no exercício deste direito, de forma compatível com o desenvolvimento das suas capacidades.

3. A liberdade de manifestar a sua religião ou as suas convicções só pode ser objecto de restrições previstas na lei e que se mostrem necessárias à protecção da segurança, da ordem e da saúde públicas, ou da moral e das liberdades e direitos fundamentais de outrem.

Artigo 15.º

1. Os Estados Partes reconhecem os direitos da criança à liberdade de associação e à liberdade de reunião pacífica.

2. O exercício destes direitos só pode ser objecto de restrições previstas na lei e que sejam necessárias, numa sociedade democrática, no interesse da segurança nacional ou da segurança pública, da ordem pública, para proteger a saúde ou a moral públicas ou os direitos e liberdades de outrem.

Artigo 16.º

1. Nenhuma criança pode ser sujeita a intromissões arbitrárias ou ilegais na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou correspondência, nem a ofensas ilegais à sua honra e reputação.

2. A criança tem direito à protecção da lei contra tais intromissões ou ofensas.

Artigo 17.º

Os Estados Partes reconhecem a importância da função exercida pelos órgãos de comunicação social e asseguram o acesso da criança à informação e a documentos provenientes de fontes nacionais e internacionais diversas, nomeadamente aqueles que visem promover o seu bem-estar social, espiritual e moral, assim como a sua saúde física e mental. Para esse efeito, os Estados Partes devem:

a) Encorajar os órgãos de comunicação social a difundir informação e documentos que revistam utilidade social e cultural para a criança e se enquadrem no espírito do artigo 29.º;

b) Encorajar a cooperação internacional tendente a produzir, trocar e difundir informação e documentos dessa natureza, provenientes de diferentes fontes culturais, nacionais e internacionais;

c) Encorajar a produção e a difusão de livros para crianças;

d) Encorajar os órgãos de comunicação social a ter particularmente em conta as necessidades linguísticas das crianças indígenas ou que pertençam a um grupo minoritário;

e) Favorecer a elaboração de princípios orientadores adequados à protecção da criança contra a informação e documentos prejudiciais ao seu bem-estar, nos termos do disposto nos artigos 13.º e 18.º

Artigo 18.º

1. Os Estados Partes diligenciam de forma a assegurar o reconhecimento do princípio segundo o qual ambos os pais têm uma responsabilidade comum na educação e no desenvolvimento da criança. A responsabilidade de educar a criança e de assegurar o seu desenvolvimento cabe primacialmente aos pais e, sendo caso disso, aos representantes legais. O interesse superior da criança deve constituir a sua preocupação fundamental.

2. Para garantir e promover os direitos enunciados na presente Convenção, os Estados Partes asseguram uma assistência adequada aos pais e representantes legais da criança no exercício da responsabilidade que lhes cabe de educar a criança e garantem o estabelecimento de instituições, instalações e serviços de assistência à infância.

3. Os Estados Partes tomam todas as medidas adequadas para garantir às crianças cujos pais trabalhem o direito de beneficiar de serviços e instalações de assistência às crianças para os quais reúnam as condições requeridas.

Artigo 19.º

1. Os Estados Partes tomam todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educativas adequadas à protecção da criança contra todas as formas de violência física ou mental, dano ou sevícia, abandono ou tratamento negligente; maus tratos ou exploração, incluindo a violência sexual, enquanto se encontrar sob a guarda de seus pais ou de um deles, dos representantes legais ou de qualquer outra pessoa a cuja guarda haja sido confiada.

2. Tais medidas de protecção devem incluir, consoante o caso, processos eficazes para o estabelecimento de programas sociais destinados a assegurar o apoio necessário à criança e àqueles a cuja guarda está confiada, bem como outras formas de prevenção, e para identificação, elaboração de relatório, transmissão, investigação, tratamento e acompanhamento dos casos de maus tratos infligidos à criança, acima descritos, compreendendo igualmente, se necessário, processos de intervenção judicial.

Artigo 20.º

1. A criança temporária ou definitivamente privada do seu ambiente familiar ou que, no seu interesse superior, não possa ser deixada em tal ambiente tem direito à protecção e assistência especiais do Estado.

2. Os Estados Partes asseguram a tais crianças uma protecção alternativa, nos termos da sua legislação nacional.

3. A protecção alternativa pode incluir, entre outras, a forma de colocação familiar, a kafala do direito islâmico, a adopção ou, no caso de tal se mostrar necessário, a colocação em estabelecimentos adequados de assistência às crianças. Ao considerar tais soluções, importa atender devidamente à necessidade de assegurar continuidade à educação da criança, bem como à sua origem étnica, religiosa, cultural e linguística.

Artigo 21.º

Os Estados Partes que reconhecem e ou permitem a adopção asseguram que o interesse superior da criança será a consideração primordial neste domínio e:

a) Garantem que a adopção de uma criança é autorizada unicamente pelas autoridades competentes, que, nos termos da lei e do processo aplicáveis e baseando-se em todas as informações credíveis relativas ao caso concreto, verificam que a adopção pode ter lugar face à situação da criança relativamente a seus pais, parentes e representantes legais e que, se necessário, as pessoas interessadas deram em consciência o seu consentimento à adopção, após se terem socorrido de todos os pareceres julgados necessários;

b) Reconhecem que a adopção internacional pode ser considerada como uma forma alternativa de protecção da criança se esta não puder ser objecto de uma medida de colocação numa família de acolhimento ou adoptiva, ou se não puder ser convenientemente educada no seu país de origem;

c) Garantem à criança sujeito de adopção internacional o gozo das garantias e normas equivalentes às aplicáveis em caso de adopção nacional;

d) Tomam todas as medidas adequadas para garantir que, em caso de adopção internacional, a colocação da criança se não traduza num benefício material indevido para os que nela estejam envolvidos;

e) Promovem os objectivos deste artigo pela conclusão de acordos ou tratados bilaterais ou multilaterais, consoante o caso, e neste domínio procuram assegurar que as colocações de crianças no estrangeiro sejam efectuadas por autoridades ou organismos competentes.

Artigo 22.º

1. Os Estados Partes tomam as medidas necessárias para que a criança que requeira o estatuto de refugiado ou que seja considerada refugiado, de harmonia com as normas e processos de direito internacional ou nacional aplicáveis, quer se encontre só, quer acompanhada de seus pais ou de qualquer outra pessoa, beneficie de adequada protecção e assistência humanitária, de forma a permitir o gozo dos direitos reconhecidos pela presente Convenção e outros instrumentos internacionais relativos aos direitos do homem ou de carácter humanitário, de que os referidos Estados sejam Partes.

2. Para esse efeito, os Estados Partes cooperam, nos termos considerados adequados, nos esforços desenvolvidos pela Organização das Nações Unidas e por outras organizações intergovernamentais ou não governamentais competentes que colaborem com a Organização das Nações Unidas na protecção e assistência de crianças que se encontrem em tal situação, e na procura dos pais ou de outros membros da família da criança refugiada, de forma a obter as informações necessárias à reunificação familiar. No caso de não terem sido encontrados os pais ou outros membros da família, a criança deve beneficiar, à luz dos princípios enunciados na presente Convenção, da protecção assegurada a toda a criança que, por qualquer motivo, se encontre privada temporária ou definitivamente do seu ambiente familiar.

Artigo 23.º

1. Os Estados Partes reconhecem à criança mental e fisicamente deficiente o direito a uma vida plena e decente em condições que garantam a sua dignidade, favoreçam a sua autonomia e facilitem a sua participação activa na vida da comunidade.

2. Os Estados Partes reconhecem à criança deficiente o direito de beneficiar de cuidados especiais e encorajam e asseguram, na medida dos recursos disponíveis, a prestação à criança que reúna as condições requeridas e àqueles que a tenham a seu cargo de uma assistência correspondente ao pedido formulado e adaptada ao estado da criança e à situação dos pais ou daqueles que a tiverem a seu cargo.

3. Atendendo às necessidades particulares da criança deficiente, a assistência fornecida nos termos do n.º 2 será gratuita sempre que tal seja possível, atendendo aos recursos financeiros dos pais ou daqueles que tiverem a criança a seu cargo, e é concebida de maneira a que a criança deficiente tenha efectivo acesso à educação, à formação, aos cuidados de saúde, à reabilitação, à preparação para o emprego e a actividades recreativas, e beneficie desses serviços de forma a assegurar uma integração social tão completa quanto possível e o desenvolvimento pessoal, incluindo nos domínios cultural e espiritual.

4. Num espírito de cooperação internacional, os Estados Partes promovem a troca de informações pertinentes no domínio dos cuidados preventivos de saúde e do tratamento médico, psicológico e funcional das crianças deficientes, incluindo a difusão de informações respeitantes aos métodos de reabilitação e aos serviços de formação profissional, bem como o acesso a esses dados, com vista a permitir que os Estados Partes melhorem as suas capacidades e qualificações e alarguem a sua experiência nesses domínios. A este respeito atender-se-á de forma particular às necessidades dos países em desenvolvimento.

Artigo 24.º

1. Os Estados Partes reconhecem à criança o direito a gozar do melhor estado de saúde possível e a beneficiar de serviços médicos e de reeducação. Os Estados Partes velam pela garantia de que nenhuma criança seja privada do direito de acesso a tais serviços de saúde.

2. Os Estados Partes prosseguem a realização integral deste direito e, nomeadamente, tomam medidas adequadas para:

a) Fazer baixar a mortalidade entre as crianças de tenra idade e a mortalidade infantil;

b) Assegurar a assistência médica e os cuidados de saúde necessários a todas as crianças, enfatizando o desenvolvimento dos cuidados de saúde primários;

c) Combater a doença e a má nutrição, no quadro dos cuidados de saúde primários, graças nomeadamente à utilização de técnicas facilmente disponíveis e ao fornecimento de alimentos nutritivos e de água potável, tendo em consideração os perigos e riscos da poluição do ambiente;

d) Assegurar às mães os cuidados de saúde, antes e depois do nascimento;

e) Assegurar que todos os grupos da população, nomeadamente os pais e as crianças, sejam informados, tenham acesso e sejam apoiados na utilização de conhecimentos básicos sobre a saúde e a nutrição da criança, as vantagens do aleitamento materno, a higiene e a salubridade do ambiente, bem como a prevenção de acidentes;

f) Desenvolver os cuidados preventivos de saúde, os conselhos aos pais e a educação sobre planeamento familiar e os serviços respectivos.

3. Os Estados Partes tomam todas as medidas eficazes e adequadas com vista a abolir as práticas tradicionais prejudiciais à saúde das crianças.

4. Os Estados Partes comprometem-se a promover e a encorajar a cooperação internacional, de forma a garantir progressivamente a plena realização do direito reconhecido no presente artigo. A este respeito atender-se-á de forma particular às necessidades dos países em desenvolvimento.

Artigo 25.º

Os Estados Partes reconhecem à criança que foi objecto de uma medida de colocação num estabelecimento pelas autoridades competentes, para fins de assistência, protecção ou tratamento físico ou mental, o direito à revisão periódica do tratamento a que foi submetida e de quaisquer outras circunstâncias ligadas à sua colocação.

Artigo 26.º

1. Os Estados Partes reconhecem à criança o direito de beneficiar da segurança social e tomam todas as medidas necessárias para assegurar a plena realização deste direito, nos termos da sua legislação nacional.

2. As prestações, se a elas houver lugar, devem ser atribuídas tendo em conta os recursos e a situação da criança e das pessoas responsáveis pela sua manutenção, assim como qualquer outra consideração relativa ao pedido de prestação feito pela criança ou em seu nome.

Artigo 27.º

1. Os Estados Partes reconhecem à criança o direito a um nível de vida suficiente, de forma a permitir o seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e social.

2. Cabe primacialmente aos pais e às pessoas que têm a criança a seu cargo a responsabilidade de assegurar, dentro das suas possibilidades e disponibilidades económicas, as condições de vida necessárias ao desenvolvimento da criança.

3. Os Estados Partes, tendo em conta as condições nacionais e na medida dos seus meios, tomam as medidas adequadas para ajudar os pais e outras pessoas que tenham a criança a seu cargo a realizar este direito e asseguram, em caso de necessidade, auxílio material e programas de apoio, nomeadamente no que respeita à alimentação, vestuário e alojamento.

4. Os Estados Partes tomam todas as medidas adequadas tendentes a assegurar a cobrança da pensão alimentar devida à criança, de seus pais ou de outras pessoas que tenham a criança economicamente a seu cargo, tanto no seu território quanto no estrangeiro. Nomeadamente, quando a pessoa que tem a criança economicamente a seu cargo vive num Estado diferente do da criança, os Estados Partes devem promover a adesão a acordos internacionais ou a conclusão de tais acordos, assim como a adopção de quaisquer outras medidas julgadas adequadas.

Artigo 28.º

1. Os Estados Partes reconhecem o direito da criança à educação e tendo, nomeadamente, em vista assegurar progressivamente o exercício desse direito na base da igualdade de oportunidades:

a) Tornam o ensino primário obrigatório e gratuito para todos;

b) Encorajam a organização de diferentes sistemas de ensino secundário, geral e profissional, tornam estes públicos e acessíveis a todas as crianças e tomam medidas adequadas, tais como a introdução da gratuitidade do ensino e a oferta de auxílio financeiro em caso de necessidade;

c) Tornam o ensino superior acessível a todos, em função das capacidades de cada um, por todos os meios adequados;

d) Tornam a informação e a orientação escolar e profissional públicas e acessíveis a todas as crianças;

e) Tomam medidas para encorajar a frequência escolar regular e a redução das taxas de abandono escolar.

2. Os Estados Partes tomam as medidas adequadas para velar por que a disciplina escolar seja assegurada de forma compatível com a dignidade humana da criança e nos termos da presente Convenção.

3. Os Estados Partes promovem e encorajam a cooperação internacional no domínio da educação, nomeadamente de forma a contribuir para a eliminação da ignorância e do analfabetismo no mundo e a facilitar o acesso aos conhecimentos científicos e técnicos e aos modernos métodos de ensino. A este respeito atender-se-á de forma particular às necessidades dos países em desenvolvimento.

Artigo 29.º

1. Os Estados Partes acordam em que a educação da criança deve destinar-se a :

a) Promover o desenvolvimento da personalidade da criança, dos seus dons e aptidões mentais e físicos na medida das suas potencialidades;

b) Inculcar na criança o respeito pelos direitos do homem e liberdades fundamentais e pelos princípios consagrados na Carta das Nações Unidas;

c) Inculcar na criança o respeito pelos pais, pela sua identidade cultural, língua e valores, pelos valores nacionais do país em que vive, do país de origem e pelas civilizações diferentes da sua;

d) Preparar a criança para assumir as responsabilidades da vida numa sociedade livre, num espírito de compreensão, paz, tolerância, igualdade entre os sexos e de amizade entre todos os povos, grupos étnicos, nacionais e religiosos e com pessoas de origem indígena;

e) Promover o respeito da criança pelo meio ambiente.

2. Nenhuma disposição deste artigo ou do artigo 28.º pode ser interpretada de forma a ofender a liberdade dos indivíduos ou das pessoas colectivas de criar e dirigir estabelecimentos de ensino, desde que sejam respeitados os princípios enunciados no n.º 1 do presente artigo e que a educação ministrada nesses estabelecimentos seja conforme às regras mínimas prescritas pelo Estado.

Artigo 30.º

Nos Estados em que existam minorias étnicas, religiosas ou linguísticas ou pessoas de origem indígena, nenhuma criança indígena ou que pertença a uma dessas minorias poderá ser privada do direito de, conjuntamente com membros do seu grupo, ter a sua própria vida cultural, professar e praticar a sua própria religião ou utilizar a sua própria língua.

Artigo 31.º

1. Os Estados Partes reconhecem à criança o direito ao repouso e aos tempos livres, o direito de participar em jogos e actividades recreativas próprias da sua idade e de participar livremente na vida cultural e artística.

2. Os Estados Partes respeitam e promovem o direito da criança de participar plenamente na vida cultural e artística e encorajam a organização, em seu benefício, de formas adequadas de tempos livres e de actividades recreativas, artísticas e culturais, em condições de igualdade.

Artigo 32.º

1. Os Estados Partes reconhecem à criança o direito de ser protegida contra a exploração económica ou a sujeição a trabalhos perigosos ou capazes de comprometer a sua educação, prejudicar a sua saúde ou o seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral ou social.

2. Os Estados Partes tomam medidas legislativas, administrativas, sociais e educativas para assegurar a aplicação deste artigo. Para esse efeito, e tendo em conta as disposições relevantes de outros instrumentos jurídicos internacionais, os Estados Partes devem, nomeadamente:

a) Fixar uma idade mínima ou idades mínimas para a admissão a um emprego;

b) Adoptar regulamentos próprios relativos à duração e às condições de trabalho; e

c) Prever penas ou outras sanções adequadas para assegurar uma efectiva aplicação deste artigo.

Artigo 33.º

Os Estados Partes adoptam todas as medidas adequadas, incluindo medidas legislativas, administrativas, sociais e educativas para proteger as crianças contra o consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, tais como definidos nas convenções internacionais aplicáveis, e para prevenir a utilização de crianças na produção e no tráfico ilícitos de tais substâncias.

Artigo 34.º

Os Estados Partes comprometem-se a proteger a criança contra todas as formas de exploração e de violência sexuais. Para esse efeito, os Estados Partes devem, nomeadamente, tomar todas as medidas adequadas, nos planos nacional, bilateral e multilateral para impedir:

a) Que a criança seja incitada ou coagida a dedicar-se a uma actividade sexual ilícita;

b) Que a criança seja explorada para fins de prostituição ou de outras práticas sexuais ilícitas;

c) Que a criança seja explorada na produção de espectáculos ou de material de natureza pornográfica.


Artigo 35.º

Os Estados Partes tomam todas as medidas adequadas, nos planos nacional, bilateral e multilateral, para impedir o rapto, a venda ou o tráfico de crianças, independentemente do seu fim ou forma.

Artigo 36.º

Os Estados Partes protegem a criança contra todas as formas de exploração prejudiciais a qualquer aspecto do seu bem-estar.

Artigo 37.º

Os Estados Partes garantem que:

a) Nenhuma criança será submetida à tortura ou a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. A pena de morte e a prisão perpétua sem possibilidade de libertação não serão impostas por infracções cometidas por pessoas com menos de 18 anos;

b) Nenhuma criança será privada de liberdade de forma ilegal ou arbitrária: a captura, detenção ou prisão de uma criança devem ser conformes à lei, serão utilizadas unicamente como medida de último recurso e terão a duração mais breve possível;

c) A criança privada de liberdade deve ser tratada com a humanidade e o respeito devidos à dignidade da pessoa humana e de forma consentânea com as necessidades das pessoas da sua idade. Nomeadamente, a criança privada de liberdade deve ser separada dos adultos, a menos que, no superior interesse da criança, tal não pareça aconselhável, e tem o direito de manter contacto com a sua família através de correspondência e visitas, salvo em circunstâncias excepcionais;

d) A criança privada de liberdade tem o direito de aceder rapidamente à assistência jurídica ou a outra assistência adequada e o direito de impugnar a legalidade da sua privação de liberdade perante um tribunal ou outra autoridade competente, independente e imparcial, bem como o direito a uma rápida decisão sobre tal matéria.

Artigo 38.º

1. Os Estados Partes comprometem-se a respeitar e a fazer respeitar as normas de direito humanitário internacional que lhes sejam aplicáveis em caso de conflito armado e que se mostrem relevantes para a criança.

2. Os Estados Partes devem tomar todas as medidas possíveis na prática para garantir que nenhuma criança com menos de 15 anos participe directamente nas hostilidades.

3. Os Estados Partes devem abster-se de incorporar nas forças armadas as pessoas que não tenham a idade de 15 anos. No caso de incorporação de pessoas de idade superior a 15 anos e inferior a 18 anos, os Estados Partes devem incorporar prioritariamente os mais velhos.

4. Nos termos das obrigações contraídas à luz do direito internacional humanitário para a protecção da população civil em caso de conflito armado, os Estados Partes na presente Convenção devem tomar todas as medidas possíveis na prática para assegurar protecção e assistência às crianças afectadas por um conflito armado.

Artigo 39.º

Os Estados Partes tomam todas as medidas adequadas para promover a recuperação física e psicológica e a reinserção social da criança vítima de qualquer forma de negligência, exploração ou sevícias, de tortura ou qualquer outra pena ou tratamento cruéis, desumanos ou degradantes ou de conflito armado. Essas recuperação e reinserção devem ter lugar num ambiente que favoreça a saúde, o respeito por si próprio e a dignidade da criança.

Artigo 40.º

1. Os Estados Partes reconhecem à criança suspeita, acusada ou que se reconheceu ter infringido a lei penal o direito a um tratamento capaz de favorecer o seu sentido de dignidade e valor, reforçar o seu respeito pelos direitos do homem e as liberdades fundamentais de terceiros e que tenha em conta a sua idade e a necessidade de facilitar a sua reintegração social e o assumir de um papel construtivo no seio da sociedade.

2. Para esse feito, e atendendo às disposições pertinentes dos instrumentos jurídicos internacionais, os Estados Partes garantem, nomeadamente, que:

a) Nenhuma criança seja suspeita, acusada ou reconhecida como tendo infringido a lei penal por acções ou omissões que, no momento da sua prática, não eram proibidas pelo direito nacional ou internacional;

b) A criança suspeita ou acusada de ter infringido a lei penal tenha, no mínimo, direito às garantias seguintes:

i) Presumir-se inocente até que a sua culpabilidade tenha sido legal-mente estabelecida;

ii) A ser informada pronta e directamente das acusações formuladas contra si ou, se necessário, através de seus pais ou representantes legais, e beneficiar de assistência jurídica ou de outra assistência adequada para a preparação e apresentação da sua defesa;

iii) A sua causa ser examinada sem demora por uma autoridade competente, independente e imparcial ou por um tribunal, de forma equitativa nos termos da lei, na presença do seu defensor ou de outrem assegurando assistência adequada e, a menos que tal se mostre contrário ao interesse superior da criança, nomeadamente atendendo à sua idade ou situação, na presença de seus pais ou representantes legais;

iv) A não ser obrigada a testemunhar ou a confessar-se culpada; a interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e a obter a comparência e o interrogatório das testemunhas de defesa em condições de igualdade;

v) No caso de se considerar que infringiu a lei penal, a recorrer dessa decisão e das medidas impostas em sequência desta para uma autoridade superior, competente, independente e imparcial, ou uma autoridade judicial, nos termos da lei;

vi) A fazer-se assistir gratuitamente por um intérprete, se não compreender ou falar a língua utilizada;

vii) A ver plenamente respeitada a sua vida privada em todos os momentos do processo.

3. Os Estados Partes procuram promover o estabelecimento de leis, processos, autoridades e instituições especificamente adequadas a crianças suspeitas, acusadas ou reconhecidas como tendo infringido a lei penal, e, nomeadamente:

a) O estabelecimento de uma idade mínima abaixo da qual se presume que as crianças não têm capacidade para infringir a lei penal;

b) Quando tal se mostre possível e desejável, a adopção de medidas relativas a essas crianças sem recurso ao processo judicial, assegurando-se o pleno respeito dos direitos do homem e das garantias previstas pela lei.

4. Um conjunto de disposições relativas, nomeadamente, à assistência, orientação e controlo, conselhos, regime de prova, colocação familiar, programas de educação geral e profissional, bem como outras soluções alternativas às institucionais, serão previstas de forma a assegurar às crianças um tratamento adequado ao seu bem-estar e proporcionado à sua situação e à infracção.

Artigo 41.º

Nenhuma disposição da presente Convenção afecta as disposições mais favoráveis à realização dos direitos da criança que possam figurar:

a) Na legislação de um Estado Parte;

b) No direito internacional em vigor para esse Estado.


PARTE II

Artigo 42.º

Os Estados Partes comprometem-se a tornar amplamente conhecidos, por meios activos e adequados, os princípios e as disposições da presente Convenção, tanto pelos adultos como pelas crianças.

Artigo 43.º

1. Com o fim de examinar os progressos realizados pelos Estados Partes no cumprimento das obrigações que lhes cabem nos termos da presente Convenção, é instituído um Comité dos Direitos da Criança, que desempenha as funções seguidamente definidas.

2. O Comité é composto de 10 peritos de alta autoridade moral e de reconhecida competência no domínio abrangido pela presente Convenção. Os membros do Comité são eleitos pelos Estados Partes de entre os seus nacionais e exercem as suas funções a título pessoal, tendo em consideração a necessidade de assegurar uma repartição geográfica equitativa e atendendo aos principais sistemas jurídicos.

3. Os membros do Comité são eleitos por escrutínio secreto de entre uma lista de candidatos designados pelos Estados Partes. Cada Estado Parte pode designar um perito de entre os seus nacionais.

4. A primeira eleição tem lugar nos seis meses seguintes à data da entrada em vigor da presente Convenção e, depois disso, todos os dois anos. Pelo menos quatro meses antes da data de cada eleição, o Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas convida, por escrito, os Estados Partes a proporem os seus candidatos num prazo de dois meses. O Secretário-Geral elabora, em seguida, a lista alfabética dos candidatos assim apresentados, indicando por que Estado foram designados, e comunica-a aos Estados Partes na presente Convenção.

5. As eleições realizam-se aquando das reuniões dos Estados Partes convocadas pelo Secretário-Geral para a sede da Organização das Nações Unidas. Nestas reuniões, em que o quórum é constituído por dois terços dos Estados Partes, são eleitos para o Comité os candidatos que obtiverem o maior número de votos e a maioria absoluta dos votos dos representantes dos Estados Partes presentes e votantes.

6. Os membros do Comité são eleitos por um período de quatro anos. São reelegíveis no caso de recandidatura. O mandato de cinco dos membros eleitos na primeira eleição termina ao fim de dois anos. O presidente da reunião tira à sorte, imediatamente após a primeira eleição, os nomes destes cinco elementos.

7. Em caso de morte ou de demissão de um membro do Comité ou se, por qualquer outra razão, um membro declarar que não pode continuar a exercer funções no seio do Comité, o Estado Parte que havia proposto a sua candidatura designa um outro perito, de entre os seus nacionais, para preencher a vaga até ao termo do mandato, sujeito a aprovação do Comité.

8. O Comité adopta o seu regulamento interno.

9. O Comité elege o seu secretariado por um período de dois anos.

10. As reuniões do Comité têm habitualmente lugar na sede da Organização das Nações Unidas ou em qualquer outro lugar julgado conveniente e determinado pelo Comité. O Comité reúne em regra anualmente. A duração das sessões do Comité é determinada, e se necessário revista, por uma reunião dos Estados Partes na presente Convenção, sujeita à aprovação da Assembleia Geral.

11. O Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas põe à disposição do Comité o pessoal e as instalações necessárias para o desempenho eficaz das funções que lhe são confiadas ao abrigo da presente Convenção.

12. Os membros do Comité instituído pela presente Convenção recebem, com a aprovação da Assembleia Geral, emolumentos provenientes dos recursos financeiros das Nações Unidas, segundo as condições e modalidades fixadas pela Assembleia Geral.

Artigo 44.º

1. Os Estados Partes comprometem-se a apresentar ao Comité, através do Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas, relatórios sobre as medidas que hajam adoptado para dar aplicação aos direitos reconhecidos pela Convenção e sobre os progressos realizados no gozo desses direitos:

a) Nos dois anos subsequentes à data da entrada em vigor da presente Convenção para os Estados Partes;

b) Em seguida, de cinco em cinco anos.

2. Os relatórios apresentados em aplicação do presente artigo devem indicar os factores e as dificuldades, se a elas houver lugar, que impeçam o cumprimento, pelos Estados Partes, das obrigações decorrentes da presente Convenção. Devem igualmente conter informações suficientes para dar ao Comité uma ideia precisa da aplicação da Convenção no referido país.

3. Os Estados Partes que tenham apresentado ao Comité um relatório inicial completo não necessitam de repetir, nos relatórios subsequentes, submetidos nos termos do n.º 1, alínea b), as informações de base anteriormente comunicadas.

4. O Comité pode solicitar aos Estados Partes informações complementares relevantes para a aplicação da Convenção.

5. O Comité submete de dois em dois anos à Assembleia Geral, através do Conselho Económico e Social, um relatório das suas actividades.

6. Os Estados Partes asseguram aos seus relatórios uma larga difusão nos seus próprios países.

Artigo 45.º

De forma a promover a aplicação efectiva da Convenção e a encorajar a cooperação internacional no domínio coberto pela Convenção:

a) As agências especializadas, a UNICEF e outros órgãos das Nações Unidas podem fazer-se representar quando for apreciada a aplicação de disposições da presente Convenção que se inscrevam no seu mandato. O Comité pode convidar as agências especializadas, a UNICEF e outros organismos competentes considerados relevantes a fornecer o seu parecer técnico sobre a aplicação da convenção no âmbito dos seus respectivos mandatos. O Comité pode convidar as agências especializadas, a UNICEF e outros órgãos das Nações Unidas a apresentar relatórios sobre a aplicação da Convenção nas áreas relativas aos seus domínios de actividade;

b) O Comité transmite, se o julgar necessário, às agências especializadas, à UNICEF e a outros organismos competentes os relatórios dos Estados Partes que contenham pedidos ou indiquem necessidades de conselho ou de assistência técnicos, acompanhados de eventuais observações e sugestões do Comité relativos àqueles pedidos ou indicações;

c) O Comité pode recomendar à Assembleia Geral que solicite ao Secretário-Geral a realização, para o Comité, de estudos sobre questões específicas relativas aos direitos da criança;

d) O Comité pode fazer sugestões e recomendações de ordem geral com base nas informações recebidas em aplicação dos artigos 44.º e 45.º da presente Convenção. Essas sugestões e recomendações de ordem geral são transmitidas aos Estados interessados e levadas ao conhecimento da Assembleia Geral, acompanhadas, se necessário, dos comentários dos Estados Partes.

PARTE III

Artigo 46.º

A presente Convenção está aberta à assinatura de todos os Estados.

Artigo 47.º

A presente Convenção está sujeita a ratificação. Os instrumentos de ratificação serão depositados junto do Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas.

Artigo 48.º

A presente Convenção está aberta a adesão de todos os Estados. A adesão far-se-á pelo depósito de um instrumento de adesão junto do Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas.

Artigo 49.º

1. A presente Convenção entrará em vigor no 30.º dia após a data do depósito junto do Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas do 20.º instrumento de ratificação ou de adesão.

2. Para cada um dos Estados que ratificarem a presente Convenção ou a ela aderirem após o depósito do 20.º instrumento de ratificação ou de adesão, a Convenção entrará em vigor no 30.º dia após a data do depósito, por parte desse Estado, do seu instrumento de ratificação ou de adesão.

Artigo 50.º

1. Qualquer Estado Parte pode propor uma emenda e depositar o seu texto junto do Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas. O Secretário-Geral transmite, em seguida, a proposta de emenda aos Estados Partes na presente Convenção, solicitando que lhe seja comunicado se são favoráveis à convocação de uma conferência de Estados Partes para apreciação e votação da proposta. Se, nos quatro meses subsequentes a essa comunicação, pelo menos um terço dos Estados Partes se declarar a favor da realização da referida conferência, o Secretário-Geral convocá-la-á sob os auspícios da Organização das Nações Unidas. As emendas adoptadas pela maioria dos Estados Partes presentes e votantes na conferência são submetidas à Assembleia Geral das Nações Unidas para aprovação.

2. As emendas adoptadas nos termos do disposto no n.º 1 do presente artigo entram em vigor quando aprovadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas e aceites por uma maioria de dois terços dos Estados Partes.

3. Quando uma emenda entrar em vigor, terá força vinculativa para os Estados que a hajam aceite, ficando os outros Estados Partes ligados pelas disposições da presente Convenção e por todas as emendas anteriores que tenham aceite.

Artigo 51.º

1. O Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas recebe e comunica a todos os Estados o texto das reservas que forem feitas pelos Estados no momento da ratificação ou da adesão.

2. Não é autorizada nenhuma reserva incompatível com o objecto e com o fim da presente Convenção.

3. As reservas podem ser retiradas em qualquer momento por via de notificação dirigida ao Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas, o qual informará todos os Estados Partes na Convenção. A notificação produz efeitos na data da sua recepção pelo Secretário-Geral.

Artigo 52.º

Um Estado Parte pode denunciar a presente Convenção por notificação escrita dirigida ao Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas. A denúncia produz efeitos um ano após a data de recepção da notificação pelo Secretário-Geral.

Artigo 53.º

O Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas é designado como depositário da presente Convenção.

Artigo 54.º

A presente Convenção, cujos textos em inglês, árabe, chinês, espanhol, francês e russo fazem igualmente fé, será depositada junto do Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas.

Em fé do que os plenipotenciários abaixo assinados, devidamente habilitados pelos seus governos respectivos, assinaram a Convenção.


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(1) Documentos Oficiais do Conselho Económico e Social, 1989, suplemento n.º 2 (E/1989/20), cap. II, sec. A.
(2) Resolução 1386 (XIV).
(3) Resolução 217 A (III).
(4) Ver Resolução 2200 A (XXI), anexo.
(5) Ver Sociedade das Nações, Journal officiel, Supplément spécial N.º 21, octobre 1924, p. 43.
(6) Resolução 1386 (XIV), terceira alínea do preâmbulo.
(7) Resolução 41/85, anexo.
(8) Resolução 40/33, anexo.(9) Resolução 3318 (XXXIX).
* Fonte: Centro dos Direitos do Homem das Nações Unidas, publicação GE.94-15440.


quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Princípios e Orientações sobre os Bens Culturais da Igreja

Princípios e Orientações sobre os Bens Culturais da Igreja
Conferência Episcopal Portuguesa
I – FINALIDADE E NATUREZA DOS BENS CULTURAIS DA IGREJA
A Igreja de Cristo está no mundo para continuar no tempo a missão de Jesus, Filho de Deus em nossa condição humana. Esta missão é a de facultar aos homens e mulheres, na linguagem de cada tempo e das diversas culturas, a vida divina que os salva do mal. Ela assim o faz, reunindo as pessoas, anunciando-lhes a mensagem evangélica e tornando presentes, em assembleias de oração, aqueles gestos e sinais sagrados que o Salvador mandou repetir em sua memória.
Este é o fundamento dos princípios que se seguem.
1. A Igreja Católica, para realizar os seus fins, que recebeu por mandato de Cristo, sempre procurou os meios necessários para os atingir.
Esses meios supõem o uso em liberdade de espaços adequados à reunião de assembleias, ao ensino, à vida em grupo, à oração comunitária e individual, à celebração de gestos religiosos.
2. Para que sejam adequados às finalidades transcendentes a que se destinam, a Igreja caracteriza esses espaços com os atributos do sagrado, o que faz pela reserva exclusiva e pela expressão artística.
3. Com fundamento na sua natureza de instituição divina e nos princípios inalienáveis da liberdade de religião, reconhecidos pela legislação do Estado, a Igreja mantém-se fiel à sua tradição milenar de dar afectação pública e permanente para o culto e de conferir carácter sagrado àqueles espaços, edifícios ou lugares que o justifiquem.
4. Para o desempenho cabal da sua missão e continuando a encarnação da acção divina na linguagem humana, a Igreja usa bens móveis, materiais e imateriais, que afecta também ao culto de Deus e ao ensino catequético, tais como imagens, alfaias, símbolos decorativos, vestes, livros, cânticos, costumes tradicionais.
5. A Igreja guarda e estima esses bens móveis, ainda quando, perdendo o seu uso litúrgico ou expressividade catequética, eles sejam apenas mas acentuadamente testemunho da tradição.
II – POSSE E ADMINISTRAÇÃO DOS BENS CULTURAIS DA IGREJA
A Igreja deve ser fiel à doutrina do seu fundador, que a ensinou a distinguir a angariação reprovável de riquezas opulentas (cf. Mt 6,19) e a utilização proveitosa dos bens que promovem a pessoa em todas as suas dimensões (cf. Lc 16, 1-11). Por isso, o Evangelho, que não exige riquezas para que os verdadeiros adoradores louvem a Deus em espírito e verdade, mostra também que a recta utilização dos bens criados por Deus ajuda os crentes e as comunidades a realizarem os seus deveres de reunião, aberta a todos, de louvor digno da majestade de Deus, de celebração edificante dos mistérios litúrgicos, de ensino catequético feito através dos métodos mais capazes.
Por isso, porque a experiência secular assim o recomenda e porque o direito assim o avaliza, afirmam-se os seguintes princípios.
6. A Igreja Católica tem o direito de possuir em propriedade plena e de administrar como tal os bens móveis e imóveis que legitimamente adquiriu.
7. No exercício dessa propriedade e da sua administração, a Igreja invoca o direito e reconhece a obrigação de respeitar a finalidade que presidiu à obtenção desses bens e sobretudo, quando for o caso, à intenção do doador, de modo particular quando este tiver sido a comunidade crente.
8. Àqueles espaços e edifícios que se destinam ao culto, à catequese e a outras actividades comunitárias da vida cristã e se reservam em exclusividade para tais fins, a Igreja marca-os com sinais públicos de afectação religiosa, tradicionalmente de valor artístico.
9. O título de posse e o exercício da administração são atribuídos às instituições com personalidade jurídica canónica definida e conferida pela autoridade competente da Igreja e como tal reconhecida pela autoridade civil.
Estão nesta situação as Dioceses, os Seminários, as Paróquias, os Institutos de Vida Consagrada, as Misericórdias, Confrarias e outras Associações reconhecidas para o efeito segundo as leis da Igreja, conforme se estabelece no Código de Direito Canónico e na Concordata com a Santa Sé, cujas disposições se pressupõem.
10. As pessoas individuais a quem incumbe zelar pelos bens culturais da Igreja são aquelas que oficialmente desempenham os cargos administrativos das entidades proprietárias dos bens: Bispo, Reitor, Pároco, Superiores de Institutos de Vida Consagrada, Mesa Administrativa ou equiparado (cf. C.D.C., cân 1279).
11. O zelo pelos bens culturais da Igreja, nomeadamente o seu completo conhecimento, guarda, conservação, restauro, utilização, valorização, empréstimo, deve cuidadosamente respeitar a função do espaço ou do objecto, porventura o seu carácter sagrado, bem como o afecto que tem pelo valor em causa a comunidade que o utiliza e é sua proprietária.
12. Em conformidade com as normas da Igreja (cân. 1276) pertence ao Bispo zelar pela defesa dos bens culturais existentes na área da sua diocese e, por isso mesmo, ajuizar das decisões que afectem particularmente algum bem desse património, sobretudo quando esteja em causa o seu valor material ou artístico, a sua natureza religiosa ou o apreço que a comunidade tem por ele.
13. O cumprimento dos deveres de conservação e defesa exige como primeira obrigação o registo dos bens imóveis nas devidas repartições públicas e a cuidada inventariação do património móvel, que hoje supõe como indispensável o registo fotográfico.
14. Porque a Igreja a par de comunidade crente é também mestra de cultura e interessada em tudo o que seja valor humano, devem-se adoptar como critérios para a inventariação não apenas a presença de valor artístico ou económico, mas também o contributo do objecto para a história, a ciência e a memória da comunidade.
15. Na sua indiscutível maioria, o património artístico da Igreja permanece vivo, isto é, continua a ser utilizado de acordo com o seu destino. Nesse sentido, os que por ele são responsáveis deverão usá-lo inteligentemente, tendo em conta o seu preço ou raridade, garantindo sempre a sua conservação, aplicando-o no louvor a Deus e proporcionando a fruição da sua beleza.
16. O primeiro lugar para a fruição dos bens artísticos religiosos, fruição que a Igreja não impede, é a sua correcta e pública utilização.
17. A comunidade crente partilha, por exigência da própria fé, os valores e os projectos da comunidade cívica a que pertencem os seus membros. Por isso, a Igreja não se furta a que o seu património cultural seja considerado entre o património artístico nacional ou local, dispondo-se a colaborar nas iniciativas civis destinadas ao conhecimento e apreciação dos bens artísticos do país, da região ou da localidade.
Para que tal aconteça, a Igreja exigirá a aceitação dos critérios de utilização que ela própria tiver definido, o reconhecimento da propriedade dos bens em causa, o respeito pelo seu possível carácter sagrado e o cumprimento das cláusulas acordadas para a utilização em vista.
18. Os templos abertos ao culto bem como as suas imagens e alfaias distinguem-se de museus onde se visita o passado e, para tal, se preservam inalteráveis os objectos expostos. As igrejas cristãs são lugares vivos; as suas imagens, as suas peças, adornos e alfaias são manifestações de vida e testemunho eloquente da fé, ao serviço da qual foram produzidos e conservados. Para que assim continuem, a Igreja aceita transformá-los, respeitando os parâmetros plausíveis das leis do restauro.
III – UTILIZAÇÃO PASTORAL DOS BENS CULTURAIS DA IGREJA
A Igreja procura utilizar os seus bens, de modo a alcançar os fins que se apontaram. Também para melhor o conseguir, acompanha, na cultura actual, a consciência crescente da riqueza dos valores artísticos, históricos e documentais.
Por isso ela constitui organizações e promove iniciativas tendentes a zelar pela defesa e conservação do seu património e a incentivar o seu uso inteligente e proveitoso.
Com o mesmo intuito se procura educar a sensibilidade e orientar a actuação das pessoas responsáveis pelo património, clérigos e leigos.
19. Cumprindo as orientações do Direito Canónico, existe em cada Diocese a Comissão Diocesana de Arte Sacra ou departamento pastoral equivalente.
A sua constituição deve integrar não só conhecedores da Liturgia e História mas também artistas e técnicos competentes, clérigos ou leigos, sem esquecer os que hoje são peritos em conservação do património e restauro.
20. Os responsáveis diocesanos pelo património e mais ainda os encarregados locais respondem pelos espaços destinados ao culto, conservando-os limpos, reservados para os seus fins, aptos para uma liturgia renovada, abertos ao público com segurança e horário conhecido.
21. Em todas as circunstâncias e particularmente na realização de obras, devem respeitar-se os elementos decorativos e integrantes do edifício que tenham notável valor artístico ou histórico, como talhas, pinturas ou azulejos.
22. As imagens, pinturas, alfaias litúrgicas destinam-se primeiramente ao culto de Deus e à catequese do povo cristão.
Para o seu uso em fins secundários, como exposições, respeite-se a maior sacralidade de alguns, nomeadamente cálices, relíquias ou imagens de grande devoção.
23. A Igreja possui também museus, tesouros e colecções artísticas, onde se guardam valores já não utilizados no culto nem tão pouco na catequese.
O recheio dessas instituições museológicas é, de pleno direito, propriedade das instituições eclesiásticas que os promoveram.
Compete a estas instituições utilizar o seu património de modo a favorecer a catequese, o apreço pela transmissão e vivência da fé ao longo de séculos e também a fruição da beleza destas obras de arte por parte do público, mormente das famílias e das classes mais pobres.
24. A obtenção de fotografias ou registos equivalentes que pretendam documentar o interior dos espaços sagrados, os valores artísticos ou documentais que neles se contêm, bem como acções ou acontecimentos que ali se realizem, está sujeita a prévia autorização da entidade competente.
25. É rico o património documental que a Igreja produziu e conservou, quer em bibliotecas quer em arquivos.
Incumbe às entidades que os possuem zelar pela sua conservação e proporcionar a sua consulta ao público interessado, dentro de normas estabelecidas.
26. Pelo carácter sigiloso de que se revestem alguns dos documentos guardados, nomeadamente os que se referem a processos matrimoniais, a Igreja considera-se no direito de estabelecer legislação apropriada para a consulta dos seus arquivos.
27. O encargo de zelar pelos bens culturais da Igreja, que obriga os seus proprietários, comunidades e respectivos responsáveis, não se limita aos deveres de defesa, conservação e recta utilização. Esta supõe a criatividade pastoral que inclui iniciativas, tais como a organização de exposições, sobretudo temáticas, a edição de catálogos e obras de investigação, a organização de concertos espirituais.
28. A realização destes concertos em igrejas, que é superiormente preconizada, obedecerá sempre às normas publicadas pela Santa Sé e pelas dioceses portuguesas, segundo as quais o reportório deverá ser condizente com o lugar sagrado, constituído por música sacra ou religiosa, e sujeito a aprovação superior.
Estabelece-se também que estes concertos, que se destinam a proporcionar momentos de elevação espiritual, sejam inteiramente gratuitos.
IV – OUTRAS UTILIZAÇÕES DOS BENS CULTURAIS DA IGREJA
Consciente da sua missão de serviço à sociedade e promotora de valores humanos, sobretudo cultura e ajuda aos mais desfavorecidos, a Igreja dialoga com as entidades civis que interferem no campo da arte e no conhecimento histórico das comunidades.
Este diálogo supõe a abertura a contributos recíprocos, de que as comunidades crentes necessitam ou podem oferecer.
29. As relações recíprocas entre o Estado Português e a Igreja Católica relativamente ao património artístico que esta possui ou utiliza, encontram-se basicamente definidas pela Concordata com a Santa Sé.
As questões que surgirem em ordem ao cumprimento do acordado na Concordata relativamente aos imóveis classificados, deverão ser presentes à Conferência Episcopal Portuguesa, que as encaminhará para diálogo da Comissão Bilateral estabelecida para o efeito no texto concordatário (Art. 23, n. 3)
30. As comunidades cristãs possuidoras de espaços e objectos artísticos que lhes sejam solicitados para utilização civil, estão abertas à cedência temporária do que lhes for pedido, salvaguardadas as seguintes condições: não prejuízo grave para o culto, finalidade do empréstimo condinzente com a dignidade do lugar ou do objecto emprestado, cumprimento das condições de segurança devidamente acordadas, autorização da entidade competente, que é o Bispo sempre que se trate de espaços sagrados ou imagens.
31. A cedência de espaços afectos ao culto para a realização de concertos musicais só será feita quando se cumprirem as normas estabelecidas no número 28, com relevo para a exigência de que o reportório seja de música sacra ou religiosa.
32. As visitas turísticas aos templos e outros espaços religiosos, permite-as a Igreja e muitas vezes ela própria as promove, assistindo-lhe o direito, inclusivamente nos edifícios classificados, de lhes marcar o horário e de as impedir durante as horas de culto.
33. As comunidades cristãs e entidades religiosas respeitarão sempre os acordos que se estabelecerem com instituições civis para atribuição de subsídios, concessão de mecenato, colaboração na salvaguarda ou mais valia cultural. Para a assinatura desses acordos requer-se a aprovação do Bispo Diocesano, que previamente deverá conhecer os termos do acordo.
V – CRIAÇÃO DE PATRIMÓNIO ARTÍSTICO E CULTURAL
As Dioceses Portuguesas afirmam o seu propósito de continuar a promover a criação de valores artísticos, cuidando da qualidade arquitectónica e decorativa dos novos templos, da nobreza das alfaias sagradas, da beleza do canto litúrgico.
34. Ao longo dos séculos, o povo simples das comunidades cristãs foi o principal fautor de arte religiosa, pedindo-a, oferecendo para ela as suas dádivas, contemplando-a e cuidando da sua defesa, por vezes ciosamente.
Consciente disso, a Igreja cultivará a ligação dos bens culturais ao povo cristão, cuidando também de o elucidar e formar.
Esta atitude será garantia de a Igreja continuar a suscitar no seu seio novas criações artísticas.
35. Os Seminários, os Institutos Religiosos e as Comissões de Arte Sacra hão-de cuidar da preparação dos sacerdotes e outros responsáveis comunitários em ordem ao conhecimento, salvaguarda e correcta utilização do património sacro. Para isso deverão organizar acções de formação, realizadas em parceria com institutos e escolas.
36. Também com o intuito de serem promotoras de arte, as Igrejas locais devem abrir-se ao diálogo com os artistas, escutando-os e pedindo-lhes que não descurem as marcas de verdade, pureza, paz e transcendência que hão-de caracterizar as obras de arte sacra.
37. A produção de documentação histórica é uma tarefa que a Igreja não descura. Pelos meios tradicionais da escrita ou pelos métodos modernos de gravação informática, cuidem os responsáveis de serviços de deixar para o futuro, devidamente ordenados, documentos escritos, fotográficos e musicais que atestem aos vindouros a fé e a vitalidade da Igreja que somos.
Fátima, 16 de Novembro de 2005