terça-feira, 28 de setembro de 2010

COMPETÊNCIA TRIBUNAL ECLESIÁSTICO

Apelação nº 63/08.0TBALJ.P1 - 5ª Sec.

Data - 27/04/09

COMPETÊNCIA

TRIBUNAL ECLESIÁSTICO

Sumário

I - A concordata de 2004 reforça a autonomia e separação de poderes entre Estado e Igreja Católica

II - As condições das candidaturas, idoneidades dos seus membros, as irregularidades e vícios da convocação, no que respeita à eleição dos corpos gerentes de uma Misericórdia, como problema interno dessa instituição, compete ao ordinário Diocesano, como autoridade eclesiástica.

III - Não cabe aos tribunais judiciais, por serem materialmente incompetentes, a preparação e julgamento das irregularidades, vícios de convocação, oportunidade de marcação, da Assembleia-Geral da Misericórdia, por respeitarem à eleição dos corpos gerentes dessa instituição.

Proc. 63/08

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório

B.......... deduz a presente acção, sob a forma de processo ordinário, contra o Presidente da Mesa da Assembleia-Geral da Irmandade da Santa Casa da Misericórdia C............ e contra a Irmandade da Santa Casa da Misericórdia C.........., pedindo a anulação das deliberações tomadas nas assembleias-gerais, extraordinária e ordinária, de 29 de Dezembro de 2007, alegando que não foi dado um correcto cumprimento ao disposto no art. 57º, n.º4, do DL nº119/83, de 25 de Fevereiro, pelo que a deliberação aprovada na assembleia-geral extraordinária é anulável e, na sua sequência e na justa medida em que a lista A foi admitida à votação, a deliberação da assembleia-geral ordinária padece do mesmo vício.

Os réus apresentaram contestação, defendendo-se por impugnação e por excepção, sustentando designadamente a falta de personalidade judiciária e de legitimidade do 1º réu.

Há réplica, onde se toma posição quanto à matéria de excepção.

Fixou-se à acção o valor de 30.000,01€.

Aprecia-se a falta de personalidade judiciária e de legitimidade do réu-presidente, excepções que foram invocadas em sede de contestação e conclui-se que tem personalidade judiciária, mas quanto à legitimidade julga-o parte ilegítima, absolvendo-o da instância.

Considera ainda o tribunal a quo que, perante as posições assumidas pelas partes nos articulados, estaria já em condições de decidir de mérito, o que faz, julgando procedente a acção e declarando anuláveis as deliberações aprovadas pela assembleia-geral extraordinária e ordinária realizadas a 29-12-2007.

Inconformada, recorre a ré Irmandade da Santa Casa da Misericórdia C.......... .

Recebido o recurso, juntam-se alegações e contra alegações.

Nada obsta ao conhecimento do recurso

*

II - Fundamentos do recurso

Limitam e demarcam o âmbito dos recursos as conclusões que nele são apostas - artigos 684º n.º 3 e 690º n.º 1 do CPC -.

Justifica-se, por isso, a sua transcrição que, no caso concreto, foram:

1) Da incompetência, em razão da matéria dos tribunais comuns

1. A douta sentença de que se apela, anulando deliberações tomadas nas assembleias gerais extraordinária e ordinária da Santa Casa da Misericórdia C.........., de 29 de Dezembro de 2007, a primeira que decidiu expressamente poderem candidatar-se aos corpos gerentes, irmãos membros dos órgãos cessantes com dois mandatos perfeitos, a segunda, electiva, que escolheu a lista integrada por irmãos naquelas condições - decidiu em matéria fora do âmbito de competência dos tribunais comuns.

2. Conforme n° 1 do artigo 1º dos estatutos da apelante, "A Irmandade da Santa Casa da Misericórdia C.........., fundada no ano de 1901, continua a ser uma Associação de Fiéis, constituída na Ordem Jurídica Canónica, com o fim de satisfazer carências sociais e praticar actos de culto católico, de harmonia com o espírito tradicional, informada pelos princípios da doutrina e moral cristã"; conforme no 2: tem por finalidade, no campo social, exercer "obras de misericórdia, tanto espirituais como corporais, e no sector especificamente religioso, sob invocação da Nossa Senhora da Misericórdia, que é sua Padroeira", manter "o culto divino nas suas Igrejas" e exercer "as actividades que constem deste compromisso e as mais que vierem a ser consideradas convenientes"; a sua erecção canónica está consagrada, conforme n.º 3, sendo manifesto, face aos documentos juntos com a douta PI e ao teor designadamente dos artigos 45° e 95° do DL n° 119/83, de 25 de Fevereiro, que é uma entidade canónica certificada.

3. Estabelece o artigo 49° do DL referido que: "As instituições da igreja católica poderão revestir qualquer das formas enunciadas no artigo 2°", ou seja, e designadamente, conforme alínea d) do n° 1 deste preceito, a forma de "Irmandades da misericórdia".

4. Determina o artigo 48° do diploma mencionado, que: "Sem prejuízo da tutela do Estado, nos termos do presente diploma, compete ao ordinário diocesano, ou à Conferência Episcopal, respectivamente, a orientação das instituições do âmbito da sua diocese, ou de âmbito nacional, bem como a aprovação dos seus corpos gerentes e dos relatórios e contas anuais".

5. É pois de aplicar ao presente caso a doutrina consagrada designadamente no douto Acórdão do STJ (in http//www.dgsi.pt/jstj) de 11 de Julho de 1985 (processo 072890, n° convencional JST0000 242), de acordo com a qual: "As irmandades das Misericórdias constituem associações da Igreja Católica, no expresso reconhecimento do artigo 49° do Estatuto das instituições particulares de solidariedade social"(......) As instituições da Igreja Católica estão submetidas a tutela da autoridade eclesiástica que" (...)"as orienta, aprova os seus corpos gerentes e os relatórios e contas anuais respectivos (artigo 48° do referido Estatuto)". (... "São, assim, incompetentes os tribunais comuns para apreciar as irregularidades alegadamente ver na eleição dos corpos gerentes de uma Misericórdia

6. No mesmo sentido, entre muitos outros, aponta também o douto Acórdão de 27 de Janeiro de 2005 do sumo tribunal (processo 04B4525, doe, n° SJ200501270045257, igualmente disponível designadamente i http//www.dgsi.pt/jstj): "Se tais associações, além de fins religiosos, se propuserem também fins de assistência e beneficência, ficam, na parte respectiva, sujeitas ao regime instituído pelo direito português para estas associações ou corporações" (... "o legislador, no DL 119/83, de 25.2, definiu as áreas de tutela do Estado e as da Igreja Católica". (...) "No caso das Misericórdias, associações de fiéis constituídas na Ordem Jurídica Canónica, cabe ao Ordinário diocesano a aprovação dos respectivos corpos gerentes". (...) "Essa aprovação abrange as irregularidades na admissão de «irmãos», bem como as do respectivo processo eleitoral". De facto, "a tutela do Estado definida nos artigos 32° e seguintes" do DL referido "não se estende às eventuais irregularidades que envolveram o processo eleitoral da requerida, por tal competência pertencer ao Ordinário diocesano, nos termos do artigo 48° do mencionado Diploma Legal

7. Não parecendo que a doutrina seguida nos doutos acórdãos citados deva ser afastada em razão da entrada em vigor, em 2004, de nova Concordata estabelecida entre a República Portuguesa e a Santa Sé, desde logo porque, nos termos do seu artigo 11°, as pessoas jurídicas canónicas do género da apelante "regem-se pelo direito canónico e pelo direito português, aplicados pelas respectivas autoridades", ou seja, pelo direito português no que concerne ao desenvolvimento "dos fins de assistência e solidariedade" a que se refere o seguinte artigo 12°, a aplicar pelos tribunais portugueses, e, no mais, designadamente em casos de supostas irregularidades electivas, pelo direito canónico, a aplicar pelas autoridades canónicas.

8. Reconhece o n° 4 do artigo 2° daquele instrumento internacional "à Igreja Católica, aos seus fiéis e às pessoas jurídicas que se constituam nos termos do direito canónico a liberdade religiosa, nomeadamente nos domínios da consciência, culto, reunião, associação, expressão pública, ensino e acção caritativa", ou seja (citando o segundo douto acórdão referido, porque adequado apesar de ter em vista a anterior Concordata) "o poder de se organizar livremente de harmonia com as normas do direito canónico, e constituir por essa forma associações ou organizações a que o Estado reconhece personalidade jurídica, bastando que, depois de canonicamente erectas, seja feita participação escrita à autoridade competente pelo Bispo da diocese, onde as mesmas tiverem a sua sede

9. Tendo em vista o espírito da Concordata em vigor e face ainda ao disposto nos artigos 32° a 36° do EJPSS, quanto à tutela do Estado (em que se enumeram actos relacionados com bens materiais, se determina que os orçamentos e contas carecem de visto dos serviços competentes, se fixam os termos da fiscalização a exercer e se alude à destituição dos corpos gerentes); ao disposto nos artigos 44° a 51° do mesmo diploma (que contêm disposições especiais para as instituições da igreja católica) e ao teor, de entre estes, do artigo 48°, que define a tutela da autoridade eclesiástica cometendo-lhe "a orientação das instituições do âmbito da sua diocese, ou de âmbito nacional, bem como a aprovação dos seus gerentes e dos relatórios e contas» - "parece de concluir que quanto à aprovação dos gerentes dessas associações, nenhuma tutela reservou para si o Estado" (segundo douto acórdão já citado), tratando-se esta, "de matéria da vida interna da associação, sem repercussão no fim assistencial, ou, pelo menos, assim o entendeu o legislador" e abrangendo "essa «aprovação» dos corpos gerentes" (...)"a ver da regularidade da sua eleição porque doutra forma, tal acto limitar-se-ia «à aposição de uma chancela», sendo certo que tais actos «não respeitam ao fim de assistência ou de solidariedade social que a instituição se propõe realizar, antes à sua vida interna», como acertadamente se refere no citado Ac. do STJ de 11.7.85".

10. Por outro lado, o "n° 1 do artigo 69°" do diploma referido "não deixa, afinal, de excepcionar «as sujeições canónicas que lhe são próprias, ressalvando o n°3 da aplicação do preceituado no n° 1 «tudo o que especificamente respeita às actividades estranhas aos fins de solidariedade social»", pelo que quando "a lei diz que cabe ao Ordinário diocesano a aprovação dos corpos gerentes da associação, significa que é a ele que cabe também a apreciação das eventuais irregularidades ocorridas na sua eleição e não ao tribunal".

11. Finalmente, tal como no presente, o caso em vista no douto Acórdão citado "não revela matéria integrável no artigo 7° do DL 519-G2, que se mantém em vigor

12. Face ao exposto, é de concluir pela incompetência dos tribunais comuns, em razão da matéria, para apreciar a acção aqui em causa, que caberá ao Ordinário diocesano com competência territorial para o efeito - e assim sendo, violou a douta decisão recorrida especialmente o artigo 48° e o n° 1 do artigo 69° do DL n° 119/83, de 25 de Dezembro, o n° 4 do artigo 2° e o artigo 11º da Concordata estabelecida entre a República Portuguesa e a Santa Sé.

2) Da anulação ilegal porque sem fundamento

13. Mas criou ainda um fundamento legal de anulação, mal aplicando portanto a lei e os estatutos reguladores do caso sub judice.

14. Único fundamento da decisão recorrida: a validade de deliberação que aceite votar elementos de corpos gerentes concorrentes a um terceiro mandato consecutivo por inconveniência da sua substituição depende de ser essa deliberação anterior ao termo final do prazo de apresentação das listas a submeter a sufrágio. Este fundamento não tem cobertura na lei e mesmo viola-a.

15. Como saber, antes de se conhecerem as candidaturas, quem vai candidatar-se a um terceiro mandato consecutivo? Como submeter à apreciação dos sócios se é ou não inconveniente vedar a eleição a um terceiro mandato consecutivo, sem previamente apurar quem se candidata e que membros integram as listas a votar?

16. Qualquer entidade que reconheça o valor do tempo, do interesse e do cansaço dos seus associados, tende a evitar actos supérfluos, ou seja, prefere economizar diligências, apostando na suficiência e na eficácia bastante dos actos a praticar, desde que permitidos estatutariamente e por lei - certo sendo que a conduta censurada à apelante R não só é permitida por lei e estatutariamente como visou cumprir e cumpriu a lei e os estatutos.

17. Diz o n°4 do artigo 57° do DL n° 119/83, de 25 de Fevereiro: ‘Não é permitida a eleição de quaisquer membros por mais de dois mandatos consecutivos para qualquer orgão da associação, salvo se a assembleia-geral reconhecer expressamente que é impossível ou inconveniente proceder à sua substituição".

18. Com o impedimento relativo aqui em causa pretende a lei salvaguardar as instituições visadas de perpetuações nefastas e injustificadas nos respectivos cargos de gerência - não pretende excluir essa possibilidade quando se revele conveniente à prossecução dos seus fins.

19. Contrariamente ao que defende a douta decisão recorrida, a lei não distingue procedimentos diversos a adoptar nos casos de impossibilidade ou de inconveniência da substituição e tudo o que a este respeito é dito na sentença impugnada, não é decorrência dos preceitos, não tem valor normativo, antes sim é fruto de racionalização sem fundamento jurídico.

20. A lei não exige em nenhum dos casos, que o reconhecimento em causa seja expresso antes ou depois do termo final do prazo de apresentação das candidaturas. Conquanto ocorra, seja expresso e anterior às eleições, deve produzir, à priori ou à posteriori, os seus efeitos de validação.

21. Diferente seria se impedisse a lei a candidatura de quaisquer membros que tivessem exercido consecutivamente os dois mandatos anteriores, salvo reconhecimento expresso da impossibilidade ou inconveniência da sua substituição... Com esta formulação ou similar, vedaria candidatura desprovida de reconhecimento prévio da sua admissibilidade.

22. Mas se a lei pretendesse contemplar esta solução tê-la-ia fixado, o que não fez, pois o que fez e quis foi impedir a eleição salvo reconhecimento expresso de impossibilidade ou inconveniência, sendo esta a sua letra e nela se contendo a sua intenção: vedar a eleição a quem, tendo cumprido os dois mandatos anteriores, não seja expressamente admitido a candidatar-se - devendo o intérprete presumir (assim manda o n° 3 do artigo 90 do CC) que o legislador soube adequadamente exprimir o seu pensamento, cuidado que o tribunal a quo salvo melhor opinião não teve.

23. Às considerações expendidas na douta decisão recorrida a respeito da observância dos pressupostos legais das candidaturas falta pois sentido, seja pelo dito, seja, além do mais, pelo seguinte:

1) A "aferição do preenchimento dos pressupostos legais e estatutários das listas candidatas" há-de ser feita por referência às normas chamadas a enquadrar os pertinentes factos e não, contrariamente ao que pretende a douta decisão recorrida, " por referência ao momento da sua apresentação

2) Se a questão em apreço for a da tempestividade, relevam a data de apresentação e a do termo final do respectivo prazo, mas é assim sempre que a prática de um acto depende da observância de um prazo;

3) Segundo a douta sentença recorrida, "ressalvada a hipótese de norma especial prever o contrário, é bem de ver que a verificação dos pressupostos de admissibilidade da lista ou de um candidato numa qualquer eleição terá de se aferir por referência à data da apresentação da candidatura e não à data da eleição" - afirmação com que transformou raciocínios em norma geral, concedendo depois prevalência a norma especial que se interponha;

4) Não se percebendo, já que em ambos os casos a norma é a mesma, como encontrou norma especial para admitir o reconhecimento posterior da impossibilidade, sem encontrar norma especial para admitir esse posterior reconhecimento quando em apreço um caso de inconveniência;

5) Afirma designadamente a douta sentença recorrida, exemplificando, que, exigindo-se "que o candidato tenha mais de 35 anos, não se pode admitir a candidatura daquele que tem 34, ainda que complete a idade exigida antes da eleição "... E é certo, se a exigência legal da idade for feita ao candidato, mas se ao candidato for exigido que tenha 35 anos quando eleito, pode ou não candidatar-se antes de os ter? Claramente sim, se os completar antes das eleições.

6) O exemplo mais inacreditável é o que se segue à seguinte conclusão: "A tese sustentada pela R - de que a Assembleia-geral extraordinária sanou a irregularidade da lista A - permitiria a hipótese absurda de admitir uma lista candidata de membros não associados ". Mas permitiria, como, se a candidatura é um acto de exercício de direitos e deveres reservado aos associados que supõe, como parece e é evidente, a qualidade de associado ou irmão?

7) Resposta: "Na medida em que o Compromisso da Irmandade Ré permite que seja eleito para os corpos gerentes qualquer irmão, sem observância de um período de inibição, bastaria para tanto que os membros da lista candidata viessem a ser admitidos em reunião da mesa administradora convocada pelo Provedor em data anterior à eleição. É bem de ver que não pode ser.

8) Pois é, conclui também a apelante! Mas por razões totalmente estranhas ao raciocínio expendido na decisão recorrida: A candidatura a cargos electivos é um acto expressivo do exercício de direitos e deveres dos associados, o que supõe a prévia aquisição dessa qualidade!

24. A lei e os estatutos vedam a candidatura a cargos electivos a quem não seja associado, mas não impedem aos associados a candidatura a um terceiro mandato consecutivo: apenas impedem a sua eleição caso não obtenham reconhecimento expresso da inconveniência ou impossibilidade da sua substituição! Este o sentido do n.º 4 do artigo 57° do DL n° 119/83, de 25 de Fevereiro (Não é permitida a eleição de quaisquer membros, por mais de 2 mandatos consecutivos para qualquer orgão da associação, salvo se a assembleia-geral reconhecer expressamente que é impossível ou inconveniente proceder à sua substituição").

25. Podendo ser eleitos todos os irmãos salvo, a menos que expressamente autorizados pela assembleia nos termos legais e estatutários, os que tenham exercido o mandato cessante e o imediatamente anterior, todos devem poder candidatar-se (nada na lei o impede!) embora, de entre os que concorram nessas condições, possam ser eleitos tão somente os que venham, nos termos legais, a ser reconhecidos pela assembleia como insusceptíveis de substituição ou inconvenientemente substituíveis.

26. A este respeito, centrando-se na essencialidade que norteia ontologicamente o jurídico, resume, entre muitos no mesmo sentido, o douto Acórdão do STJ, proferido no dia 6 de Junho de 2000 (processo 00A446, n° convencional JSTJ000040493, publicado in http//www.dgsi.pt/jstj):

"I - Á eleição dos membros dos órgãos das associações de solidariedade social por mais de 2 mandatos consecutivos necessita do reconhecimento expresso pela assembleia geral da impossibilidade ou inconveniência de proceder à sua substituição.

II - Pretende-se, assim, evitar longas permanências nos respectivos cargos, com o risco do seu exercício rotineiro e da formação de estruturas oligárquicas, e fomentar a rotatividade.

III - O reconhecimento expresso referido em 1, não pode resultar, assim, implícita ou tacitamente, do conteúdo da deliberação tomada em assembleia geral que não teve por tema específico a impossibilidade ou inconveniência da substituição, que têm, pois, de ser expressamente discutidas.

IV - Se a convocação da assembleia geral tiver precisado esse «thema deliberandum» fica satisfeita essa exigência legal, não tendo de constar do conteúdo da deliberação os fundamentos resultantes da discussão, ou seja, o debate que integrou o processo formativo da deliberação".

27. Por tudo, as deliberações anuladas à apelante R não são contrárias à lei ou aos estatutos, antes sim se inserem numa tramitação electiva plenamente conforme à lei, aos estatutos, à lisura e honestidade e ao bom senso dos procedimentos associativos.

28. No dia 26 de Novembro de 2007 foram convocadas duas assembleias gerais, uma, extraordinária, informando os sócios da previsível necessidade, face ao disposto no n° 4 do artigo 57° do DL em vista, de se pronunciarem a respeito da elegibilidade de alguns candidatos; a outra, ordinária, marcando eleições e estabelecendo um prazo para a apresentação de candidaturas.

29. Foram os sócios informados, por convocatórias remetidas no dia 26 de Novembro de 2007: que podiam apresentar as suas candidaturas aos cargos electivos até ao dia 19 de Dezembro de 2007; que uma assembleia-geral extraordinária apreciaria, no seguinte dia 29 de Dezembro, a admissibilidade ao acto eleitoral dos membros que se candidatassem a um terceiro mandato consecutivo (todos os que viessem a encontrar-se nessa situação!), por impossibilidade ou inconveniência da sua substituição; que logo após elegeriam as listas de candidatos não rejeitados na assembleia anterior.

30. Deste procedimento eleitoral ressalta, não só a sua conformidade legal e estatutária, como ainda a preocupação: de facilitar aos associados o exercício dos seus direitos e deveres; de conceder aos associados que exerceram cargos nos dois mandatos anteriores e quisessem candidatar-se, a possibilidade de verem discutida pela assembleia a questão da sua elegibilidade; de cometer à assembleia o exercício dessa competência que em exclusivo a lei e os estatutos lhe conferem.

31. A decisão recorrida, anulando seja a deliberação da apelante que reconheceu a membros dos seus corpos cessantes a possibilidade de se candidatarem a um terceiro mandato consecutivo seja a deliberação electiva que se lhe seguiu, mal interpretou a norma constante do n° 4 do artigo 57° do DL n° 119/83, de 25 de Fevereiro e mal aplicou o direito.

32. Ignorando o disposto no n° 3 do artigo 9° do CC, mal interpretou e mal aplicou o direito.

33. E não só opôs à apelante determinações desprovidas de fundamento legal, como feriu ainda o princípio constitucional da liberdade de organização e funcionamento das associações e pessoas colectivas em geral, limitada apenas estatutariamente (ou seja, por vontade dos seus associados) e por lei - contemplado nos n°s. 1 e 2 do artigo 46° da CRP.

Termos em que deve proceder o presente recurso, declarando-se a incompetência do tribunal civil para conhecer e decidir a matéria posta à sua apreciação por ser da competência do Ordinário diocesano, com todas as consequências de lei, ou, se se entender diversamente, ordenando-se o prosseguimento dos autos e a selecção dos factos provados e a provar.

*

Nas contra alegações sustenta-se a manutenção da decisão e quanto ao problema da incompetência material entende que serão os tribunais comuns os competentes, materialmente, para decidir da regularidade ou não de um processo eleitoral de uma misericórdia e não os tribunais eclesiásticos.

*

III - Factos provados

Resultam admitidos por acordo e provados documentalmente os seguintes factos relevantes para a decisão da causa:

a) A Irmandade da Santa Casa da Misericórdia C.......... é uma instituição de caridade e assistência social, de fins filantrópicos, enformada pelos princípios da doutrina e moral cristãs;

b) No dia 26 de Novembro de 2007 foi convocada uma Assembleia-geral Extraordinária, a realizar no dia 29 de Dezembro de 2007, pelas 15 horas, com a seguinte ordem de trabalhos: "ponto único. Consulta à Assembleia-Geral nos termos do n.º4 do art. 57º do Decreto-Lei n.º119/83, de 25 de Fevereiro. A convocação desta Assembleia Geral Extraordinária fundamenta-se, a teor do art. 24º dos Estatutos da Santa Casa da Misericórdia C.........., na previsível necessidade de consulta prevista no n.º4 do art. 57º do Decreto-Lei n.º119/83, de 25 de Fevereiro relativamente a alguns elementos a integrar nas listas de Candidaturas aos Órgãos Sociais para o mandato 2008/2019";

c) No mesmo dia foi convocada uma Assembleia-geral ordinária, a realizar no dia 29 de Dezembro de 2007, pelas 16 horas, para eleição dos órgãos sociais;

d) A convocatória a que se alude em c) referia: "as listas de candidatura, em ordem a um regular funcionamento de todos os actos do processo eleitoral, deverão ser apresentadas na Secretaria da Santa Casa com a antecedência de, pelo menos, dez dias da data designada para a eleição, ou seja até às 17.30 horas do dia dezanove (19) de Dezembro de 2007";

e) Foram apresentadas duas listas, designadas Lista A e Lista B;

f) O Sr. Eng. D.......... e o Sr. E.......... candidataram-se pela Lista A, respectivamente a Provedor e a Presidente do Conselho Fiscal;

g) Os elementos da lista A identificados em f) exerceram funções em órgãos sociais nos dois últimos mandatos;

h) A Assembleia-geral Extraordinária realizou-se no dia 29 de Dezembro de 2007, pelas 15 horas;

i) Votaram 105 irmãos, dos quais 73 a favor da admissão da lista A, 30 contra e dois em branco;

j) A Assembleia-geral Ordinária realizou-se no dia 29 de Dezembro de 2007, pelas 16 horas;

k) Votaram 113 irmãos, dos quais 71 na lista A, 40 na lista B e dois em branco.

l) O Autor é o associado/irmão n.º... da SCMC.......... .

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IV - O Direito

Em sede de jurisdição comum, considerou e analisou o tribunal a quo os problemas suscitados pelo autor, o qual defendia que as deliberações aprovadas na assembleia-geral extraordinária e ordinária realizadas nos dia 29 de Dezembro de 2007 seriam anuláveis porquanto a ordem de trabalhos não estava devidamente concretizada, que a consulta realizada deveria ter sido efectuada antes de esgotado o prazo legal para apresentação das listas candidatas, que a deliberação da reunião extraordinária não reproduz quais os fundamentos de impossibilidade ou da inconveniência e, por fim, que a lista A fora admitida à votação sem preencher os requisitos necessários.

O tribunal, apreciando o problema à luz da lei civil portuguesa e do DL n.º 119/83, de 23 de Fevereiro, considerou existir irregularidades que importavam a anulabilidade de ambas as deliberações tomadas em 29 de Dezembro de 2007, julgando, deste modo, a acção procedente.

Anote-se que em sede de 1ª instância não foi questionado nem se tomou posição sobre o problema da eventual incompetência material do tribunal comum, apesar do seu conhecimento ser oficioso.

Porém, em sede de recurso, o inconformismo da apelante Irmandade da Santa Casa da Misericórdia C.......... relativamente à decisão impugnada, centra-se em duas áreas fundamentais, como sejam, da incompetência material do tribunal comum para decidir esta matéria eleitoral de uma Misericórdia e, para além disso, da falta de fundamento legal da decisão mesmo à luz da jurisdição comum.

Vejamos a primeira questão, na medida em que da sua sorte, se conhecerá ou não da segunda.

Como se afirmou já, o problema da incompetência material do tribunal comum para apreciar e decidir questões relativas a eventuais irregularidades das deliberações das assembleias-gerais da Misericórdia C.......... não foi suscitado nem avaliado em sede de primeira instância.

No entanto, como estamos perante um problema de incompetência material do tribunal comum para analisar e julgar esta questão, que a verificar-se determina a incompetência absoluta deste e se traduz mesmo numa excepção dilatória, sendo o seu conhecimento oficioso - artigos 65º n.º 1, 66º, 101º, 102º, 103º, 494º e 495º, todos do CPC -, que origina a absolvição da parte ré da instância - art. 493º n.º 2 do CPC -, pelo que terá de ser objecto de análise e apreciação.

Daí que se inicie por abordar o problema levantado.

E a questão consiste em averiguar qual será o tribunal competente para julgar de questões relativas ao contencioso eleitoral nas Misericórdias - regularidade ou vícios da eleição dos seus órgãos sociais -, se os tribunais cíveis se a autoridade eclesiástica.

Isto é, será o tribunal comum competente em razão da matéria para conhecer do pedido formulado nesta acção e perante a causa de pedir alegada?

A questão tem sido amplamente debatida na nossa jurisprudência e verificamos que não tem sido uniforme.

Para uma corrente jurisprudencial, será competente para julgar do acto eleitoral para os corpos gerentes duma Misericórdia, o tribunal comum/cível.

Entre eles, podemos apontar o Ac. R. Porto, de 5-6-2006, em www.dgsi.pt, segundo o qual "Compete aos Tribunais comuns e não aos Tribunais eclesiásticos - Ordinário Diocesano - a competência para apreciar o pedido de impugnação de deliberação da Assembleia eleitoral dos seus corpos sociais, com fundamento em alegadas irregularidades."

Também desta Relação, por Ac. de 5-05-2005, www.dgsi.pt, se entende que "O tribunal comum é materialmente competente para conhecer de alegadas irregularidades respeitantes às eleições de uma Misericórdia".

No mesmo sentido se manifesta o Ac. R. Évora, de 23-2-1989, CJ, Tomo I, pág. 253, mas agora para efeitos de convocação da assembleia geral de uma Misericórdia.

Já o Acórdão da R. Porto, de 21-6-99, www.dgsi.pt, apontado pelo recorrido nas suas contra alegações, apenas consta o sumário, desconhecendo-se qual a questão de fundo que o originou.

Também o Ac. STJ, de 4-10-2000, não publicado, decidiu que eram competentes os tribunais cíveis e não a autoridade eclesiástica, para conhecer de um pedido de uma suspensão de uma decisão de uma Misericórdia que não conhecera a inelegibilidade de um candidato aos corpos gerentes e se pedira a suspensão do acto eleitoral.

Para outra corrente, sobressaindo aqui essencialmente o Supremo Tribunal de Justiça, entende que em casos como os que aqui estão em causa, será materialmente competente o tribunal eclesiástico e não o tribunal comum, para decidir os conflitos ou irregularidades ocorridos com a eleição dos seus corpos gerentes de uma Misericórdia.

E desde logo encontramos este sentido de opinião no Ac. STJ, de 11-7-1985, BMJ, n.º 349, pág. 432, em que estava em causa um pedido de suspensão da deliberação social da assembleia geral de uma Santa Casa da Misericórdia que tinha procedido à eleição dos corpos gerentes, discutindo-se no processo a questão da competência para conhecer e decidir desse pedido de suspensão.

Diga-se que este acórdão confirma uma decisão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 6-11-84, o qual também se pronunciou no sentido da competência caber ao órgão eclesiástico.

Fundamenta a decisão, analisando quer os sagrados cânones sobre associações de fiéis na Igreja Católica, quer as disposições do Estatuto das IPSS de 1983 - DL. n.º 119/83 -, como ainda as normas da Concordata de 1940, terminando no artigo 48° desse Estatuto das IPSS, concluindo que nos termos deste normativo cabe à tutela da autoridade eclesiástica a "aprovação dos corpos gerentes".

E daí que pondere:

"É de entender, todavia, que a fiscalização da observância das referidas regras (sobre assembleias gerais) não compete às autoridades civis no caso em apreço, no qual apenas está em causa o modo como se preparou, realizou e apurou o resultado da eleição para os cargos directivos.

E isso porque, de um lado, se ao Ordinário diocesano cabe, por força do normativo legal, a aprovação dos corpos gerentes da Misericórdia, caber-lhe-á também, por necessária inerência, verificar a regularidade da eleição, sob pena de ter de aceitar-se que a sua aprovação haveria de resumir-se à aposição de uma chancela sem qualquer sentido prático e efeito útil; de outra banda porque as invocadas irregularidades não se situam no campo em que se faz exercer a tutela do Estado, não se compreendendo, assim, a ingerência do poder temporal; e, finalmente, porque aqueles actos não respeitam, sequer, ao fim assistencial ou de solidariedade social que a instituição se propõe realizar, mas à sua vida interna, cuja fiscalização deverá caber, pois, ao Ordinário competente face ao que se prescreve no artigo 48°"

Neste raciocínio está para nós em foco o essencial da questão e do problema a solucionar.

Um outro acórdão, também do STJ, de 27-1-2005, consultável tanto em www.dgsi, como na CJ, Tomo I, pág. 49, aborda também e de forma hábil esta problemática e mostra-se assim sumariado:

"No caso das Misericórdias, associações de fiéis, constituídas na Ordem Jurídica Canónica, cabe ao Ordinário diocesano a aprovação dos respectivos corpos gerentes.

Essa aprovação abrange as irregularidades na admissão de "irmãos", bem como as do respectivo processo eleitoral".

O caso concreto que originou esta posição envolvia uma providência cautelar, na qual se pedia que o tribunal civil intimasse uma Misericórdia a abster-se de dar posse aos irmãos eleitos para os corpos gerentes.

As instâncias anteriores tinham entendido que competente para conhecer da validade de eleições nas Misericórdias era a autoridade eclesiástica e não o tribunal civil.

Este acórdão confirma essas decisões, baseando-se retirando os argumentos tanto da interpretação do art. IV da Concordata de 1940, como da interpretação do art. 48º do DL 119/83, de 25.2, e conclui-se da sua leitura que para a decisão final foi relevante a apreciação de que caberá ao Ordinário Diocesano a orientação das instituições na sua diocese, bem como a aprovação dos seus corpos gerentes e dos relatórios e contas.

Aponta ainda que as eleições para os corpos gerentes de uma Misericórdia são matéria da vida interna dessa instituição, que nada tem a ver com o seu fim assistencial ou de solidariedade e que a aprovação dos corpos gerentes, nos termos do artigo 48° do Estatuto das IPSS, abrange a verificação da regularidade da sua eleição.

E conclui ainda que as eleições numa Misericórdia são matéria estranha aos fins de solidariedade social, que a aprovação dos corpos gerentes da associação pelo Ordinário diocesano se deve incluir também a apreciação das eventuais irregularidades ocorridas na sua eleição.

Novamente no mesmo site e na mesma colectânea, mas nesta a fls. 77, encontramos outro acórdão do STJ, de 17-2-2005, que se debruça sobre idêntico problema, uma vez que se punha em causa uma decisão da Mesa de uma Santa Casa da Misericórdia que admitiu a filiação ou adesão de novos irmãos.

O seu sumário é:

"O acto da Mesa Administrativa de uma Misericórdia relativo à admissão, filiação ou adesão de novos irmãos como membros efectivos da Irmandade respeita exclusivamente à vida interna ou inter-orgânica da instituição em causa, cuja fiscalização e tutela competem, por isso, ao "Ordinário Diocesano".

- Não cabe, assim aos tribunais indagar da idoneidade ou da inidoneidade dos candidatos à filiação nesse instituto eclesial, e muito menos sindicar a "legalidade", ou sequer a oportunidade ou a conveniência, do acto de apreciação (positiva ou negativa) dessas candidaturas ou pedidos de filiação/admissão.

- E daí a incompetência dos tribunais comuns "ratione materiae" para a sindicância da questionada legalidade e, consequentemente, para a apreciação de providência cautelar de suspensão da decisão da mesa administrativa - órgão executivo da Misericórdia - sobre a admissão de novos irmãos.

De igual modo, da leitura deste acórdão podemos retirar as razões essenciais em que assentou a sua decisão, podendo assim escaloná-las e especificá-las como considerando que as Irmandades da Misericórdia constituem associações da Igreja Católica, encontrando-se sujeitas à tutela da autoridade eclesiástica e que os institutos e associações dela resultantes e que tenham por fim o exercício da actividade especificamente religiosa serão estranhos e alheios aos fins próprios da administração pública, mas caso prossigam fins de beneficência ou de assistência ficarão já sujeitas, nessa parte, mas apenas nessa parte, ao ordenamento jurídico geral instituído pelo Estado para as instituições particulares da mesma índole, sem prejuízo da disciplina e espírito religiosos.

Mais recentemente, encontramos novo Ac. do STJ, de 26-4-2007, em www.dgsi.pt e CJ, STJ, Tomo II, pág. 47, referente a um problema surgido na Santa Casa da Misericórdia .........., considerando competente o Ordinário diocesano e não o tribunal cível para julgar de uma acção em que se pedia a declaração de nulidade duma deliberação da Assembleia Eleitoral.

A 1ª instância considerou-se incompetente em razão da matéria mas a Relação revogou, por acórdão de 25-6-2006, acima referenciado, decisão que agora vê ser confirmada pelo Supremo Tribunal.

O sumário constante do site é:

1º - A Santa Casa da Misericórdia .........., como misericórdia e atento o seu compromisso, é uma instituição integrante da ordem jurídica canónica como associação de fiéis pública, que visa - enformada pelos princípios da doutrina e moral cristãs - satisfazer carências sociais e praticar actos de culto católico, tendo, na ordem jurídica civil, a natureza de instituição particular de solidariedade social.

2. O artigo 41.º, n.º 4 da Constituição não resolve a questão da competência ou incompetência dos tribunais civis para conhecerem da impugnação da eleição dos corpos sociais das misericórdias que prossigam a referida duplicidade de fins.

3. Abrindo apenas caminho à relevância das Concordatas estabelecidas entre Portugal e a Santa Sé.

4. As quais, situando-se em plano inferior ao da Constituição da República, se situam em plano superior ao das normas internas do Estado Português.

5. Do artigo 4.º do teor da Concordata de 1940 resulta a competência do Ordinário ali referido para apreciar o pedido de impugnação dum acto eleitoral duma misericórdia, quer seja invocada a violação do direito canónico, quer a violação do direito português.

6. Cedendo, por se situarem hierarquicamente abaixo, normas internas portuguesas que disponham em sentido diferente.

7. Perante a Concordata de 2004, se estiver em causa a violação do direito canónico, será chamada a intervir a autoridade da Igreja, se estiver em causa a violação do direito interno português, recorre-se aos tribunais civis.

Anota ainda este Acórdão que as Concordatas que a Santa Sé assinou com Portugal estão compreendidas no conceito de "convenções internacionais" e que vigoram na ordem interna, situando-se numa hierarquia imediatamente a seguir à Constituição e antes das normas internas portuguesas.

E ainda que, atento o art. 4º da Concordata de 1940, se estabelece uma estatuição relativa à incompetência dos tribunais cíveis para impor o próprio "regime instituído pelo direito português", qual seja de verem os tribunais civis portugueses a velarem pelo cumprimento do direito interno nacional.

Conhecemos ainda uma decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, não publicada, de 17-12-2008, proferida sobre um caso concreto em que, como "preliminar de uma acção administrativa especial de anulação de acto administrativo", se pedia a suspensão de eficácia de uma decisão tomada por uma Mesa Administrativa de uma Santa Casa de Misericórdia, que não admitiu como irmãos 63 pessoas e do despacho do Presidente da Assembleia Geral que fixou um prazo para apresentação de listas de candidaturas de diversos cargos.

E concluiu, em decisão amplamente fundamentada, que não cabe nem aos tribunais judiciais nem aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal indagar da idoneidade ou não dos candidatos à filiação num dado instituto eclesial e menos ainda sindicar da legalidade, conveniência ou oportunidade do acto de apreciação das candidaturas, bem como da fixação de prazo para apresentação das mesmas candidaturas.

Todos estes arestos, salvo o do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, têm como limite temporal a concordata que vigorava anteriormente a 2004.

E será que com a nova concordata se alterou o pensamento e a orientação anterior mais recente, segundo a qual seria da jurisdição eclesiástica e não da jurisdição civil a decisão sobre as eleições para os corpos gerentes de uma Misericórdia?

Vejamos, dizendo desde já que entendemos que não se alteraram os fundamentos que justificaram as anteriores decisões proferidas nesse sentido.

E desde logo, do conhecimento que rodeou a formação da nova Concordata de 2004 e principalmente da leitura atenta do seu preâmbulo, verificamos que a Igreja Católica e o Estado são, cada um na própria ordem, autónomo e independentes.

Do conteúdo da Concordata, encontramos disposições que, segundo pensamos, reflectem a ideia de manter e até vincar cada vez mais a separação de poderes entre Estado e Igreja Católica e também de vedar às autoridades portuguesas a aplicação do direito canónico e, por sua vez, vedar às autoridades eclesiásticas aplicar o direito português, mantendo-se neste campo uma pluralidade de ordenamentos jurídicos.

E encontramos este pensamento em vários artigos da concordata, concretamente no artigo 1º, mas também no artigo 2º, 10º e 11º, que dispõem:

Artigo 1º

1. A Santa Sé e a República Portuguesa declaram o empenho do Estado e da Igreja Católica na cooperação para a promoção da dignidade da pessoa humana.

2. A República Portuguesa reconhece a personalidade jurídica da Igreja Católica.

Artigo 2º

1. A República Portuguesa reconhece à Igreja Católica o direito de exercer a sua missão apostólica e garante o exercício público e livre das suas actividades, nomeadamente as de culto, magistério e ministério, bem como a jurisdição em matéria eclesiástica (sublinhados nossos).

2. A Santa Sé pode aprovar e publicar livremente qualquer norma, disposição ou documento relativo à actividade da Igreja e comunicar sem impedimento com os bispos, o clero e os fiéis, tal como estes o podem com a Santa Sé.

Artigo 10º

1. A Igreja Católica em Portugal pode organizar-se livremente de harmonia com as normas do direito canónico e constituir, modificar e extinguir pessoas jurídicas canónicas a que o Estado reconhece personalidade jurídica civil.

Artigo 11º

1. As pessoas jurídicas canónicas reconhecidas nos termos dos artigos 1, 8, 9 e 10 regem-se pelo direito canónico e pelo direito português, aplicados pelas respectivas autoridades, e têm a mesma capacidade civil que o direito português atribui às pessoas colectivas de idêntica natureza. (sublinhado nosso)

Ainda sobre a Concordata, recorde-se que, nos termos do artigo 8º n°2 da CRP "as normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português.

Ora, sobre este normativo, entende o Tribunal Constitucional que a norma de direito interno que contrarie uma convenção internacional em vigor na ordem interna contraria o princípio da primazia do direito internacional convencional na escala hierárquica sobre o direito interno anterior e posterior, não podendo deixar de haver-se por prevalente o vícios da inconstitucionalidade, que absorve, consumindo-o, o vício de ilegalidade" - Acórdãos n.ºs 118/85, 409/87 e 218/88, consultáveis nos BMJ n.ºs 360º, pág. 501, 370°, pág. 175 e 380°, pág. 183 -.

Apreciando este normativo, Jorge Miranda - A Concordata e a Ordem Constitucional Portuguesa, pág. 69 -, entende que "consequentemente, a emissão de norma interna contrária a norma internacional não constitui apenas o Estado em responsabilidade internacional; implica também a não obrigatoriedade da norma interna, por ineficácia (não propriamente por invalidade, pois o tratado não é fundamento de validade, mas tão só um obstáculo à sua eficácia" -

O artigo 3° da Concordata de 1940 reconhecia à Igreja o poder de se organizar livremente de harmonia com as normas do Direito Canónico, e constituir por essa forma associações ou organizações a que o Estado reconhece personalidade jurídica, bastando que, depois de canonicamente erectas, seja feita participação escrita à Autoridade competente pelo Bispo da diocese, onde as mesmas tiverem a sua sede.

Como podemos ver pelo prescrito no art. 11º n.º 1 da actual Concordata, acima transcrito, para ele transitou este pensamento.

Ademais, o próprio direito canónico contém disposições que denotam uma particular tendência para a regulamentação específica de certos e determinados aspectos da sua actividade eclesiástica.

Assim:

Cânon n°298°

1 - Na igreja existem, associações, distintas dos institutos de vida consagrada e das sociedades de vida apostólica, nas quais os fiéis quer clérigos quer leigos, em comum se esforçam por fomentar uma vida mais perfeita, por promover o culto público ou a doutrina esta, ou outras obras de apostolado, a saber, o trabalho de evangelização, o exercício de obras de piedade ou de caridade, e por informar a ordem temporal com o espírito cristão.

2 - Os fiéis inscrevem-se de preferência em associações erectas ou louvadas ou recomendadas pela autoridade eclesiástica competente.

Cânon 305°

1 - Todas as associações de fiéis estão sujeitas à vigilância da autoridade eclesiástica competente, à qual pertence velar para que nelas se mantenha a integridade da fé e dos costumes, e de cuidar que não se introduzam abusos na disciplina eclesiástica; por isso, compete-lhe o dever e o direito de as visitar segundo as normas do direito e dos estatutos; estão igualmente sujeitas ao governo da mesma autoridade, segundo a prescrição dos cânones seguintes.

2° - Estão sujeitas à vigilância da Santa Sé as associações de qualquer género; e à do Ordinário do lugar as associações diocesanas e também as outras associações diocesanas e também as outras associações na medida em que actuem na diocese.

Cânon 312

1° - A autoridade competente para erigir associações públicas é: 1°- para as associações universais e internacionais, a Santa Sé; 2°-para as associações nacionais, isto é, para aquelas que pela sua própria erecção se destinam a exercer a actividade em todo o país, a Conferência episcopal no seu território; 3°-para as associações diocesanas, o Bispo diocesano no seu próprio território, mas não o Administrador diocesano, exceptuadas aquelas associações cujo direito de erecção foi reservado a outrem por privilégio apostólico;

2° - Para a erecção válida na diocese de uma associação ou secção de uma associação ou secção de uma associação, ainda que se faça em virtude do privilégio apostólico, requer-se o consentimento do Bispo diocesano dada por estrito; todavia, o consentimento prestado pelo Bispo diocesano para a erecção de uma casa de um instituto religioso vale também para a erecção na mesma casa ou igreja a esta anexa de uma associação própria do mesmo instituto.

Cânon 321°

Os fiéis dirigem e governam as associações privadas segundo as prescrições dos estatutos.

Cânon 322°

1° - A associação privada de fiéis pode adquirir personalidade jurídica por decreto formal da autoridade eclesiástica competente, referida no cânon 312.

2° - Nenhuma associação privada de fiéis pode adquirir personalidade jurídica sem que os seus estatutos tenham sido aprovados pela autoridade eclesiástica referida no cânon 312, contudo a aprovação dos estatutos não altera a natureza privada da associação.

Cânon 323°

1° - Embora as associações privadas de fiéis gozem de autonomia nos termos do cânon 321, estão no entanto sujeitas à vigilância da autoridade eclesiástica nos termos do cânon 305, bem como ao governo da mesma autoridade.

§ 2°-Compete à autoridade eclesiástica, mantendo a autonomia própria das associações privadas, vigiar e procurar que se evite à dispersão de forças e se ordene ao bem comum o exercício do seu apostolado.

Conjugadas estas disposições próprias e exclusivas do direito canónico, com o fixado nos artigos 68º, 69º e 48º do DL n.º 119/83 (Estatuto das IPSS) detectamos a faculdade de a Igreja se poder organizar livremente segundo o seu direito canónico, constituindo associações ou organizações a que o Estado reconhece personalidade jurídica.

Por um lado os n.º 1 e 3 do art. 69º do Estatuto das IPSS são sintomáticos ao ressalvar as actividades estranhas aos fins da solidariedade social e, por outro lado, o artigo 48º daquele DL e Estatuto ao determinar que "sem prejuízo da tutela do Estado, nos termos do presente diploma, compete ao ordinário diocesano ou à Conferência Episcopal, respectivamente, a orientação das instituições do âmbito da sua diocese ou de âmbito nacional, bem como a aprovação dos seus corpos gerentes e dos relatórios de contas anuais"

Aqui se separam, nitidamente, as situações em que, para além dos fins religiosos que lhe estão inerentes, as associações religiosas pratiquem também fins de assistência e beneficência em cumprimento de deveres estatutários.

É que, como já o afirmamos, as Misericórdias estão sujeitas ao DL n.º 119/83 de 25/2, que aprovou o Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social.

De acordo com o artigo 1° n°1 deste Estatuto "são instituições particulares de solidariedade social as constituídas, sem finalidade lucrativa, por iniciativa de particulares, com o propósito de dar expressão organizada ao dever moral de solidariedade e de justiça entre os indivíduos e desde que não sejam administradas pelo Estado ou por um corpo autárquico, para prosseguir, S outros, os seguintes objectivos, mediante a concessão de bens e a prestação de serviços: a) apoio a crianças e jovens; b) apoio à família e) apoio à integração social comunitária; d) protecção dos cidadãos na velhice e invalidez e em todas as situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho; e) promoção e protecção da saúde, nomeadamente através da prestação de cuidados de medicina preventiva curativa e de reabilitação; f) educação e formação profissional dos cidadãos; g) resolução dos problemas habitacionais das populações ".

E acrescenta o n°1 do artigo 2° seguinte que "as instituições revestem uma das formas a seguir indicadas: a) associações de solidariedade social; b) associações de voluntários de acção social; e) associações de socorros mútuos; d)-fundações de solidariedade social; e) -irmandades da misericórdia".

Daí que se considere correcto o que se afirma no Ac, do STJ, de 27-1-2005, que apesar de se debruçar sobre uma situação factual em que se aplicava a Concordata de 1940, mantém toda a sua actualidade.

Dizia:

"Cabe, pois, ao Ordinário diocesano a orientação das instituições na sua diocese, bem como a aprovação dos seus corpos gerentes e dos relatórios e contas.

Apesar dessa tutela da autoridade eclesiástica (o Ordinário diocesano), o Estado reservou para si, quanto às contas, a seguinte tutela: "carecem de visto dos serviços competentes".

No entanto, quanto à aprovação dos gerentes dessas associações, nenhuma tutela reservou para si o Estado, o que resulta também, e é reafirmado, ao se regularem os casos da destituição destes e da suspensão dos corpos gerentes, sem que os casos previstos contendam com a sua eleição ou aprovação.

Aí, trata-se de matéria da vida interna da associação, sem repercussão no fim assistencial, ou, pelo menos, assim o entendeu o legislador.

E essa "aprovação" dos corpos gerentes abrange a verificação da regularidade da sua eleição porque doutra forma, tal acto limitar-se-ia "à aposição de uma chancela", sendo certo que tais actos "não respeitam" ao fim de assistência ou de solidariedade social que a instituição se propõe realizar, mas à sua vida interna", como acertadamente se refere no citado Ac. do STJ de 11.7.85.

E compreende-se esta separação entre as vertentes social e religiosa, no caso em análise, porque a selecção dos irmãos depende da verificação das condições exigidas pelo art. 7.º do Compromisso (22), que, naturalmente, não podem ser sindicadas pelos tribunais mas, antes, pelo Ordinário diocesano, designadamente a que vem descrita na al. d) desse normativo. (23)

Uma das razões fundamentais porque se impugnam as deliberações de 16.10.03 e de 21.11.03 prende-se com a admissão de 16 irmãos "sem cumprir os requisitos legais, quanto à forma de apresentação das propostas e ao método da sua aprovação", na primeira e, a participação destes no colégio eleitoral, na segunda.

Questões, que, como se deixa exposto, apenas podem ser sindicadas pela autoridade eclesiástica e, consequentemente, as violações invocadas nas duas deliberações. ".

Também no caso em apreço nos autos e ao qual nos temos de cingir, estava em causa uma consulta à Assembleia Geral para efeitos do n.º 4 do art. 57 do DL n.º 119/83 e 24º do Compromisso da Santa Casa da Misericórdia C.......... (Estatutos) relativo a possibilitar que alguns elementos da Santa Casa integrassem as listas de candidaturas aos órgãos sociais para o mandato de 2008/2010, para permitir a eleição, integrando na lista elementos que, apesar de já exercerem esse mandato por mais de 2 mandatos consecutivos, possibilitasse essa hipótese, o que aconteceu e a 2ª Assembleia por ter escolhido a lista que integrava irmãos naquelas condições.

Isto é, questionava-se se a assembleia-geral extraordinária a que aludem os arts. 157º, n.º4, do DL n.º119/83, de 25 de Fevereiro e o art. 24º do Compromisso da Irmandade da Santa Casa da Misericórdia C.......... e que tinha como ordem de trabalhos a deliberação quanto à inconveniência de proceder à substituição de um ou mais membros dos corpos gerentes terá de ser realizada antes do prazo estabelecido para apresentação das listas candidatas às eleições para os órgãos sociais e observar uma antecedência razoável relativamente a este prazo para que, em face do deliberado, se apresentarem as listas concorrentes.

Para se poder concluir se as deliberações aprovadas na assembleias-gerais, extraordinária e ordinária, realizadas no dia 29 de Dezembro de 2007 apresentam irregularidades: a Assembleia-geral extraordinária não foi convocada antes do termo do prazo da apresentação das candidaturas à eleição dos corpos sociais; na Assembleia-geral ordinária foi admitida à votação uma lista (a lista A) que não reunia, aquando da sua apresentação, os requisitos legais e estatutários uma vez que era integrada por membros impedidos.

Porém, o acórdão do STJ, de 26-4-2007, questiona todo o raciocínio que sustenta a sua tese, com a entrada em vigor da nova Concordata.

E considera:

"Esta nossa construção complica-se, no entanto, com a entrada em vigor, em 18.12.2004, da Concordata actualmente vigente.

Nela se continua, para além do regime de liberdade de organização em geral, o regime de livre constituição, modificação e extinção de pessoas jurídicas canónicas, com reconhecimento da personalidade jurídica por parte do Estado Português.

Tendo-se também atentado nas pessoas jurídicas canónicas que, além dos fins religiosos, prossigam fins de assistência e solidariedade. Estatuiu-se, em consonância com o que vinha da anterior concordata, que desenvolvem a respectiva actividade de acordo com o regime jurídico instituído pelo direito português e gozam dos direitos e benefícios atribuídos às pessoas colectivas privadas com fins da mesma natureza.

Mas existe uma diferença.

Desapareceu a referência do artigo 4.º da Concordata de 1940 quanto à imposição do direito português pelo Ordinário competente. Pelo contrário, ficou estatuído, no artigo 11.º, que, regendo-se as pessoas jurídicas canónicas pelo direito canónico e pelo direito português, cada um é aplicado pelas respectivas autoridades.

Está em causa a violação do direito canónico: será chamada a intervir a autoridade da Igreja. Está em causa a violação do direito interno português: recorre-se aos tribunais civis.

Levantar-se-ia, então, a questão de saber se os autores invocam a violação do direito canónico ou do direito interno português.

O que eles invocam é a violação do compromisso e este situa-se no âmbito do direito canónico, pois até na parte final se refere, em letra manuscrita, que "estão conformes às Normas de Direito Geral da Igreja e do Regulamento Geral das Associações Religiosas".

Manteve-se, pois, para este caso, a competência do Ordinário".

Sempre com o devido respeito, consideramos que a preocupação manifestada não tem justificação.

De facto, como se detecta pela leitura da petição inicial, o fundamento da acção respeita à violação tanto duma norma do DL 119/83 (Estatuto das IPSS), concretamente o n.º 4 do art. 57º, como das regras fixadas no Compromisso (Estatutos) da Santa Casa da Misericórdia C.........., concretamente do seu art. 24º, como se pode inferir da leitura de tal documento, junto aos autos precisamente pelo autor, que impede que os membros dos corpos gerentes possam ser reeleitos consecutivamente, mais que duas vezes, salvo se a Assembleia Geral reconhecer expressamente que é impossível ou inconveniente proceder à sua substituição.

Donde que, também aqui, o que o autor invoca é a violação do Compromisso, sendo que este se situa no domínio do direito canónico.

Portanto, fixando-se no art. 11º da Concordata que as pessoas jurídicas canónicas se regem pelo direito canónico e pelo direito português, se o que estava em causa era a violação de normativos integrados tanto no Estatutos das IPSS como no Compromisso (Estatuto) de uma Santa Casa, deveria ser chamado a intervir a autoridade da Igreja, na medida em que a tutela e fiscalização compete, por força do art. 48º, ao Ordinário Diocesano.

Caso fosse a violação de um direito interno português, deveria ser chamado a jurisdição cível.

Diria que as eventuais violações do Compromisso, concretamente sobre eleições dos corpos gerentes da Santa Casa, logo sobre a vida interna da Misericórdia C.........., não se podem colocar num domínio em que se imponha a intervenção pública do Estado, tanto mais que não respeitam à prestação de fins e cuidados assistenciais nem da sua normal actividade de solidariedade social.

É que há actividades próprias e típicas das Misericórdias que têm especificidades, características estas fornecidas tanto pelo Compromisso, como pelo DL 119/83 e também pela Concordata de 2004, constituindo a eleição dos seus corpos gerentes matéria interna dessa instituição e cuja resolução cabe no âmbito específico definido pelo seu direito canónico.

De facto, basta ler o art. 1 do seu Compromisso para se retirar que se está perante uma ",,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, Associação de Fiéis, constituída na ordem jurídica canónica, com o objectivo de satisfazer carências sociais e praticar actos de culto católico,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,".

Para no seu n.º 3 determinar que "A Irmandade adquire personalidade civil e estará reconhecida como instituição privada de solidariedade social, mediante participação escrita da erecção canónica, feita pelo ordinário Diocesano,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,".

No seu n.º 4 explica que "Em conformidade com a natureza que lhe provém da sua erecção canónica, a Irmandade está sujeita ao Ordinário Diocesano de modo similar ao das associações de fiéis".

Deste modo, poderemos mesmo afirmar que seria estranho, para não dizer incompreensível, que os tribunais portugueses tivessem de fazer uso do direito canónico para dirimir conflitos regulados expressamente por aquele direito, quando pelo art. 11º n.º 1 da Concordata de 2004, se estabelece uma separação nítida entre o Estado e a Igreja para estes efeitos.

Diremos mesmo que a nova Concordata, contém normas com as quais se pretende retirar da jurisdição civil portuguesa a resolução de conflitos que se situem apenas na ordem interna ou inter-orgânica das Misericórdias, como será o caso da eleição dos seus corpos gerentes e tudo o que a esta lhe diga respeito, concretamente, da legalidade ou não das decisões das suas assembleias gerais, da sua convocação, vícios, exclusão ou filiação de irmãos, etc.

E será ao Ordinário Diocesano, como resulta ainda do citado art. 48º que caberá apreciar as questões que neste domínio se verifiquem dentro da sua diocese, integradas na competência da aprovação dos corpos gerentes, contas e relatórios.

Naturalmente que a actividade externa das Misericórdias, nomeadamente com os fins de beneficência e de assistência, ficam sujeitas, apenas nessa parte, ao ordenamento jurídico comum.

Mesmo sem querer entrar em polémicas sobre a natureza jurídico-canónica das Irmandades das Misericórdias portuguesas, diremos que se encontra pacífica a ideia de que se trata de associações públicas de fiéis.

Podemos pois concluir pela incompetência material dos tribunais comuns de jurisdição ordinária para conhecer do objecto da presente acção, havendo necessariamente de absolver os requeridos da instância - artigos 105º e 495º do CPC -.

Em face desta decisão, não se conhece do segundo pedido formulado no recurso, qual seja a apreciação civilística da anulação das deliberações das assembleias-gerais e seu fundamento.

E podemos então concluir:

- A Concordata de 2004 reforça a autonomia e separação de poderes entre Estado e Igreja Católica.

- As condições das candidaturas, idoneidades dos seus membros, as irregularidades e vícios da convocação vícios, como a aprovação das suas decisões, etc., no que respeita à eleição dos corpos gerentes de uma Misericórdia, como problema interno dessa instituição, compete ao Ordinário Diocesano, como autoridade eclesiástica.

- Não cabe aos tribunais judiciais, por serem materialmente incompetentes, a preparação e julgamento das irregularidades, vícios de convocação, oportunidade de marcação, da assembleia-geral da Misericórdia, por respeitarem à eleição dos corpos gerentes dessa instituição.

*

V - Decisão

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em se dar provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida, por se entender que o tribunal comum é materialmente incompetente para julgar a acção, dela absolvendo os requeridos.

Custas pelo autor, tanto da acção do como do recurso.

*

Porto, 27/04/09

Rui de Sousa Pinto Ferreira

Joaquim Matias de Carvalho Marques Pereira

Manuel José Caimoto Jácome

Processo judicial entre a Santa Casa da Misericórdia e a Paróquia de Matosinhos

Arquivo: Edição de 24-10-2001

SECÇÃO: Sociedade

Processo judicial entre a Santa Casa da Misericórdia e a Paróquia de Matosinhos
É preciso que o bispo autorize

O processo de querela judicial entre a Santa Casa da Misericórdia de Matosinhos e a Paróquia de Matosinhos, com aquela a contestar o registo de propriedade da Igreja do Bom Jesus, por parte da segunda, o que esta fez, em tempo oportuno, sem contestação dos competentes registos oficiais, como o “Matosinhos Hoje” teve a oportunidade de, por diversas vezes, referir, conheceu agora o despacho da Meritíssima Juíza do 5º. Juízo Cível do Tribunal da Comarca de Matosinhos, conforme documento que publicamos nesta edição e na íntegra, donde se pode concluír que o processo só poderá prosseguir se a Santa Casa conseguir autorização dada pelo Bispo do Porto, ou seja pela Diocese, para poder accionar a Paróquia, dado que, segundo a magistrada, nas conclusões do seu despacho considera que ao abrigo dos estatutos daquela instituição, esta carece de autorização da Diocese para colocar a acção, o que terá de conseguir, segundo aquela “sentença” no prazo de 60 dias, “sob pena de a ré (Paróquia) ser absolvida da instância”.
Trata-se duma decião judicial que, segundo alguns especialistas na matéria consultados pelo “Matosinhos Hoje” não poderia ser outra, uma vez que o nº. 4 do artº. 1º. dos estatutos da Santa Casa dizem “em conformidade com a natureza que lhe provém da sua erecção canónica, a Irmandade está sujeita ao Ordinário Diocesano de modo similar ao das demais associais de fiéis”.
Fica claro que a Diocese é a tutela da Santa Casa da Misericórdia de Matosinhos, como se pode ler no texto de aprovação dos Estatutos, em 16 de Maio de 1983, por D. Júlio Tavares Rebimbas, no qual é bem explicita a seguinte passagem: “Erigir canonicamente e confirmar em pessoa moral eclesiástica a referida Irmandade da Santa Casa da Misericória do Bom Jesus de Matosinhos”.
Assim não o terá entendido a actual Mesa Administrativa que, desde o início do seu mandato sempre terá procurado furtar-se à referida tutela, uma vez que nem sequer foi solicitado, como parece ser reflectido nos estatutos, a homologação pelo Ordinário Diocesano dos Corpos Sociais então eleitos.
Acresce, ainda, que este comportamento de querela entre as duas instituições contraria os mais elementares preceitos e comportamentos duma ordem religiosa interpretada (e bem) na alínea d) do artº. 7º., quando trata da qualidade dos Irmãos, lendo-se que estes devem “aceitar os princípios da doutrina e da moral cristãs que informam a Instituição e que, consequentemente, não hostilizem, por qualquer meio, designadamente pela sua conduta social, ou pela sua actividade pública, a religião católica e os seus fundamentos”.
Mas as pessoas viraram as costas à “Constituição” e decidiram-se por uma “guerra santa”, atirando a discussão para as salas dos tribunais e para a discussão pública apaixonada, numa demonstração triste de ausência de sentido de tolerãncia que costuma ser o manto que cobre os verdadeiros católicos.
Esta “guerra santa” tem uma finalidade que não se percebe, uma vez que a propriedade da Igreja do Salvador de Matosinhos jamais será propriedade doutrém que não seja do povo de Deus de Matosinhos. Nunca ninguém ali poderá erguer outro imóvel que não seja o templo do Bom Jesus. Por isso...
São muitos os factos que confirmam que a Santa Casa da Misericórdia sempre aceitou que a Paróquia tratasse de dignificar o templo, não o deixando envelhecer e até entrar em agonia, como se pôde em tempos avaliar, culminando com o restauro do mesmo, no qual a Paróquia, dirigida pelo então rev. José Maria Fabião, ali investiu mais de 250 mil contos, pagos com a actividade do mesmo, conseguindo aliciar comparticipações públicas e privadas para o efeito. A Santa Casa, ali mesmo ao lado, paredes meias, jamais levantou qualquer obstáculo, o que seria natural que fizesse se se sentisse proprietária do imóvel do templo. Parece-nos ser um raciocínio natural.
Posição da Santa Casa
e da Diocese do Porto
Agora, face ao recente despacho judicial, falta saber qual a reacção dos gestores da Santa Casa. O “Matosinhos Hoje” procurou saber a verdade, enviando à Mesa da Santa Casa da Misericórdia um fax, em que se pedia o seguinte:
“Tendo tinho conhecimento, através dos colegas da comunicação social escrita, do despacho do Meritíssimo Juíz que remete o processo de querela entre a Santa Casa e a Paróquia sobre a legitimidade de propriedade da Igreja Paroquial do Bom Jesus de Matosinhos, para a necessidade duma autorização da Diocese do Porto para que a instituição que V. Exªs. dirigem possa accionar a Paróquia, vimos pela presente solicitar o favor da posição da Santa Casa face a tal despacho”.
A resposta, chegou até nós, pela mesma via, dizendo: “A Meritíssima Juiz decidiu suspender por sessenta dias a instância por entender que a Santa Casa da Misericórdia carece de autorização do Senhor Bispo. A Santa Casa, por não concordar, imediatamente instruíu o seu advogado para recorrer desse despacho, interpondo recurso. E, neste momento, o nosso Gabinete Jurídico prepara a repectiva contestação”.
Claro, portanto, que a Santa Casa irá recorrer da decisão que a obriga a pedir autorização ao Ordinário Diocesano.
Querendo o “Matosinhos Hoje” saber o que pensa também a Diocese do Porto desta situação, também enviou um fax para a Secretaria Geral da Diocese, solicitando:
“Tendo tido conhecimento do recente despacho do Meritíssimo juiz da Comarca de Matosinhos, o qual remete o processo de querela entra a Santa Casa da Misericórdia de Matosinhos e a Paróquia, referente à outorga da legitimidade da propriedade da Igreja Paroquial do Bom Jesus de Matosinhos, para a necessidade da autorização da Diocese do Porto, no prazo de 60 dias, para que aquela Santa Casa possa recorrer aos tribunais, vimos solicitar que nos informem se esse pedido já foi formulado e se foi, ou for, será deferido pela Diocese.
Mais se pretende saber: se os actuais órgãos sociais da Santa Casa foram homologados pela Diocese, tal como nos faz crer os estautos dada “a natureza que lhe provem da sua erecção canónica, a Irmandada está sujeita ao Ordinário Diocesano de modo similar ao das demais associações de fiéis (nº. 4 do artº. 1º.)”.
A Secretaria Geral da Diocese respondeu-nos, declarando que “A Irmandade da Santa Casa da Misericórdia do Bom Jesus de Matosinhos não formulou qualquer pedido de autorização a que se refere.
Acerca da homologação dos actuais orgãos sociais da mesma Instituição a resposta e: “nada consta”.”
E agora?
Face a tudo isto tudo faz adivinhar que a contenda judicial vai continuar perante a estranheza da maioria do povo de Matosinhos que não percebe uma querela desta natureza entre gente católica, respeitadora do Bom Jesus. Bom seria que se pudesse chegar a um ponto de consenso, não inventando uma “guerra santa” passados tantos e tantos anos e durante os quais nunca ninguém se preocupou com a propriedade da igreja, porque sempre se soube que o verdadeiro proprietário era o Bom Jesus de Matosinhos e este distribui os seus bens pelo seu povo – o povo de Deus de Matosinhos.
O que é preciso é que haja quem preserve esse património, quem o dignifique, e tal comportamento, ao longo dos tempos quase só existiu através da Paróquia, culminando com as recentes obras de elevado custo e que só se fizeram porque o Pároco e a Fábrica da Igreja nisso apostaram, mesmo enfrentando dificuldades, tudo isto, segundo parece saber-se, perante o silêncio da Santa Casa.
Que o Bom Jesus de Matosinhos ilumine algumas cabeças e faça sobre elas descer a tolerância e o desejo de terminar uma guerrilha que em nada serve o comportamento cristão e católico e nada prestigia uma terra que faz do Bom Jesus a sua referência de vida.
O recente despacho judicial
“Despacho saneador.
O tribunal é o competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
Não há nulidades, sendo o processo o próprio.
As partes têm personalidade judiciária.
Da capacidade judiciária da autora:
Na sua contestação veio a ré invocar a falta de capacidade judiciária da autora, por falta de autorização necessária a conceder pela autoridade eclesiástica competente para a propositura desta acção.
Alega para tal que a autora é, de um ponto de vista jurídico, uma associação diocesana pública de fiéis, constituída e integrada na ordem jurídica canónica, da Instituição da Igreja Católica, artº. 1º., nº. 1 do seu Compromisso e Canones 298, 301, 3º. e 312 do Código do Direito Canónico.
Não sendo, por isso, uma associação de direito privado, maxime do tipo das previstas no artº. 157º. do Código Civil, desde logo porque a sua constituição e aquisição de personalidade jurídica não resultam de escritura pública, consoante o disposto no art. 158º. do mesmo Código, antes resultando o seu reconhecimento, apesar de também normativo (por contraposição ao reconhecimento por concessão), não do disposto nesta norma, mas, sim, da participação da sua erecção canónica feita pelo Ordinário Diocesano aos serviços competentes do Estado Português – cfr. artº. 1º., nº. 3 do seu Compromisso e artº. 45º. do Decreto-Lei 119/83 de 25 de Fevereiro. É assim a autora uma associação diocesana pública de fiéis constituída na ordem jurídica canónica e reconhecida pelo Estado Português, porquanto:
a) possui erecção canónica (Cânone 301, 3º.), outorgada por decreto de Sua Excelência Reverendíssima Dom Júlio Tavares Rebimbas, Arcebispo-Bispo do Porto, datado de 16 de Maio de 1983, ou seja, foi instituída por decreto eclesiástico episcopal;
b) b) decreto pelo qual foram também aprovados os seus actuais Estatutos;
c) tais erecção e aprovação de estatutos foram comunicadas pelo ordinário diocesano competente ao Estado Português.
Do exposto decorre que a autora só tem personalidade jurídica, porquanto o estado Português a reconhece às associações ou organizações da Igreja Católica.
Reconhecimento esse, resultado de simples participação escrita à autoridade competente do estado Português feita pelo Bispo da diocese da sua sede, no caso pelo Arcebispo-Bispo do Porto – art. III da Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa e art. 45º. do Decreto-Lei 119/83, de 25 de Fevereiro.
A personalidade jurídica e a respectiva capacidade judiciária da autora – artº. 5º., nº. 2 do C.P. Civil – dimanam assim, em última análise, do art. I da Concordata (que é um tratado ou convenção internacional) pelo qual a República Portuguesa reconheceu personalidade jurídica à Igreja Católica.
Acresce a isso que todos os “bens temporais” que pertençam a pessoas jurídicas públicas na Igreja são havidos como “bens eclesiásticos” e regem-se pelos cânones do Livro V do Código do Direito Canónico e pelos estatutos próprios – Cânone 1257, 1º..
Donde se segue que os bens eclesiásticos são administrados pela associação pública legitimamente erecta, em conformidade com os Estatutos, mas sob a direcção superior da autoridade eclesiástica, isto é, do Ordinário Diocesano – Cânones 319, 1º., nº. 3., e artº. 1º., nº. 4 do Compromisso da autora.
Ora, dispõe a legislação eclesiástica, que os administradores não podem propôr nem contestar nenhuma acção no foro civil em nome da pessoa jurídica pública na Igreja sem licença prévia do Ordinário próprio, dada por escrito – Cânone 1288.
Autorização que a autora nem pediu, nem, por maioria de razão, obteve, e nem sequer alegou tê-la pedido.
Do exposto se concluiu que a autora, enquanto pessoa jurídica pública na Igreja, não podia intentar a presente acção sem para tal possuir licença ou autorização prévias do Ordinário diocesano – Cânone 1288 e artº. 1, nº. 4 do seu Compromisso.
De todo o aqui exposto resulta que a acima articulada falta de autorização necessária a conceder pela autoridade eclesiástica competente (Ordinário Diocesano) para a propositura da acção que ora se contesta constituiu excepção dilatória determinante de suspensão, primeiro e de absolvição da instância, depois, se não for sanada no prazo que for determinado – arts. 25º., 495º., alínea d) e 288º., nº. 1, alíena e), todos do C.P. Civil.”
Conclusão
“Na sua réplica vem a autora dizer que é uma associação privada de fiéis, pelo que tem inteira autonomia para intentar a presente acção, sem carecer, para o efeito, de autorização do Ordinário Diocesano.
Ainda que assim não fôsse, a verdade é que, versando os presentes autos sobre o direito de propriedade de um prédio urbano sito em território português, a nossa Lei Civil considera-se exclusivamente aplicável e competente, com exclusão de qualquer outra, nos termos do disposto no artº. 46º. do C.C.
Se se pudesse entender que a A., para propor a presente acção – que, note-se, é movida contra a Fábrica da Igreja de Matosinhos, que é uma instituição pública da Igreja -, carecia de prévia autorização do Ordinário Diocesano, estar-se-ia a legitimar uma violação do disposto no supra referido artº. 46º. do CC, porquanto bastava que o Ordinário Diocesano não conferisse a dita autorização, para a questão de saber se a A. é ou não proprietária da Igreja do Bom Jesus de Matosinhos, deixar de poder ser resolvida em conformidade com a Lei Portuguesa.
Acresce que, como ensina o Cónego Doutor José António Gomes da Silva Marques, o Código de Direito Canónico de 1983, no seu cânone 1401, prescindiu por completo da chamada jurisdicional baseada no privilégio do foro, sendo certo que nem nele, nem nos seguintes, se faz referência alguma às causas de foro misto, a saber; o canónico e o civil.
Com efeito, tendo em conta a Cons. Ap. de João Paulo II, Sacrae disciplinae leges e a Const. Pastoral do Vaticano II, na parte que se referem a esta matéria, pode dizer-se que se explica que no novo cânone 1401, o legislador tenha prescindido de toda a referência ao privilégio do foro, do que resulta uma renúncia implícita pela Igreja deste secular privilégio, podendo mesmo dizer-se que a Igreja prescindiu de regular as questões em que há uma situação de conflito entre duas jurisdições, que se consideram igualmente competentes para conhecer de uma determinada questão que se torna conflituosa.
Esta nova posição da Igreja expressa no actual Código de Direito Canónico, justifica-se por várias ordens de razão, sendo a primeira a que ela espera que estas questões não se dêem no futuro, já que, seguindo o espírito do Concílio Vaticano II – no que toca à distinção de esferas de autonomia do temporal e do sobrenatural -, a nova disciplina legislativa da Igreja haveria de ficar liberta de aderências temporalistas, originantes, em tantas ocasiões, destes conflitos.
Outra justificação, é a que decorre do facto de estes conflitos interjurisdicionais da Igreja com uma comunidade política, ainda que tenham a sua raíz num fenómeno de atribuição de competências de carácter interno, não deixam de pertencer, na sua proposição e regulação, à esfera do Direito público externo, que não foi incluído no novo Código de Direito Canónico.
Por último, tendo em conta que o Código de Direito Canónico dirige-se à Igreja Latina, e é portanto chamado a regular a vida da igreja no meio de uma sociedade intensamente secularizada, as novas condições de vidas reconhecidas pelo Concílio Vaticano II puderam influir para renunciar pelo menos a legislar sobre um tema relativamente ao qual, se surge questão, esta será rara e excepcional, bem como praticamente de difícil proposição processual, quer se a Igreja e a comunidade política desenvolvem as suas relações num sistema pleno de separação, quer se, pelo contrário, existe entre elas um sistema de relações concordadas, porque, nesse caso, será o Pacto Internacional que estabelece o espaço legislativo em que há-de residir a solução dos hipotéticos conflitos de foro misto. Sendo certo que, a Concordata entre a Santa Sé e o Estado Português, data de 1940, não se refere às questões de foro misto, talvez por praticamente não se proporem entre nós essas questões interjurisdicionais.
Quer isto dizer que, mesmo aceitando que a Irmandade A. é uma Associação Pública de Fiéis, a verdade é que, dado não prosseguir fins meramente religiosos, está sujeita a uma dupla jurisdição, a saber:
- À dos Tribunais Eclesiásticos, no que respeita a questões relacionadas com a esfera do sobrenatural, de, com a integridade da fé e dos costumes, bem como com os abusos de disciplina eclesiástica (cânone 305).
- À dos Tribunais Comuns, no que toca a todas as restantes questões temporais, sendo que a que está em discussão nos presentes autos é um dos exemplos, posto que nela não está em causa a integridade da fé e dos costumes, nem tão pouco eventuais abusos da disciplina eclesiástica.
Ainda que assim não fosse, de, ainda que houvéssemos que entrar em conta com o regime do Código do Direito Canónico para resolver esta questão, e segundo o douto Parecer do Ilustre Canonista supra citado, a verdade é que a ausência da autorização prescrita no cânone 1218, implicaria, tão somente a obrigação do seu autor, in casu, a Autora, de reparar eventuais danos que daí adviessem para o património eclesiástico, obrigação esta que, nada tem a ver com a alegação da R. no que toca à suposta (in)capacidade judiciária da Autora, e que o mesmo Ilustre Cónego entende, in casu, nem sequer existir, dado o comportamento da A., junto do Ordinário próprio – concretamente o Sr. Bispo do Porto -, anterior à propositura da questão, no foro judicial civil, do seu direito de propriedade sobre a Igreja do Bom Jesus de Matosinhos.
Cumpre decidir.
Por força da Concordata celebrada entre Portugal e a Santa Sé, em 7 de Maio de 1940, a Igreja Católica pode organizar-se livremente, de harmonia com as normas de direito canónico, e constituir por essa forma associações, corporações ou institutos religiosos, canonicamente erectos, a que o estado Português reconhece personalidade jurídica.
As Irmandades da Misericórdia constituem associações da Igreja Católica, no expresso reconhecimento do artigo 49º. do Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social, aprovado pelo DL nº. 119/83 de 25 de Fevereiro.
Nos termos do disposto pelo artigo 45º. desse diploma legal, a personalidade jurídica das instituições canonicamente erectas resulta da simples participação escrita da erecção canónica feita pelo bispo da diocese onde tiverem a sua sede, ou por seu legítimo representante, aos serviços competentes para a tutela das mesmas instituições.
O mesmo se depreende do artigo 1º. nº. 3 dos compromissos (estatutos) da autora.
Resulta dos autos que a autora possui erecção canónica, outorgada por decreto eclesiástico episcopal, decreto pelo qual foram também aprovados os estatutos actuais, sendo que a sua erecção canónica e a aprovação dos estatutos foram comunicados pelo ordinário diocesano competente ao Estado Português.
Assim podemos concluir estar perante uma pessoa jurídica canónica, e não uma entidade privada, que teria a sua origem na vontade dos fiéis que a pretendem criar, e que de per si não têm personalidade jurídica, podendo adquiri-la se a competente autoridade eclesiástica aprova os seus estatutos e, a seu pedido, lhes concede a personalidade.
Face a tal, podemos concluir que a autora é uma associação diocesana pública de fiéis ou uma pessoa jurídica pública canónica.
Chegados a esta conclusão cabe agora saber se, é de facto necessária a autorização do Ordinário Diocesano competente para a propositura da presente acção.
Nos termos do disposto no artigo 1º. nº. 4 dos compromissos (estatutos) da autora, em conformidade com a natureza que lhe provem da sua erecção canónica a Irmandade está sujeita ao Ordinário Diocesano de modo similar ao das demais associações de fiéis.
Por outro lado, o Cânone 1288 do Código de Direito Canónico, dispõe o seguinte: “Os administradores não proponham nem contestem nenhuma acção no foro civil, em nome da pessoa jurídica pública, sem licença prévia do ordinário próprio, dada por escrito”.
Finalmente prevê o art. 69º. nº. 1 do DL nº. 119/83 de 25/02 que às irmandades da misericórdia se aplica directamente o regime jurídico previsto no presente diploma, sem prejuízo das sujeições canónicas que lhes são próprias.
Atento o que fica preceituado nestes artigos, parece-nos não haver dúvidas que é aplicável ao caso dos autos, o previsto pela cânone 1218 do Código do Direito Canónico.
Mas qual a consequência resultante de tal falta de autorização?
Nos termos do disposto no artigo 9 do CPC, a capacidade judiciária consiste na susceptibilidade de estar, por si, em juízo, e tem por base e por medida a capacidade do exercício do direito.
Num sentido amplo, a incapacidade judiciária abrange, além da incapacidade em sentido restrito, a irregularidade de representação e a falta de autorização, outorga da deliberação exigida por lei, e do seu suprimento judicial quando possível. Um e outro destes vícios são sanáveis nos termos dos artigos 23º., 24º. e 25º. do CPC, de contrário, conduzem à absolvição da instância, nos termos do disposto no artigo 288º. do CPC.
Assim, para aferir da capacidade da autora para intentar a presente acção, necessário se torna verificar se a legislação canónica a que está sujeita, exige ou não alguma autorização, e decorre do cânone 1288 que sim.
Ora, nos termos do disposto no artigo 25º. nº. 1 do CPC, se a parte estiver devidamente representada, mas faltar alguma autorização ou deliberação exigida por lei, designar-se-á o prazo dentro do qual o representante deve obter a respectiva autorização ou deliberação, suspendendo-se entretanto os termos da causa, nos termos do nº. 2 do mesmo artigo, não sendo a falta sanada dentro do prazo, o réu é absolvido da instância, quando a autorização ou deliberação, devesse ser obtida pelo representante do autor.
Pelo exposto decide-se:
Suspender a presente instância pelo prazo de 60 dias, para que a autora nesse prazo obtenha a autorização supre referida, sob pema de a ré ser absolvido da instância.
Notifique.”

Matosinhos Hoje

ODM: novo fôlego até 2015?



UN Photo/Albert Gonzalez Farran
Em 2000, os chefes de Estado e de Governo da ONU acordaram uma estratégia ambiciosa para até 2015 garantir que todos os povos possam viver em maior liberdade, em dignidade erradicando a pobreza extrema e a fome, melhorando a saúde materna e infantil, combatendo as doenças, empoderando as mulheres, criando um ambiente sustentável e uma parceria mundial para o desenvolvimento.

Os 8 Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM) e a sua consecução estiveram, 10 anos depois, em análise em Nova Iorque na Reunião Plenária de Alto Nível da Assembleia Geral da ONU que decorreu de 20 a 22 de Setembro deste ano.

Nesta reunião, chefes de estado e de governo, líderes de organizações da sociedade civil, fundações e sector privado fizeram um balanço sobre os sucessos e fracassos em matérias de ODM e gizaram um compromisso que visa por em prática um plano de acção que possibilite a realização dos 8 ODM dentro do prazo limite.

"O mundo possui os conhecimentos e os recursos necessários para realizar os ODM e não o fazer seria um fracasso inaceitável, no plano moral e prático", alerta Ban Ki-moon.

Os temas centrais desta reunião foram os défices da Ajuda Pública ao Desenvolvimento –APD - (e transparência e eficácia da mesma), a melhoraria do enquadramento do comércio internacional, a redução do peso da dívida, o acesso a medicamentos e à tecnologia por parte dos países em desenvolvimento.

O balanço que foi feito mostra-nos um cenário heterogéneo: a redução da pobreza em certas zonas do mundo, o avanço na universalização do ensino primário, o alargamento do número de pessoas que teve acesso a medicamentos antiretrovirais, as crianças que foram salvas com campanhas de vacinação contra o sarampo e a varíola, o abrandamento do ritmo de desflorestação mundial, o aumento da cobertura das novas tecnologias… Mas também os 1,4 mil milhões de pessoas continuam a subsistir com menos de 1,25 dólares dor dia, os 830 milhões de pessoas que sofrem de fome, os 9 milhões de crianças morrem por ano, na sua maioria de doença preveníveis ou tratáveis, antes de completarem os 5 anos de idade e as 350 mil mulheres morrem todos anos por complicações ligadas com a gravidez e o parto.

O panorama é pior nos países menos avançados, nos estados insulares e nos estados sem litoral, já para não falar nos países em conflito.

Do lado dos doadores, embora em 2010 os fluxos de APD tenham atingido os 120 mil milhões de dólares, o montante mais elevado de sempre, estes continuam aquém da promessa de dedicar 0,7% do seu RNB para a APD, ficando-se por uma média mundial de 0,31%. Os efeitos da crise económica e financeira mundial são usados como discurso de justificação para a contracção dos orçamentos da ajuda.

Da reunião de Nova Iorque saiu uma declaração que reitera os princípios que sempre têm norteado a cooperação em sede de ONU, tais como o da apropriação nacional, do desenvolvimento inclusivo, das parcerias mundiais, mas que tenta ir mais longo prescrevendo uma série de medidas de aceleração e efectiva consecução para cada ODM. Um documento notável pela síntese que é feita e que vale a pena ler.

Ao lado deste documento é de assinalar o lançamento pelo secretário-geral da Estratégia Mundial para a Saúde Materna e Infantil: com um investimento de 40 mil milhões de dólares poderemos salvar 16 milhões de vidas até 2015. A estratégia mundial pretende-se um roteiro que identifique as mudanças de políticas necessárias e o seu financiamento e ainda as intervenções susceptíveis de ajudar a melhorar a vida das mulheres e das crianças.

Programas como o Quadro para a Aceleração dos ODM, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento que pretende criar um meio sistemático de identificar os estrangulamentos e as soluções que permitem responder aos mesmos e ajudar os países a desenvolver os seus próprios planos de acção e que está me fase piloto em 10 países parecem-nos promissores e o tipo de estratégia inteligente e de forte impacto de que nos fala o Documento Final da Cimeira.

Um documento que deve ser lido e complementado com uma perspectiva de direitos humanos inspirada pelos inúmeros tratados assinados - como o defendeu a Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos. Esta perspectiva permitirá colmatar algumas lacunas já identificadas.

O espírito de Nova Iorque traduziu-se, assim, num esforço de se mostrar o quanto foi feito, quantas vidas foram resgatadas a um destino miserável, quanto do planeta foi salvo. Mostrar que as crises fizeram retroceder anos de bons desempenhos e perigar conquistas que eram tidas como seguras. Mostrar que há uma consciência mundial de que o desenvolvimento e a segurança de todos estão tão interligados que não se percebe onde começa um e acaba o outro e, por consequência, onde começa a responsabilidade de um estado e termina a de outro. Mostrar que os números são pessoas, são os povos das Nações Unidas que apenas querem viver em dignidade.

Mónica Ferro, Professora ISCSP

Dossier MMTC 2010-09-28 10:54:58 6148 Caracteres Cooperação e Desenvolvimento

Homilia de D. António Carrilho nos 350 anos da morte de S. Vicente de Paulo e de Santa Luísa de Marillac

Homilia de D. António Carrilho nos 350 anos da morte de S. Vicente de Paulo e de Santa Luísa de Marillac
Apóstolos da Caridade, um testemunho sempre actual!

Celebramos, hoje, com júbilo e em acção de graças, o encerramento das festividades dos 350 anos da morte de S. Vicente de Paulo e de Santa Luísa de Marillac. Ambos, apóstolos ímpares da Caridade: o primeiro conhecido como o grande santo do grande século, pai dos pobres, e declarado por Leão XIII, em 05 de Maio de 1883, Padroeiro especial de todas as obras de caridade; a segunda, declarada por João XXIII, em 1960, Padroeira de todos os que se dedicam às obras sociais cristãs.

Ambos franceses, nascidos no final do século XVI, Vicente de Paulo em 1581, Luísa de Marillac em 1591 e falecidos em Paris, no mesmo ano, ele em 27 de Setembro, ela em 15 de Março. Foram duas vidas que se cruzaram na primeira metade do século XVII e se colocaram ao serviço do Pobre, qualquer que fosse o seu rosto, numa atenção e actividade constante contra a pobreza. Tal aconteceu, porque o encontro de Vicente de Paulo com o Pobre fora anterior, em 1617, na Paróquia de Folleville à cabeceira de um camponês. Foi este o sinal de que Deus se serviu para converter Vicente à causa do Pobre...



Carisma Vicentino, presente na Madeira

A partir daqui toda a sua vida gira à volta de um eixo: o Pobre. No mesmo ano, surge o primeiro fruto: as Confrarias da Caridade, as Senhoras da Caridade, que hoje chamamos a Associação Internacional das Caridades. Trabalham na nossa Diocese desde 1876, sempre ligadas ao Hospício D. Maria Amélia. Bem-hajam pelo trabalho socio-caritativo que realiza entre nós, desde essa data, junto dos mais pobres da nossa sociedade.

Para melhor realizar o serviço dos Pobres e os evangelizar, Vicente de Paulo reúne, em 1625, padres que, sem ser religiosos, aceitassem viver como religiosos. Estavam criados os Padres da Missão ou, como hoje são conhecidos entre nós, os Padres Vicentinos. Chegaram, pela primeira vez, à Madeira, em 1757 e por cá permaneceram 10 anos, no Seminário Diocesano, pregando retiros e em missões populares. O regresso dos Padres fez-se, depois, em 1874, ligados à Fundação do Hospício, mas também com um laço muito estreito ao Seminário Diocesano e às Missões populares. Desde então continuam presentes na nossa Diocese, como Capelães no Hospício e disponíveis para diferentes ministérios pastorais.

Em 1630, uma jovem pastora, Margarida Naseau, apresenta a Vicente de Paulo o projecto auspicioso de, com outras jovens, cuidar e servir os pobres sem remuneração. Estava aqui o embrião das Servas dos Pobres. Vicente de Paulo pede a Luísa de Marillac que oriente estas jovens... Nasciam em 1633 as Filhas da Caridade! Desembarcaram na Madeira em 1862 a pedido da Imperatriz D. Maria Amélia para assumir a Fundação do Hospício, onde se encontram ainda hoje. Mais tarde assumiriam o Refúgio de S. Vicente de Paulo, em Gaula, e a Fundação Santa Luísa de Marillac, no Caminho do Monte. Saudamo-las pela acção socio-caritativa que exercem entre nós junto dos carenciados, desde os mais pequeninos até aos mais idosos!

Embebido do espírito vicentino, Frederico Ozanam funda as Conferências Vicentinas em 1831 e, coisa admirável, em 1875, é fundada, na Paróquia de S. Pedro do Funchal, a 1ª Conferência madeirense e 2ª nacional! Hoje, os Vicentinos actuam em 39 das nossas Paróquias no contacto directo e pessoal com os mais pobres! Saudamo-los e auguramos-lhes, nos tempos de crise que correm, muita escuta e presença!

Ainda de espírito vicentino a Juventude Mariana Vicentina e as Filhas de Maria: ambas animam em diferentes paróquias da nossa Diocese, nos sectores que lhes são mais específicos, a vida das comunidades cristãs, difundindo a caridade que abrasava os corações de Vicente de Paulo e de Luísa de Marillac. Saudamo-las vivamente, também, pelo seu trabalho apostólico.



A prática da Caridade

Tanto a vida de Vicente de Paulo como a de Luísa de Marillac se centraram em torno da caridade e do Pobre, traduzindo para o seu tempo, mais pela acção do que pelo discurso, o Evangelho das Bem-aventuranças de Jesus Cristo (cf. Mt 5,1-12). Nas palavras do Profeta Isaías, eles foram sobre os montes os pés dos mensageiros que anunciam a paz, trazem a boa nova e proclamam a salvação (cf. Is 52,7-10).

A prática da caridade sem limites levou-os à prática do Reino de Deus, porque à medida que criavam hospitais, recolhiam crianças abandonadas, acolhiam jovens, matavam a fome às vítimas da guerra, eles estavam a trabalhar para unir as pessoas, a diminuir as diferenças entre elas, tornar a caridade uma realidade concreta.

Se, hoje, a caridade é tantas vezes mal compreendida, não estranharemos que a qualidade, que Vicente de Paulo lhe incutiu, fosse até reconhecida por ateus e por espíritos como o de um Voltaire, por exemplo. Michel Riquel chama-a o “realismo da caridade”, porque abarcava o ser humano na sua totalidade. Não se trata de simples beneficência, de uma caridade assistencial, porque Vicente de Paulo pensava sempre na dignidade do Pobre, por isso equacionava lucidamente caridade e justiça.

Caridade no sentido de que ela só é verdadeira, se for efectiva, solidária e interpeladora, sustentando que nem a justiça prevalece sobre a caridade, porque a pessoa precisa de ser atendida com amor, nem a caridade prevalece sobre a justiça, porque “Deus nos concede a graça de enternecer os nossos corações em favor dos miseráveis e de crer que, ao socorrê-los, estamos a fazer justiça...”

É por esta razão que ele ia ao encontro de todas as forças vivas da nação em favor do pobre e não se cansava de afirmar: “a caridade é inventiva até ao infinito” e ainda: “amemos a Deus, meus irmãos, mas com o suor dos nossos rostos e o esforço dos nossos braços”.



Causa do Pobre, a causa de Cristo

Tudo aconteceu em 1617 quando Vicente de Paulo se encontrou face a face com o Pobre. O Pobre converteu-o, tornou-se para Vicente de Paulo, sacramento de Cristo, mediação viva e expressão real do Senhor, lugar preferencial para o encontro com Deus sofredor e crucificado, isto é, ponto de partida e de chegada da sua reflexão e do seu agir espiritual.

A causa do Pobre tornou-se a causa de Cristo. Esta descoberta despoletou a fecundidade da vida cristã de Vicente de Paulo: “Vede como o principal para Nosso Senhor era trabalhar pelos pobres”; “Jesus Cristo não fez outra coisa no mundo senão servir os pobres”. Por esta razão, ele não hesitará em chamá-los “nossos senhores e nossos mestres”, porque são os pobres que nos dizem qual é a vontade de Deus, porque eles constituem a razão de ser das instituições vicentinas, configuram as suas origens, rectificam o seu presente e dinamizam o compromisso do seu futuro.

Se a caridade de Vicente de Paulo pelo pobre se enraíza tão profundamente no mistério de Deus, ele não cessa de afirmar que ela deve ser vivida concretamente no serviço prestado ao pobre, com respeito e devoção, para evidenciar a dignidade que lhe é devida, seguindo uma pedagogia libertadora, isto é, que o trabalho junto do pobre o leve a caminhar pelos seus próprios pés e o incite a que outros o façam também. São palavras suas: “Assim como o Verbo-Pobre foi enviado para encarnar em Jesus Pobre, assim os pobres são convidados a continuar a missão junto de seus irmãos pobres”.



Caridade e justiça, valores fundamentais

Trezentos e cinquenta anos nos separam de Vicente de Paulo e de Santa Luísa de Marillac. Vemos, ainda hoje, o número de pobres a aumentar, de tal modo que as Nações Unidas proclamaram 1996 o ano da erradicação da Pobreza; e agora é a vez da Europa declarar 2010 o ano da luta contra a Pobreza e exclusão social. O que evidencia que a Pobreza continua a estar longe de ser debelada e a mensagem de Vicente de Paulo de amor ao pobre e de luta contra a pobreza mantém toda a sua actualidade.

Num mundo globalizado como o nosso, cada um de nós é chamado a empenhar-se na causa da justiça, como valor evangélico fundamental. A caridade-justiça conduz-nos a um conjunto de atitudes e acções contrárias às daqueles que gravitam em torno dos interesses económicos, sobrepondo-os ao incomparável e excelso valor do ser humano que, em todas as circunstâncias, deve ser respeitado na sua dignidade fundamental, como pessoa que é.

S. Vicente de Paulo oferece-nos a lógica da partilha, da solidariedade, da comunhão, da dignidade humana, dos direitos do pobre. O Reino de Deus, que o mesmo é dizer o Reino das Bem-aventuranças, vai-se construindo com todos os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus. São estes, que estabelecerão entre si laços de fraternidade, e que poderão, na caridade e na justiça, dizer: Pai Nosso!

Funchal, 27 de Setembro de 2010

† António Carrilho, Bispo do Funchal


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