domingo, 31 de julho de 2011

Governo anseia estreitar colaboração com o poder local

Governo anseia estreitar colaboração com o poder local
O secretário de Estado da Solidariedade e da Segurança Social inaugurou ontem, em Santa Maria da Feira, o Lar da Terceira Idade do Centro Paroquial e Social de Argoncilhe, que representa um investimento de 2,5 milhões de euros.
O edifício funcionará como lar e como centro de dia, tem capacidade para acomodar 40 pessoas em cada uma dessas valências e foi comparticipado em 8 por cento pela autarquia local e em 40 por cento pelo PARES - Programa de Alargamento da Rede de Equipamentos Sociais.
Marco António Costa apontou a obra como exemplo do que leva o Governo a “ansiar” pelo “estreitamento da colaboração com o poder local”, na medida em que defende que o sistema social não poderá ter “sentido e dimensão territorial se não puder contar com o poder local, seja com as câmaras, seja com as juntas de freguesia”.
Referindo-se ao contributo financeiro privado do benemérito local Constantino Oliveira, o secretário de Estado afirmou que “aquilo que hoje há de mais importante na sociedade portuguesa é o voluntariado institucional e associativo, que, nesta fase exigente, torna possível uma obra desta dimensão”.

Arranca novo plano social

 
LUSA
O novo Plano de Emergência Social será apresentado na próxima semana, anunciou ontem o secretário de Estado da Solidariedade e da Segurança Social, Marco António Costa, que realçou que este não será “um envelope financeiro”.
Durante a inauguração do Lar da Terceira Idade do Centro Social e Paroquial de Argoncilhe, em Santa Maria da Feira, o governante admitiu um ligeiro atraso no anúncio do programa, facto que atribuiu a “acertos de agenda” com a Associação Nacional de Municípios e com a Associação Nacional de Freguesias. “Hoje, os municípios e freguesias já prestam muitos serviços sociais às populações através dos seus orçamentos próprios”, justificou Marco António Costa, que sublinhou que fazer um programa sem estes organismos seria “inconcebível”.
Além das autarquias, o secretário de Estado falou ainda da responsabilidade social das empresas e da intervenção do Estado como vetores para a criação de uma rede de parcerias “que garantirá uma resposta e uma frente conjunta no âmbito do Plano de Emergência Social”.
Sem capacidade
Durante a visita a Santa Maria da Feira, Marco António Costa admitiu ainda que o Estado não vai ter capacidade para “cofinanciar e auxiliar financeiramente” as instituições sociais “na dimensão” em que as obras nos equipamentos vão necessitar.

Record

Secretário de Estado avisa que não haverá capacidade para apoiar todos os equipamentos em construção

Secretário de Estado avisa que não haverá capacidade para apoiar todos os equipamentos em construção
Santa Maria da Feira, 30 jul (Lusa) -- O secretário de Estado da Solidariedade e Segurança Social afirmou hoje que o Estado não terá capacidade para apoiar as instituições sociais na dimensão exigida pela quantidade de equipamentos atualmente em construção no país.
Na inauguração do Lar da Terceira Idade do Centro Social e Paroquial de Argoncilhe, em Santa Maria da Feira, Marco António Costa declarou: "O Estado não vai ser capaz de co-financiar e auxiliar financeiramente [as instituições de caráter social] na dimensão em que estas obras todas pelo país fora vão precisar".
"Estas instituições decidiram avançar com o alargamento da rede de respostas sociais no país, nomeadamente em valências como lares da terceira idade e centros de dia", explica o governante, "mas muitos destes investimentos tinham a expetativa, quando foram iniciados, de terem comparticipações na ordem dos 70 a 75 por cento sobre o custo efetivo dessa obras e o que tiveram foi financiamento sobre o seu custo elegível, o que faz uma grande diferença".

quarta-feira, 27 de julho de 2011

ACÓRDÃO

Processo:
646/09.1TBFND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: TRIBUNAIS PORTUGUESES
COMPETÊNCIA
CONCORDATA
MISERICÓRDIAS
Data do Acordão: 05/17/2011
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: FUNDÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.211º CRP, 66 CPC, 44 A 55, 68 A 70 DL Nº 119/83 DE 25/2, CONCORDATA DE 2004
Sumário: 1 - Considerando o disposto nos artigos 44.º a 51.º, 68.º a 70.º do Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de Fevereiro, e artigos 1.º, 8.º a 12.º da actual Concordata (2004) celebrada entre o Estado Português e a Santa Sé, a Irmandade da Santa Casa da Misericórdia é tida como pessoa jurídica constituída na ordem jurídica canónica, rege-se pela ordem jurídica portuguesa nos aspectos específicos inerentes ao desenvolvimento da sua actividade de prossecução de «fins de assistência e solidariedade» e pela ordem jurídica canónica quanto aos demais aspectos da sua actividade, desde que os mesmos se reportem a normas da ordem jurídica canónica.
2 - Os tribunais judiciais são incompetentes em razão da matéria para apreciarem a legalidade da destituição dos órgãos sociais da Santa Casa da Misericórdia decidida por autoridade eclesiástica (Bispo da Diocese competente), bem como deliberação eleitoral tomada em Assembleia Geral da mesma Misericórdia.
Decisão Texto Integral: Nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, e face à simplicidade da questão suscitada, vai proferir-se decisão sumária (artigos 700º, nº1, alínea c) e 705º do Código de Processo Civil, na redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24/8).

I.RELATÓRIO 1. Os Autores, na qualidade de irmãos da Santa Casa da Misericórdia do ..., intentaram acção declarativa, sob a forma ordinária, contra a Ré Santa Casa da Misericórdia do ..., pedindo que seja declarada nula e de nenhum efeito a destituição dos corpos gerentes eleitos para o triénio de 2005/2007 e, em consequência, ser declarada nula e de nenhum efeito a nomeação da Comissão Administrativa e todos os actos por si praticados até à Assembleia-Geral de 29 de Março de 2009; bem como ser declarada nula e de nenhum efeito a deliberação eleitoral da Assembleia-Geral da Ré de 29 de Março de 2009 ou, subsidiariamente, se assim não se entender, ser anulada a aludida deliberação.
Citada para contestar, a Ré Santa Casa da Misericórdia do ... veio, além de impugnar factos alegados pelos Autores, deduzir a excepção de incompetência em razão da matéria do Tribunal Judicial do Fundão para conhecer da acção proposta.
Alega, para tal, e relacionado com a qualificação jurídica da Ré, que esta foi criada no ano 1516, e é uma instituição canonicamente erecta e como tal devidamente registada, tendo sido constituída ao abrigo dos cânones 298 e 299 do Código Canónico, sendo que a Ré é uma associação de fiéis que obteve da autoridade eclesiástica a erecção nos termos do cânone 301 do Código Canónico, apresentando-se como uma associação pública de direito canónico.
Por reporte ao relacionamento entre a República Portuguesa e a Santa Sé invoca que em 1940 o Estado Português assinou com a Santa Sé uma solene Convenção que ficou conhecida sob o título de Concordata, sendo que ambas as entidades decidiram assinar, em 2004, uma nova solene Convenção, que manteve o nome de Concordata e que entrou em vigor no dia 13 de Maio do ano de 2004; na Concordata de 1940 o artigo 4º expressamente consignava: “as associações ou organizações a que se refere o artigo anterior, podem adquirir bens e dispor deles nos mesmos termos por que o podem fazer, segundo a legislação vigente, as outras pessoas morais perpétuas, e administram-se livremente sob a vigilância e fiscalização da competente Autoridade eclesiástica. Se porém, além de fins religiosos, se propuserem também fins de assistência e beneficência em cumprimento de deveres estatutários ou de encargos que onerem heranças, legados ou doações, ficam, na parte respectiva, sujeitas ao regime instituído pelo direito português para estas associações ou corporações, que se tornará efectivo através do Ordinário competente e que nunca poderá ser mais gravoso do que o regime estabelecido para as pessoas jurídicas da mesma natureza.”, sendo que deve ser à luz do actualmente consagrado na Concordata de 2004, maxime nos artigos 10º, 11º e 12º que tem que se analisar a problemática da competência do Tribunal.
Invoca ainda a hierarquia das normas aplicáveis, e, estando em causa as duas Concordatas, faz apelo ao disposto no artigo 8º, nº2 da Constituição da República Portuguesa, que, conforme interpretação de diversa jurisprudência do Tribunal Constitucional, pressupõe que “as normas do direito internacional convencional detém primazia na escala hierárquica sobre o direito interno, anterior e posterior”, prevalecendo a seguinte escala hierárquica: Primeiro - A Constituição da República Portuguesa; Segundo - A Concordata entre Portugal e a Santa Sé; Terceiro - As normas internas portuguesas, donde as normas internas portuguesas não podem por em causa a Concordata celebrada entre Portugal e a Santa Sé.
Num outro argumento, conexo com a lei interna portuguesa, alude ao facto de em 21 de Fevereiro de 1983 ter sido publicado o Decreto - Lei nº 119/83, que veio proceder ao alargamento do conceito legal de instituição particular de solidariedade social, aprovado pelo Decreto - Lei nº 519-G2/79 (que aquele Decreto - Lei revogou, à excepção dos artigos 7º, 22º e 24º do Estatuto publicado em anexo), e que veio reponderar as condições específicas que caracterizam as instituições de solidariedade social de expressão religiosa, tendo, na sequência disso, sido aprovado o novo Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social.
Referindo-se ao relacionamento entre a Concordata e o Estatuto das IPSS, salientou que a associação constituída na ordem jurídica canónica como pessoa colectiva de direito canónico que a Ré é, tendo a qualidade de Irmandade da Misericórdia ou Santa Casa da Misericórdia está, por tal, incluída na Secção II do Capitulo III do Estatuto das IPSS, aprovado pelo já referido Decreto - Lei 119/83, de 25 de Fevereiro, sendo que o artigo 44º do Estatuto das IPSS consigna expressamente: “(Regime Concordatário) A aplicação das disposições do presente Estatuto às instituições da igreja católica é feita com respeito pelas disposições da Concordata celebrada entre a Santa Sé e a República Portuguesa em 7 de Maio de 1940”, acrescentando que igualmente o artigo 87º, nº 1 da Lei de Bases da Segurança Social (Lei nº 32/02 de 20 de Dezembro quando se refere às Instituições Particulares de Solidariedade Social, ressalva a natureza, autonomia e identidade das Santas Casas da Misericórdia; por outro lado, o artigo 48º do Estatuto das IPSS consigna expressamente: “(Tutela da Autoridade Eclesiástica) Sem prejuízo da tutela do Estado, nos termos do presente diploma, compete ao ordinário diocesano, ou à Conferência Episcopal, respectivamente, a orientação das instituições do âmbito da sua diocese, ou de âmbito nacional, bem como a aprovação dos seus corpos gerentes e dos relatórios e contas anuais”, concluindo que é a própria Lei Ordinária Portuguesa que absorve no seu seio a especificidade das irmandades da Misericórdia como é o caso da Ré, sendo a própria lei que consigna que é ao Ordinário Diocesano (…) que compete a orientação das Instituições no âmbito da sua Diocese (como é o caso da Ré), bem como a aprovação dos seus corpos gerentes e dos relatório e contas anuais (cfr. 48º do Estatuto das IPSS).
Sustenta ser a própria lei interna portuguesa que entende que o tribunal competente para dirimir as disputas da aprovação dos corpos gerentes e do relatório e contas anuais, para além da discussão sobre orientação das Misericórdias, é o Ordinário Diocesano, sendo diferente a solução estando em discussão a actividade de solidariedade social praticada pela Misericórdia, caso em que seria, nos termos dos artigos 40º, 41º, 44º e 69º do Decreto - Lei nº 119/83 de 21 de Fevereiro, conjugados com nº 1, do artigo 11º da Concordata de 2004 competente o Tribunal Judicial).
No mesmo sentido invoca ainda o próprio Compromisso da Santa Casa da Misericórdia do ..., onde o nº 3 do seu artigo 1º estabelece que a Irmandade adquire personalidade jurídica civil e estará reconhecida como Instituição Privada de Solidariedade Social, mediante participação escrita da sua erecção canónica, feita pelo Ordinário Diocesano aos serviços competentes do Estado, afirmando o mesmo Compromisso no ponto 4 desse artigo 1º, que: “em conformidade com a natureza que lhe provém da sua erecção canónica, a Irmandade está sujeita ao Ordinário Diocesano de modo similar ao das demais associações de fiéis.”
Acrescenta ainda que mesmo que se entendesse que o tribunal competente para discutir a aprovação dos corpos gerentes e a orientação da instituição não fosse o Ordinário Diocesano, sempre se teria que entender que, face ao carácter de associação pública, que a erecção canónica impõe e atribui às Misericórdias e logo à Ré, o Tribunal competente para decidir seria o Tribunal Administrativo e nunca o Tribunal Judicial, referindo que, sendo, como é a Ré, uma associação pública de direito canónico não serão nunca aplicáveis as regras previstas no Código Civil para as associações privadas, previstas no Capítulo II do subtítulo I do título II do Livro I do Código Civil.
Concluiu que deve ser considerado o Tribunal do Fundão materialmente incompetente para julgar a acção, devendo a Ré ser absolvida da instância.
Na réplica apresentada, os Autores sustentam que na acção por eles proposta não estão em causa a disciplina eclesiástica, a integridade da fé dos irmãos, nem os domínios da consciência e do culto divino, mas sim, irregularidades relacionadas com o processo eleitoral da Ré; as Misericórdias apesar de se constituírem no seio da Igreja, enquanto “associações de fiéis” são entes associativos privados, que apenas estão sujeitos a “vigilância das competentes entidades eclesiásticas” nos domínios em que estas são soberanas, domínios esses que não se confundem com actos inerentes ao funcionamento da instituição onde devem ser seguidas as regras associativas do direito privado, nomeadamente, as constantes do Estatuto das IPSS’s.
Invocam que resulta do teor do artigo 4° da Concordata de 1940 que competia ao Ordinário Diocesano efectivar a aplicação do direito canónico e do direito português às Associações e Organizações constituídas de harmonia com o direito canónico, nomeadamente, as Misericórdias; em 2004 entrou em vigor a nova Concordata estabelecida entre a República Portuguesa e a Santa Sé, a qual substituiu a Concordata de 7 de Maio de 1940 e afastou a possibilidade de aplicação do direito português pelo Ordinário Diocesano, porquanto passou o artigo 11° da Concordata de 2004 a prever que “As pessoas jurídicas canónicas reconhecidas nos termos dos artigos 1, 8, 9 e 10 regem-se pelo direito canónico e pelo direito português, aplicados pelas respectivas autoridades, e tem a mesma capacidade civil que o direito português atribui às pessoas colectivas de idêntica natureza”, e, por força do artigo 12 da Concordata de 2004, a questão deverá ser apreciada à luz da lei civil portuguesa, designadamente, do Estatuto das IPSS’s e do Código Civil, competindo a sua aplicação aos Tribunais Portugueses, sendo certo que o próprio Estatuto das IPSS’s confirma a competência atribuída aos Tribunais Portugueses pela Concordata de 2004.
Acrescentaram que não existe fundamento legal para aplicar, in casu, o artigo 48° (Tutela da Autoridade Eclesiástica), previsto na Secção II do Capítulo II do Estatuto das IPSS’s porque a Ré tem a qualidade de irmandade da Misericórdia e está incluída na Secção II (“IRMANDADES DA MISERICORDIA”) do Capítulo III (“INSTITUIÇÕES PARTICULARES DE SOLIDARIEDADE SOCIAL EM ESPECIAL”), correspondente aos artigos 68° a 71° do Estatuto da IPSS’s e, nos casos omissos, manda a lei que as irmandades da Misericórdia se regulem pelas disposições aplicáveis às associações de solidariedade social (artigos 62° a 67° do Estatuto das IPSS’s) e não pelas disposições que regulam as organizações religiosas previstas no capítulo II (artigos 40° a 51° do Estatuto das IPSS’s, cfr. o n.° 2 do artigo 69° do Estatuto das IPSS’s), adiantando que o legislador qualifica as irmandades da misericórdia ou santas casas da misericórdia como “associações constituídas na ordem jurídica canónica” (artigo 68° n.° 1 do Estatuto das IPSS’s), e nunca como “Instituições da Igreja Católica”, sendo que distinguiu os dois tipos de instituições no referido diploma legal: na Secção II do Capítulo II do Estatuto das IPSS’s regula as ACTIVIDADES DE SOLIDARIEDADE SOCIAL DAS INSTITUIÇÕES DA IGREJA CATOLICA; e na Secção II do Capítulo III do referido Estatuto das IPSS’s, referente às INSTITUIÇÕES PARTICULARES DE SOLIDARIEDADE SOCIAL EM ESPECIAL, regula as “IRMANDADES DA MISERICÓRDIA”.
Relativamente à eventual competência do Tribunal Administrativo, sustentam que a erecção canónica não altera, só por si, a natureza privada das associações de fiéis, sendo antes um mero requisito de forma que apenas lhes confere personalidade, mas não as qualifica, sendo que o próprio Código de Direito Canónico qualifica a Ré como uma associação privada de fiéis no §2 do Cânone 299 do Código de Direito Canónico, dedicando o Cânone 298 às “associações de fiéis” em geral, sendo que quando estas associações são constituídas a solicitação da autoridade eclesiástica, são colocadas sob o seu patrocínio ou agem em nome e em representação da Igreja, revestem a qualificação de
associações públicas de fiéis (Can. 301), estando a sua instituição, organização e funcionamento previstos no Capítulo II do Titulo V do Código Canónico (Cânones 312 a 320, inclusive); se, pelo contrário, decorrem exclusivamente do exercício de um direito fundamental das pessoas singulares e de um acto de autonomia destas, as associações, assim formadas, dizem-se particulares (Can. 299), estando a sua instituição, organização e funcionamento previstos no Capítulo III do mesmo Título (Cânones 321 a 326, inclusive).
Precisam que as Misericórdias nasceram ligadas à Igreja Católica mas não foram constituídas por iniciativa das autoridades eclesiásticas, acrescendo que o Compromisso da Santa Casa da Misericórdia do ... segue as disposições do Código de Direito Canónico sobre as associações particulares, correspondentes aos Cânones 299 e 321 a 326, designadamente; o Compromisso foi aprovado pelo Bispo da ..., mas esse facto não muda a natureza privada da associação (Can. 299 §3 e 322 §2), sendo uma associação que tem como objectivo, na prática da caridade, satisfazer carências sociais (can. 298 e 299), em
que o governo e a direcção da Irmandade pertence aos Irmãos (Can. 321), sendo os corpos gerentes eleitos e destituídos pelos irmãos reunidos em Assembleia Geral, segundo as prescrições dos estatutos (Can. 324).
Concluem no sentido de que a Santa Casa da Misericórdia do ... é – quer pelos seus elementos constitutivos (foi constituída por vontade de particulares que elegeram os fins a prosseguir), quer pelo modo como prossegue estes fins (não age como mandatarias da Igreja, mas sim, em nome próprio e sob a sua própria responsabilidade), quer ainda pelo sistema de governo que a rege (goza de autonomia estatutária, designa livremente os seus corpos gerentes, administra livremente as suas actividades e os seus bens, e goza de liberdade de extinção) – uma associação privada constituída na ordem jurídica canónica, sendo nesta qualidade que a ordem jurídica do Estado Português a reconhece, isto é, como uma instituição particular de solidariedade social constituída pela iniciativa dos particulares; atendendo ao n.° 3 do artigo 1° do Compromisso, a Santa Casa da Misericórdia do ..., tem personalidade jurídica civil e está reconhecida como Instituição Privada de Solidariedade Social.
Argumentam que, tanto o Direito interno português, como o direito canónico, atribuem competência ao Tribunal da Comarca do Fundão para julgar a acção por eles proposta contra a Ré, inexistindo qualquer incompetência, quer de natureza absoluta quer de natureza relativa.
A fls. 141 a 175 foi junto pela Ré parecer elaborado por F. Cassiano dos Santos, Professor da Faculdade de Direito de Coimbra e Hugo Duarte Fonseca, Assistente da Faculdade de Direito de Coimbra, onde é debatida questão da competência do Tribunal Judicial do Fundão para apreciar e decidir acerca do objecto da acção proposta contra aquela pelos Autores.
Foi proferido despacho saneador que, apreciando a excepção da incompetência absoluta em razão da matéria do Tribunal Judicial do Fundão, julgou a mesma procedente e, abstendo-se de conhecer do pedido formulado pelos Autores, absolveu a Ré da instância, nos termos do disposto no artigo 288º, nº1, a) do Código de Processo Civil.
2. Inconformados com tal decisão, dela interpuseram os Autores recurso de apelação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:
“1. Os irmãos da Misericórdia Ré, ora Apelantes, pediram para que fosse declarada nula e de nenhum efeito a destituição dos corpos gerentes eleitos para o triénio de 2005/2007 e, em consequência, fosse declarada nula e de nenhum efeito a nomeação da Comissão Administrativa e todos os actos por si praticados até à Assembleia Geral da R. de 29 de Março de 2009 ou, subsidiariamente, que fosse anulada a aludida deliberação, por as mesmas violarem a Lei Portuguesa e o Compromisso da Santa Casa da Misericórdia do ....
2. O objecto do presente recurso cinge-se à decisão de incompetência absoluta em razão da matéria do Tribunal do Fundão para apreciação da presente acção judicial, por considerar que a mesma se situa no âmbito da competência das autoridades eclesiásticas.
3. A Concordata de 2004, que substituiu a Concordata de 1940, afastou a possibilidade de aplicação do direito português pelo Ordinário Diocesano: Se estiver em causa a violação do direito interno português, recorre-se aos tribunais civis.
4.In casu, os Autores invocam a violação do direito interno português.
5. A Concordata de 2004 prevê que as pessoas jurídicas canónicas que, além de fins religiosos prossigam fins de assistência e solidariedade, desenvolvem a sua actividade de acordo com o regime jurídico instituído pelo direito português.
6. Ainda que se restringisse ‘a aplicação do Direito português exclusivamente à actividade de assistência e solidariedade das Misericórdias, como parece fazer o Tribunal a quo, a actividade dos órgãos gerentes da Misericórdia Ré (pelas competências que lhes são atribuídas pelo Compromisso) é indissociável dos actos de interesse público que se manifestam na relação com os beneficiários dos serviços de assistência e de solidariedade da instituição, devendo em consequência ser o Estado, através dos Tribunais, a fiscalizá-los e a tutelá-los.
7. O próprio Estatuto das IPSS’s e o Compromisso da Ré confirmam a regulação pelo direito interno e a competência atribuída aos Tribunais portugueses pela Concordata de 2004.
8. Dispõe o artigo 98° do Estatuto das IPSS’s (Decreto-Lei n.º 119/83 de 25 de Fevereiro) que “Fica revogada a legislação em contrário, designadamente (…) o decreto-lei nº 519-G2/79 de 29 de Dezembro, com excepção do artigo 7º, o qual determina que “compete aos Tribunais conhecer das questões que se levantem entre as instituições e os de seus associados ou as pessoas que beneficiem da sua acção”.
9. O próprio Compromisso da Ré, votado por unanimidade em sessão de Assembleia Geral e aprovado por D. A..., Bispo da ..., remete para a lei interna e atribui competência aos Tribunais portugueses para julgarem e intervirem em inúmeras questões relacionadas com o funcionamento, a eleição e a convocação dos órgãos gerentes da Ré.
10. O Estatuto das IPSS´s tem um capítulo II integrado por duas secções, destinado à regulação das actividades de solidariedade das organizações religiosas, sendo a II secção deste capítulo destinado à fixação do regime destas instituições da igreja católica.
11. Se acaso se pretendesse que as sujeições próprias da ordem canónica que se aplicam às Misericórdias são as que resultam do artigo 48° do D.L. 119/83, um legislador presumidamente avisado e inteligente teria feito uma remissão expressa para tal normativo e teria inserido a Secção das Irmandades da Misericórdia nesse capítulo ao invés do capítulo III. No entanto, não o fez e , cremos que de caso pensado!
12. Antes pelo contrário, optou o legislador por remeter expressamente para as disposições aplicáveis às associações de solidariedade social previstas no capítulo III -cfr. o n.º 2 do artigo 69° do Estatuto das IPSS’s.
13. Para o legislador são exemplos de institutos de organizações ou instituições da igreja católica, os centros sociais paroquiais e as caritas diocesanas e paroquiais. -Artigo 51° do Estatuto das IPSS’s - não as Misericórdias.
14. A Santa Casa da Misericórdia do ... é - quer pelos seus elementos constitutivos (foi constituída por vontade de fiéis que elegeram os fins a prosseguir), quer pelo modo como prossegue esses fins (não age como mandatária da Igreja., mas sim, em nome próprio e sob a sua própria responsabilidade), quer ainda pelo sistema de governo que a rege (goza de autonomia estatutária, designa livremente os seus corpos gerentes, administra livremente as suas actividades e os seus bens, e goza de liberdade de extinção) -uma associação privada constituída por fiéis.
15. As Associações privadas de fiéis da Igreja não são instituições da Igreja. As Misericórdias não têm por fim o culto público nem estão sujeitas à hierarquia da Igreja.
16. As Misericórdias são Eclesiais, não Eclesiásticas.
17. Ainda que se entendesse ser aplicável às Misericórdias o artigo 48° do Estatuto das IPSS’s, o que não se concede, os actos nele enumerados são taxativos e sem possibilidade de interpretação analógica/extensiva feita pelo Tribunal a quo.
18. Com se diz no douto Acórdão da Relação do Porto de 05/05/2005, in www.dgsi.pt. “Se aprovação dos corpos gerentes e dos relatórios e contas anuais compete ao ordinário diocesano da Irmandade, em causa ex lege expressa (artigo 48°), já no que respeita à capacidade eleitoral dos “irmãos” (elegerem e serem eleitos), suas incapacidades e impedimentos (artigo. 21° - não podem ser reeleitos ou novamente designados os membros dos corpos gerentes que, mediante processo judicial, tenham sido declarados responsáveis por irregularidades cometidas no exercício de funções ou removidos dos cargos que desempenhavam), vícios de deliberações tomadas pelos corpos sociais, falsificação das respectivas actas, violação dos seus estatutos e indiciação de práticas criminais, tal mo está especialmente taxada como sendo da competência eclesiástica; pelo que, residualmente, são do conhecimento do foro comum, atento os fins aqui prosseguidos serem essencialmente de interesse público, caber ao Estado exercer sobre as instituições a sua tutela; sendo que esta só por meio dos Tribunais pode ser efectivada.”
19. O artigo 63° do Estatuto das IPSS’s, aplicável às Misericórdias por força do n.º 2 do artigo 69° do mesmo Estatuto, atribuiu expressamente competência ao Tribunal comum para convocar uma assembleia geral, a pedido de qualquer irmão ou do Ministério Público, e para designar, se necessário, o presidente e os secretários da mesa que dirigirão a referida assembleia.
20. Face ao exposto, resulta que, tanto o Direito interno português como o direito canónico atribuem competência ao Tribunal da Comarca do Fundão para julgar os presentes autos, inexistindo qualquer incompetência absoluta.
21. Tal corno refere o Exmo. Senhor Juiz do Tribunal a quo, a jurisprudência tem tido várias interpretações e assumido posições distintas… Afirmando a competência dos Tribunais Judiciais Comuns nestes casos, veja-se os seguintes exemplos: O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/10/2000, não publicado; o Acórdão da Relação do Porto de 05/05/2005, n.º convencional JTRP00037991, in www.dgsi.pt; o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05/06/2006, em www.dgsi.pt; o Acórdão de 21/0611999 do mesmo Tribunal da Relação do Porto, n.º convencional JTRP00025487, in www.dgsi.pt; o Acórdão da Relação do Porto de 05-06-2006, nº convencional JTRP00039255, em www.dgsipt; o Acórdão da Relação de Coimbra de 16-06-2009, in www.dgsi.pt; e o Acórdão da Relação de Évora, de 23/02/1989, C.J., Tomo 1, pág. 253.
2. Também a doutrina tem vindo a apoiar esta tese. Veja-se, por exemplo, José António Martins Gigante, in Instituições de Direito Canónico, Voz. I, 3.ª Ed.; as circulares da União das Misericórdias Portuguesas juntas aos autos; o parecer do Professor Gomes Canotilho sobre a Misericórdia de Matosinhos junto ao processo com o n.º convencional JTRP00034700 que correu termos na Relação do Porto, o Estudo Natureza Jurídica das Misericórdias, in Separata de As Associações na Igreja, Col. Lusitânia Canonica, nº 10 - 2005 do Padre Vítor Melícias e ainda a opinião de outros consagrados canonistas, como os Drs. Virgílio Lopes e João Marado”.
Remata as suas alegações pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que declare competente o tribunal recorrido, ordenando o prosseguimento dos termos do processo com o conhecimento dos pedidos formulados na acção.
A apelada contra-alegou, pugnando pela improcedência da apelação e confirmação da decisão recorrida.

II.OBJECTO DO RECURSO
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrentes e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras[1], importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito[2].
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelos recorrentes, no caso dos autos cumprirá apreciar fundamentalmente a competência, em razão da matéria, do Tribunal recorrido (tribunal comum) para conhecer da acção proposta pelos apelantes.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Além dos factos narrados no relatório, mostram-se relevantes para a decisão os seguintes factos:
1. Com data de 27 de Outubro de 1980, foi elaborado o Compromisso da Irmandade da Santa Casa da Misericórdia do ..., também designada Santa Casa da Misericórdia do ... ou Misericórdia do ..., o qual foi votado por unanimidade em sessão da sua Assembleia Geral de 31 de Outubro de 1980.
2. Tal compromisso foi aprovado em 20 de Dezembro de 1980 pelo Bispo da ..., que nessa data confirmou a erecção canónica da Santa Casa da Misericórdia do ... e ordenou que dessa confirmação e aprovação “se dê conhecimento à competente Autoridade Civil para os devidos efeitos legais, segundo o estabelecido na Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa”.

IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
A competência, como medida de jurisdição atribuída a cada tribunal para conhecer de determinada questão a ele submetida, e enquanto pressuposto processual, determina-se pelos termos em que a acção é proposta, isto é, pela causa de pedir e pedido respectivos.
De acordo com o artigo 211º, nº1 da Constituição da República Portuguesa, os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
E o artigo 66º do Código de Processo Civil determina que “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
O carácter residual da competência dos tribunais comuns também encontra expressão no artigo 18º, nº1 da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), aprovada pela Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro quando estabelece: “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
Importa, por isso, e no caso em apreço, pelos termos da acção proposta, aferir se a sua apreciação está reservada a uma jurisdição específica, designadamente, os tribunais eclesiásticos, pois é a partir dessa conclusão que se poderá ou não reconhecer aos tribunais comuns, categoria em que o tribunal recorrido se integra, tal competência.
A equação da questão em debate pressupõe, em primeira linha, a definição do estatuto jurídico da apelada Santa Casa da Misericórdia do ... e, num plano subsequente, os fins prosseguidos pela acção contra ela proposta, com incursão nos pedidos formulados e respectiva causa de pedir.
Nos termos do artigo 1º, nº1 do Compromisso da Ré, datado de 27 de Outubro de 1980, votado por unanimidade pela sua Assembleia Geral, em 31 de Outubro do mesmo ano, a Irmandade da Santa Casa da Misericórdia do ..., também designada Santa Casa da Misericórdia do ... ou Misericórdia do ..., fundada no ano de 1516, é uma associação de fiéis, “constituída na ordem jurídica canónica com o objectivo de, na prática da caridade, satisfazer carências sociais e praticar actos de culto católico, de harmonia com o seu espírito tradicional, informado pelos princípios da doutrina e moral cristãs”.
De acordo com o nº 3 do referido artigo 1º, “a Irmandade adquire personalidade jurídica civil e estará reconhecida como Instituição Privada de Solidariedade Social, mediante participação escrita da sua erecção canónica, feita pelo Ordinário Diocesano aos serviços competentes do Estado”, resultando do nº4 do aludido normativo que “em conformidade com a natureza que lhe provém da sua erecção canónica, a Irmandade está sujeita ao Ordinário Diocesano de modo similar ao das demais associações de fiéis”.
Tal compromisso foi aprovado em 20 de Dezembro de 1980 pelo Bispo da ..., que nessa data confirma a erecção canónica da Santa Casa da Misericórdia do ... e ordena que dessa confirmação e aprovação “se dê conhecimento à competente Autoridade Civil para os devidos efeitos legais, segundo o estabelecido na Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa”.
De acordo com o Código de Direito Canónico de 1917, então vigente, e nos termos do seu Cânone 687, as associações de fiéis só podiam adquirir personalidade jurídica no seio da Igreja após obtenção do superior eclesiástico competente, pelo competente via formal, da erecção canónica, o que, no caso, se mostra cumprido.
O Decreto-Lei n.º 519-G2/79, de 29 de Dezembro, àquela data em vigor, determinava no seu artigo 56º: “1 - As irmandades da Misericórdia ou santas casas da Misericórdia são associações constituídas na ordem jurídica canónica com o objectivo de satisfazer carências sociais e de praticar actos de culto católico, de harmonia com o seu espírito tradicional, informado pelos princípios da doutrina e moral cristãs.
2 - As irmandades da Misericórdia adquirem personalidade jurídica e são reconhecidas como instituições privadas de solidariedade social, mediante participação escrita da sua erecção canónica, feita pelo ordinário diocesano aos serviços competentes do Ministério dos Assuntos Sociais”, dele resultando, pois, o reconhecimento nele expresso de que as irmandades da Misericórdia constituem instituições privadas de solidariedade social, as quais, todavia, pressupõem a sua erecção canónica, cuja participação escrita ao Ministério dos Assuntos Sociais deverá ser determinada pelo ordinário diocesano.
Pressupondo que essa comunicação, porque ordenada pelo Bispo da ..., e não impugnada pelas partes, foi concretizada, dando-se, assim, cumprimento àquele imperativo legal, poder-se-á considerar, para efeitos da qualificação do estatuto jurídico da Ré, tratar-se de “uma associação constituída na ordem jurídica canónica e, ao mesmo tempo, é uma instituição privada de solidariedade social, portanto, com personalidade jurídica civil”[3].
Ao Decreto-Lei n.º 519-G2/79, de 29 de Dezembro sucedeu o Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de Fevereiro, que, nos seus artigos 44.º a 51.º, estabelece um regime específico para as instituições da igreja católica.
Começa o seu artigo 44.º por enunciar que “a aplicação das disposições do presente Estatuto às instituições da igreja católica é feita com respeito pelas disposições da Concordata celebrada entre a Santa Sé e a República Portuguesa em 7 de Maio de 1940”.
Relativamente ao reconhecimento das instituições canonicamente erectas, o seu artigo 45.º manteve o regime do anterior Decreto-Lei n.º 519-G2/79; já quanto aos respectivos estatutos, o artigo 46.º, no seu n.º 2, passou a exigir que estes “… e respectivas alterações das instituições, uniões e federações de âmbito nacional abrangidas pelo artigo anterior…» sejam “aprovados e autenticados pela Conferência Episcopal”. De acordo com o n.º 3 do mesmo dispositivo, “os estatutos deverão consignar a natureza da instituição e a sua ligação específica à igreja católica e conformar-se com as disposições aplicáveis deste diploma”.
Por sua vez, o artigo 48.º dispõe que «sem prejuízo da tutela do Estado, nos termos do presente diploma, compete ao ordinário diocesano, ou à Conferência Episcopal, respectivamente, a orientação das instituições do âmbito da sua diocese, ou de âmbito nacional, bem como a aprovação dos seus corpos gerentes e dos relatórios e contas anuais”, prevendo o artigo 49.º que “as instituições da igreja católica poderão revestir qualquer das formas enunciadas no artigo 2.º”, cujo n.º 1 especifica: “as instituições revestem uma das formas a seguir indicadas: a) Associações de solidariedade social; b) Associações de voluntários de acção social; c) Associações de socorros mútuos; d) Fundações de solidariedade social; e) Irmandades da misericórdia”.
Sobre estas últimas, estabelece o artigo 68.º do diploma citado: “1- As irmandades da Misericórdia ou santas casas da Misericórdia são associações constituídas na ordem jurídica canónica com o objectivo de satisfazer carências sociais e de praticar actos de culto católico, de harmonia com o seu espírito tradicional, informado pelos princípios de doutrina e moral cristãs”, denominando-se “compromissos” os seus estatutos, conforme definido no seu nº 2.
A definição do seu regime jurídico encontra consagração no artigo 69.º do mencionado Decreto-Lei, quando refere: “1 - Às irmandades da Misericórdia aplica-se directamente o regime jurídico previsto no presente diploma, sem prejuízo das sujeições canónicas que lhes são próprias.
2 - Em tudo o que não se encontre especialmente estabelecido na presente secção, as irmandades da Misericórdia regulam-se pelas disposições aplicáveis às associações de solidariedade social.
3 - Ressalva-se da aplicação do preceituado no n.º 1 tudo o que especificamente respeita às actividades estranhas aos fins de solidariedade social”.
Definido o complexo normativo do direito interno português que prevê e regulamenta a existência e actividade das irmandades da Misericórdia enquanto associações de solidariedade social, importa apelar às demais realidades jurídicas em que as mesmas se inserem e que prevêem também a sua regulamentação jurídica.
Inicie-se então esse percurso pelo Código de Direito Canónico, promulgado pela Constituição Apostólica Sacrae Disciplinae Leges, em vigor a partir de 27 de Novembro de 1983, que, como inovação ao anterior Código, no âmbito das pessoas jurídicas canónicas, veio consagrar uma distinção entre pessoas jurídicas públicas e privadas.
De acordo com o Cân. 116, § 1.º, “pessoas jurídicas públicas são universalidades de pessoas ou de coisas constituídas pela competente autoridade eclesiástica para, dentro dos fins que lhes são prefixados, desempenharem, em nome da Igreja, de acordo com as prescrições do direito, o próprio encargo a elas confiado em vista do bem público; as demais pessoas jurídicas são privadas”.
A Conferência Episcopal, reunida em 15.11.1989, em Fátima, elaborou e emitiu um documento que designou por “Declaração Conjunta dos Bispos sobre a dimensão pastoral e canónica das Misericórdias Portuguesas”, constando do seu ponto 4 o seguinte:
“Nesta conformidade e tendo em conta: que a Autoridade Eclesiástica interveio, habitualmente, na existência e acção das Irmandades da Misericórdia através de actos jurídicos; que as Misericórdias têm, na sua maior parte erecção canónica e Estatutos aprovados pelo Ordinário diocesano; que mantêm culto público em igrejas e capelas próprias com capelão nomeado; que continuam a dedicar-se a actividades de pastoral social de grande alcance; que muito há a esperar de cada Santa Casa da Misericórdia e do seu conjunto, bem como da acção das Misericórdias Portuguesas, a Conferência Episcopal Portuguesa, sem esquecer a fisionomia própria das Misericórdias, criada através da história, e desejando que elas a conservem, considera as Misericórdias Portuguesas Associações Públicas de Fiéis, com os benefícios e exigências que lhes advêm do regime do Código de Direito Canónico, especialmente nos cânones 301 e seg.s e 312 e seg”.

Determina o Can. 323, no seu §1, que «Embora as associações privadas de fiéis gozem de autonomia, de acordo com o Cân. 321, estão sujeitas à vigilância da autoridade eclesiástica, de acordo com o Cân. 305, bem como ao governo desta autoridade”, prescrevendo este último: “§ 1. Todas as associações de fiéis estão sujeitas à vigilância da autoridade eclesiástica competente, à qual cabe cuidar que nelas se conserve a integridade da fé e dos costumes e velar para que não se introduzam abusos na disciplina eclesiástica, cabendo-lhe, portanto, o dever e o direito de visitar essas associações, de acordo com o direito e os estatutos; ficam também sujeitas ao governo dessa autoridade, de acordo com as prescrições dos cânones seguintes.
§ 2. Estão sujeitas à vigilância da Santa Sé as associações de qualquer género; e à vigilância do Ordinário local, as associações diocesanas e outras associações, enquanto exercem actividade na diocese”.
Ou seja: “tais associações encontram-se sujeitas à vigilância e à dependência da autoridade eclesiástica, nos termos dos cânones 305º e 323º do CDC”[4].
Daí decorre que todas as associações de fiéis estão sujeitas à vigilância da autoridade eclesiástica competente, ideia que é reafirmado pelo artigo 11.º das “Normas Gerais para Regulamentação das Associações de Fiéis”, aprovadas pela Conferência Episcopal Portuguesa e publicadas para entrarem de imediato em vigor em 15.3.1988, sujeitando a tais normas gerais – agora já no artigo 116.º § 1.º - todas as associações de fiéis, quer existentes antes do actual Código de Direito Canónico, quer surgidas depois, sendo que, em conformidade com o disposto no § 2.º do artigo 41.º as associações de fiéis podem ser, no plano civil, instituições particulares de solidariedade social.
Retira-se do acórdão desta Relação, de 23.11.2010, já citado, subscrito pela aqui relatora, nele na qualidade de adjunta: “uma interpretação que se afigura adequada para estas disposições, como forma de estabelecer o convívio entre o poder de direcção dos fiéis e a autonomia das associações, por um lado, e o poder de vigilância e governo da autoridade eclesiástica, por outro, consistirá em as associações serem autónomas enquanto procederem de acordo com os seus fins estatutários, mas ficarem sujeitas à intervenção da autoridade eclesiástica quando alguma das respectivas acções ou deliberações se desvie desses mesmos fins, sem que, porém, a tutela canónica execute ela mesma quaisquer acções, sendo a sua função apenas a de impedir que sejam levadas a cabo acções tidas como desadequadas aos seus fins”[5].
Dispõe ainda o Código de Direito Canónico:
Cân. 306 - “Para que alguém possa gozar dos direitos e privilégios, das indulgências e outras graças espirituais concedidas a uma associação, é necessário e suficiente que, segundo as prescrições do direito e dos estatutos da associação, seja nela validamente recebido e dela não seja legitimamente demitido”.
Cân. 307 § 1 - “A recepção dos membros será feita de acordo com o direito e os estatutos de cada associação.
§ 2. A mesma pessoa pode inscrever-se em várias associações.
§ 3. Os membros de institutos religiosos podem inscrever-se em associações, de acordo com o direito próprio e com o consentimento do Superior”.
Cân. 308 - “Ninguém, legitimamente inscrito, seja demitido da associação, a não ser por justa causa, de acordo com o direito e os estatutos”.
Cân. 309 - “Compete às associações legitimamente constituídas, de acordo com o direito e os estatutos, estabelecer normas particulares relativas à associação, realizar reuniões, designar os moderadores, os oficiais, os funcionários e os administradores dos bens”.
Por seu turno, o n.º 1 do artigo 2.º da Concordata estabelece que “a República Portuguesa reconhece à Igreja Católica o direito de exercer a sua missão apostólica e garante o exercício público e livre das suas actividades, nomeadamente as de culto, magistério e ministério, bem como a jurisdição em matéria eclesiástica”, enquanto do seu nº 4 resulta: “é reconhecida à Igreja Católica, aos seus fiéis e às pessoas jurídicas que se constituam nos termos do direito canónico a liberdade religiosa, nomeadamente nos domínios da consciência, culto, reunião, associação, expressão pública, ensino e acção caritativa.
Segundo o n.º 2 do artigo 10.º do mesmo diploma legal, “o Estado reconhece a personalidade das pessoas jurídicas referidas nos artigos 1.º, 8.º e 9.º nos respectivos termos, bem como a das restantes pessoas jurídicas canónicas, incluindo os institutos de vida consagrada e as sociedades de vida apostólica…”, estabelecendo o n.º 1 do artigo 11.º que “as pessoas jurídicas canónicas reconhecidas nos termos dos artigos 1.º, 8.º, 9.º e 10.º regem-se pelo direito canónico e pelo direito português, aplicados pelas respectivas autoridades, e têm a mesma capacidade civil que o direito português atribui às pessoas colectivas de idêntica natureza”.
Finalmente, dispõe o artigo 12.º da mesma Concordata que “as pessoas jurídicas canónicas reconhecidas nos termos do artigo 10.º, que, além de fins religiosos, prossigam fins de assistência e solidariedade, desenvolvem a respectiva actividade de acordo com o regime jurídico instituído pelo direito português e gozam dos direitos e benefícios atribuídos às pessoas colectivas privadas com fins da mesma natureza”.
Deste acervo normativo, resulta patenteado que em Portugal:
“(a) O Estado Português reconhece a existência de uma ordem jurídica canónica e à Igreja Católica o exercício da respectiva jurisdição.
(b) O Estado Português reconhece a existência de pessoas jurídicas constituídas nos termos do direito canónico.
c) O Estado Português reconhece que as pessoas jurídicas canónicas se rejam pelo direito canónico e pelo direito português, aplicados pelas respectivas autoridades.
d) As pessoas jurídicas canónicas que prossigam fins de assistência e solidariedade têm de desenvolver a respectiva actividade de acordo com o regime jurídico instituído pelo direito português”[6].
A apelada, de acordo com o artigo 1º, nº1 do seu “Compromisso”, já mencionado, é uma “associação de fiéis, constituída na ordem jurídica canónica”, estando, como tal, sujeita à jurisdição canónica, subordinando-se às suas normas.
Na acção proposta pelos ora apelantes contra a apelada pretendem aqueles, como já se deixou narrado no relatório que introduz esta decisão, que seja declarada nula e de nenhum efeito a destituição dos corpos gerentes eleitos para o triénio de 2005/2007 e, em consequência, declarada nula e de nenhum efeito a nomeação da Comissão Administrativa e todos os actos por si praticados até à Assembleia-Geral de 29 de Março de 2009; bem como ser declarada nula e de nenhum efeito a deliberação eleitoral da Assembleia-Geral da Ré de 29 de Março de 2009 ou, subsidiariamente, se assim não se entender, ser anulada a aludida deliberação.
Conforme alegado na petição inicial, designadamente, nos seus artigos 10º e 11º, a destituição daqueles corpos gerentes ocorreu no decurso de uma Assembleia Geral da apelada, realizada no dia 30.11.2007, por Decreto do Bispo da Diocese da ..., tendo sido nomeada uma Comissão Administrativa.
As providências que os apelantes visam alcançar com a propositura da acção aqui em causa, como resulta da respectiva causa de pedir, não emergem directamente de factos ocorridos na preparação, decurso ou apuramento de resultados de actos eleitorados, antes se focaliza numa situação prévia: a destituição, que os apelantes reputam de ilegal, dos órgãos sociais da apelada, ordenada pelo Bispo da ..., bem como a deliberação eleitoral tomada na Assembleia Geral de 29 de Março de 2009[7].
É neste confronto de interesses, ou mesmo de conflito, ocorridos no seio da Misericórdia do ..., que envolve actos de uma autoridade eclesiástica, de órgão social da apelada e de alguns dos fiéis associados que deve, pois, ser equacionada a questão da jurisdição materialmente competente para a resolução do litígio aqui desenhado e que envolve, repete-se, relações internas daquela Misericórdia.
Da análise do regime legal consagrado nos Decretos - Lei nº 519-G2/79 e, posteriormente, nº 119/83, designadamente, nos seus artigos 69º e 48º, respectivamente, bem como o constante da Concordata, ressalta que a apelada Misericórdia, pessoa jurídica constituída sob a égide da ordem jurídica canónica, rege-se pela ordem jurídica interna portuguesa quando estejam em causa factos relativos à actividade por ela desenvolvida no âmbito da prossecução dos fins de assistência e solidariedade, que também lhe estão cometidos, e pela ordem jurídica canónica quando os factos respeitem aos demais aspectos da sua actividade, desde que os mesmos encontrem previsão no sistema normativo desta ordem jurisdicional.
A questão em debate na acção proposta pelos ora apelantes encontra resposta na ordem jurídica canónica, pelo que, não existindo lacuna nesse âmbito, competirá a esta a sua apreciação e resolução.
Como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17.12.2009[8], “Face ao preceituado nos arts. 10,11 e 12 da Concordata de 2004, não se situa no âmbito da jurisdição dos tribunais portugueses a dirimição de litígios situados na vida interna de pessoas jurídicas canónicas, regidos pelo Direito Canónico, aplicado pelos órgãos e autoridades do foro canónico que exerçam uma função de vigilância e fiscalização sobe as mesmas; os tribunais portugueses apenas são competentes para a aplicação dos regimes jurídicos instituídos pelo direito português - nomeadamente no DL119/83, que institui o regime das Instituições Particulares e Solidariedade Social – quanto às actividades de assistência e solidariedade, exercidas complementarmente pelas pessoas jurídicas canónicas”.
Ainda de acordo com a doutrina acolhida pelo Acórdão do mesmo Tribunal de 10.07.85[9], “sem prejuízo da tutela do Estado, que se manifesta, além de outros modos, através da sua intervenção nos actos discriminados no artº 32° e ss. do Estatuto (aquisição e alienação de bens, empréstimos, realização de inquéritos, sindicâncias e inspecções, destituição dos gerentes por actos reiterados de gestão prejudicial, requisição de bens para utilização em fins idênticos, etc.), as instituições da Igreja Católica - assim se acolhendo as prescrições do Código de Direito Canónico - estão submetidas à tutela da autoridade eclesiástica que, no tocante às que tenham âmbito diocesano, é exercida pelo competente Ordinário, o qual as orienta, aprova os seus corpos gerentes e os relatórios e contas anuais (artigo 48°)"[10].
Na mesma linha de entendimento se enquadra o Acórdão da Relação do Porto, de 27.04.2009, ao sustentar: “as condições das candidaturas, idoneidades dos seus membros, as irregularidades e vícios da convocação vícios, como a aprovação das suas decisões, etc., no que respeita à eleição dos corpos gerentes de uma Misericórdia, como problema interno dessa instituição, compete ao Ordinário Diocesano, como autoridade eclesiástica.
- Não cabe aos tribunais judiciais, por serem materialmente incompetentes, a preparação e julgamento das irregularidades, vícios de convocação, oportunidade de marcação, da assembleia-geral da Misericórdia, por respeitarem à eleição dos corpos gerentes dessa instituição”.

Daí a necessária conclusão da incompetência material dos tribunais portugueses para a resolução do litígio traduzido na acção proposta pelos apelantes no Tribunal Judicial do Fundão, não merecendo, por conseguinte, reparo a decisão recorrida ao julgar procedente a excepção da incompetência absoluta, em razão da matéria, daquele Tribunal para conhecer do objecto da acção nele proposta.

Síntese conclusiva:
- Considerando o disposto nos artigos 44.º a 51.º, 68.º a 70.º do Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de Fevereiro, e artigos 1.º, 8.º a 12.º da actual Concordata (2004) celebrada entre o Estado Português e a Santa Sé, a Irmandade da Santa Casa da Misericórdia é tida como pessoa jurídica constituída na ordem jurídica canónica, rege-se pela ordem jurídica portuguesa nos aspectos específicos inerentes ao desenvolvimento da sua actividade de prossecução de «fins de assistência e solidariedade» e pela ordem jurídica canónica quanto aos demais aspectos da sua actividade, desde que os mesmos se reportem a normas da ordem jurídica canónica.
- Os tribunais judiciais são incompetentes em razão da matéria para apreciarem a legalidade da destituição dos órgãos sociais da Santa Casa da Misericórdia decidida por autoridade eclesiástica (Bispo da Diocese competente), bem como deliberação eleitoral tomada em Assembleia Geral da mesma Misericórdia.
*
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.

Custas: pelos apelantes.


Judite Pires (Relatora)


[1] Artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do C.P.C., na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 4 de Agosto.
[2] Artigo 664º do mesmo diploma.
[3] Acórdão desta Relação de 23.11.2010, processo nº 98/09.6TBSRT.C1, www.dgsi.pt.
[4] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 17.12.2009, processo nº 743/08.0TBABT-A.E1.S1, www.dgsi.pt.
[5] Já o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.04.2007, processo nº 07B723, www.dgsi.pt considera as Misericórdias como instituições integrantes da ordem jurídica canónica como associações de fiéis públicas, que visam – enformadas pelos princípios da doutrina e moral cristãs – satisfazer carências sociais e praticar actos de culto católico, tendo, na ordem jurídica civil, a natureza de instituições particulares de solidariedade social.
[6] Citado acórdão da Relação de Coimbra de 23.11.2010.
[7] Cfr. artigo 36º da petição inicial.
[8] Processo nº 743/08.0TBABT-A.E1.S1, www.dgsi.pt.
[9] Citado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17.02.2005, processo nº 05B116, www.dgsi.pt.
[10] Cfr. ainda Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27.01.2005, processo nº 04B4525, www.dgsi.pt.