segunda-feira, 30 de novembro de 2009

O frade que é uma fraude histórica

O frade que é uma fraude histórica
por Licínio Lima

A Avenida Frei Miguel Contreiras existe. É uma transversal à Avenida de Roma onde está situado o Teatro Maria Matos. A atribuição foi deliberada pela Câmara de Lisboa em 1955, em homenagem ao frade espanhol que, segundo a História de Portugal, fundou a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa em 1498, juntamente com a rainha D. Leonor. Esta versão, porém, é uma pura mentira. Aquele frade é uma fraude, concluíram agora os investigadores, garantindo que tal pessoa nunca existiu.

A história também mente, gerando lendas e mitos que baralham a realidade. Isto aconteceu em Portugal em finais do século XV e inícios do século XVI. Conta a História oficial, em manuais e enciclopédias, que frei Miguel Contreiras, frade espanhol da Ordem da Santíssima Trindade, falecido em 1505, foi o grande instituidor e primeiro provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, fundada em 1498. As crónicas asseguram que, sendo confessor da rainha D. Leonor, e uma figura venerada por todos em Lisboa, a quem o povo chamava «o apóstolo dos pobres», a ele se deveu a motivação da monarca para erigir a histórica instituição de assistência aos mais carenciados – ainda hoje viva e pujante.
Para os portugueses tudo isto é tão real que, em 1955, a Câmara de Lisboa deliberou atribuir ao frade trinitário não uma simples rua ou calçada, mas uma avenida, numa das mais importantes artérias da capital, transversal à Avenida de Roma, onde se situa o Teatro Maria Matos – a Avenida Frei Miguel Contreiras.
Mas, ao contrário da patrona do teatro, que na realidade existiu, e muitos documentos o comprovam, o frade nunca existiu.
«A verdade é que, documentalmente, frei Miguel não existe, não sobrevivendo sequer em qualquer memória impressa ou manuscrita anterior a 1574-1575», garante Ivo Carneiro de Sousa no seu trabalho académico Da Descoberta da Misericórdia à Fundação das Misericórdias (1498-1525), apresentado quando da sua agregação à Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Segundo este investigador, as primeiras referências documentais sobre o frade, que levaram os historiadores a crer na sua existência, aparecem somente a partir de 1574. Ou seja, quando haviam passado já 76 anos desde a fundação da Santa Casa.
No mesmo sentido aponta o Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR) da Universidade Católica Portuguesa que anda há 12 anos a reunir toda a documentação sobre a história das Misericórdias. Na introdução do Volume 3 da Portugaliae Monumenta Misericordiarum – coordenado pela historiadora Isabel dos Guimarães Sá, professora na Universidade do Minho, pode ler-se: «Impõem-se algumas considerações finais sobre duas questões que a documentação aqui reunida esclarece pela negativa, isto é, pela ausência de referências que lhe são feitas.» E especifica-se: «Em primeiro lugar, a inexistência de qualquer menção à figura de frei Miguel Contreiras em todo o espólio reunido. A ter existido, e a ter tido qualquer intervenção relevante neste campo, o trinitário não deixou qualquer rasto na documentação coeva, o que é, pelo menos, estranho.» A segunda questão levantada naquele volume, sem interesse para este trabalho jornalístico, é relativa ao real papel da rainha na fundação da Misericórdia de Lisboa.

Estranho silêncio
«Estranho» é a expressão usada pelo CEHR para referir a inexistência documental do frade. Porém, pode perguntar-se: estará esta ausência de documentação relacionada com o seu carácter, tendo-se oposto, por humildade, à menção do seu nome em documentos?
A hipótese é absurda. Mas, a ser possível, teriam de existir referências noutros lados, nomeadamente nos escritos da rainha D. Leonor. «Conseguimos nos nossos diferentes trabalhos identificar dezenas e dezenas de colaboradores religiosos da monarca, incluindo os seus principais confessores – franciscanos, lóios, alguns bispos – mas nunca se encontrou a mínima referência a qualquer frei Miguel Contreiras», garante Ivo Carneiro de Sousa, que adianta: «Com efeito, toda a extensa documentação que temos vindo a resumir e a estudar em torno de D. Leonor nunca identificou qualquer colaborador da rainha próximo da figura do frade trino.»
Embora sem referências em Portugal, pode, porém, admitir-se a existência nos arquivos da Ordem da Santíssima Trindade, fundada em Marselha, em 1198, de que frei Miguel, alegadamente, era membro.
Mas nem aqui a questão se resolve. E descobriu-se isso de forma curiosa.
Era o ano de 1997. Na União das Misericórdias Portuguesas (UMP) preparava-se a celebração do quinto centenário da fundação de várias Santas Casas contemporâneas da de Lisboa. Foi quando Manuel Ferreira da Silva, actual responsável pelo centro de documentação da instituição, director e fundador do jornal Voz das Misericórdias, recebeu uma carta de um frade trinitário que, em Roma, preparava uma tese de doutoramento sobre a história da Ordem da Santíssima Trindade.
Nessa missiva, conta Ferreira da Silva, o frade, de nome Pedro Alíaga, explica que ao passar por Ceuta reparou que num dos conventos da sua Ordem havia referências a umas «possessiones» da Misericórdia de Lisboa. E pergunta: «Existe ainda esta Misericórdia? Pode enviar-me alguma documentação?» Ferreira da Silva, surpreendido, diz-lhe que a Santa Casa de Lisboa não só está viva, e pujante, como na sua génese prima um seu antigo confrade, de nome frei Miguel Contreiras, e conta-lhe a circunstância de este ter sido o confessor da rainha D. Leonor, etc., recitando a História de Portugal. Com a resposta, enviou-lhe também o livro que acabara de escrever a propósito do quinto centenário: Rainha D. Leonor e as Misericórdias Portuguesas, com mais informação.
Frei Alíaga voltou ao assunto passados uns tempos. Na sua segunda missiva já garantia que havia vasculhado os arquivos dos frades trinos em Roma, em que constam os nomes de todos os membros da ordem, desde a fundação, e que sobre frei Miguel Contreiras nenhuma referência encontrara. E pergunta: «Quem é esse frade?»
O director do Voz das Misericórdias, na altura com 77 anos – hoje tem 90 –, pensou que do outro lado estaria algum brincalhão. Mas um pormenor chamou-lhe a atenção. Frei Alíaga enviara-lhe também um livro sobre a história da Ordem da Santíssima Trindade, com artigos de vários autores, incluindo alguns portugueses, e verificou que em nenhum deles se faz qualquer menção nem a Portugal nem à Misericórdia de Lisboa. Neste sentido, questionou: «Será que os frades trinos quiseram apagar Contreiras da sua memória?»
Demonstrado o vazio em Roma, sobrava ainda uma hipótese. E em Espanha, nomeadamente em Valência, onde se diz que o frade trino terá nascido, haverá alguma referência à sua pessoa?
Isabel dos Guimarães Sá, que escreveu o livro Quando o Rico Se Faz Pobre: Misericórdias, Caridade e Poder no Império Português – 1500-1800, é taxativa: «A contribuição real de frei Miguel Contreiras para a criação da Misericórdia de Lisboa é desconhecida. De concreto, sabemos muito pouco acerca desta figura: que seria castelhano e que pertencia à Ordem da Trindade. Foi pelo menos o que ficou a constar; mas sem quaisquer provas documentais a confirmar. Nem nos arquivos da Ordem Trinitária em Espanha.»
Os historiadores já praticamente abandonaram a hipótese de que frei Miguel tenha existido. Mas há uma excepção. Veríssimo Serrão, catedrático da Universidade de Coimbra e ex-presidente da Academia Portuguesa de História, no seu livro sobre a Misericórdia de Lisboa, de 1998, mantém vivo e intacto o frade espanhol. O historiador apresenta-o fiel à tradição, convencido da sua existência. Foi com essa mesma convicção que a Câmara de Lisboa o colocou na toponímia em 1955.
Na UMP, porém, havia dúvidas, e estava em marcha a celebração do pentacentenário de várias Santas Casas. O padre Vítor Melícias, que então presidia à instituição, e que também já havia sido provedor da Misericórdia de Lisboa, solicitou ao CEHR da Universidade Católica que fizesse o levantamento de toda a documentação disponível sobre as Misericórdias portuguesas. Esse trabalho está hoje bastante adiantado – já vai em sete volumes – e uma das conclusões é precisamente esta: «Não há documentos que comprovem a existência de frei Miguel Contreiras.» As investigações de Ivo Carneiro de Sousa vão no mesmo sentido: «A respeito de Contreiras nada existe de concreto, de real e verdade confirmada, que nos permita redigir a seu respeito uma certidão de óbito.» Em suma, segundo os investigadores, nenhum documento existe a comprovar que Contreiras tenha estado ligado à fundação da Misericórdia de Lisboa, em 1498, ou que tivesse sido o seu primeiro provedor, ou que fora uma figura próxima da rainha D. Leonor.

A necessidade de um mito
Quem inventou, então, frei Miguel Contreiras? Como foi possível que a lenda tenha invadido a investigação académica ao ponto de a história a assumir como verdade até hoje?
Tudo tem explicação. Naquele tempo existia em Portugal uma instituição religiosa chamada Ordem da Santíssima Trindade, fundada em Marselha em 1198. Depois de se instalarem em Espanha, os frades, em 1207, trouxeram-na para Portugal. Resgatar cativos era a missão específica que o papa lhes atribuíra desde o início. Em época de conquistas e descobrimentos, muita gente ficava presa em reinos de aquém e de além-mar, muitas vezes às mãos de corsários. Para alguns, só a troco de dinheiro era a liberdade conseguida. Assim, quando se anunciava a possibilidade de resgatar alguém, logo os frades promoviam peditórios pelas ruas de Lisboa até conseguirem o montante necessário. Por cada cativo pagavam, em média, 350 patacas e, por vezes, 410. D. Sebastião, em documento de 16 de Maio de 1561, chegou mesmo a conferir-lhes o exclusivo dos resgates em terra de muçulmanos.
Em meados do século XVI já as Misericórdias estavam espalhadas pelo país e com uma forte dinâmica de gestão no campo da solidariedade social. Nos reinados de D. Sebastião e do cardeal D. Henrique, recorde-se, foi-lhes atribuída, nomeadamente, a administração dos hospitais civis. Assim, foram deixando de ser «corporações de mão-morta» – cujo único rendimento, por lei, só poderia advir das esmolas. Aos poucos foram-se transformando em instituições jurídicas com competência para gerir bens. No início da segunda metade do século XVI, o seu poder económico e de influência chamava a atenção.
Nessa época, os trinitários encontravam-se mergulhados numa crise. Os cativos eram cada vez menos, e a sua credibilidade junto da população também não era a melhor. Candidatos a frades trinitários quase não existiam. Ivo Carneiro de Sousa conta que o próprio poder central, já no tempo de D. João II, quis «estatizar» a remissão dos cativos, chegando mesmo a criar uma provedoria para esse efeito. A Misericórdia quis também, a certa altura, assumir essa provedoria, e fazia pressão para que isso acontecesse. Os frades encontravam-se, pois, sem perspectivas de futuro. Nem a benesse de D. Sebastião foi suficiente para os revigorar.
No meio da aflição, os responsáveis trinitários apelavam ao papa para que lhes restituísse a total administração e encargo dos cativos. Mas sem êxito. A Ordem corria o perigo de se extinguir em Portugal.

A invenção de um nome
Corria o ano 1574 – 76 anos depois da criação da Santa Casa – e, estando os frades mergulhados na crise, o então responsável pela Ordem da Trindade em Portugal, frei Bernardo da Madre de Deus, enviou uma representação à Misericórdia de Lisboa com dois pedidos concretos: primeiro, que a figura de frei Miguel Contreiras voltasse a ser pintada nas suas bandeiras, justificando-se que se tratava de um «antigo costume» caído em desuso com o tempo; segundo, que a pintura do frade passasse a constar em todas as caixas de esmolas da Santa Casa espalhadas pelas igrejas da cidade.
Os responsáveis da confraria ficaram surpreendidos. Na resposta, garantem que nunca tinham ouvido falar de tal frade nem em tais desenhos.
Mas frei Bernardo não desarmou. Em seguida, recorre ao bispo de Lisboa, D. Jorge de Almeida, e, num verdadeiro golpe de génio, pede-lhe autorização para formar aquilo a que hoje chamaríamos tribunal arbitral. O objectivo era inquirir testemunhas que tivessem ouvido falar de Contreiras e do seu papel na fundação da Misericórdia, com vista a provar a sua existência.
Os requerimentos à Misericórdia e ao bispo eram sempre devidamente fundamentados. Frei Bernardo «defendia, em termos concretos, que havia sido “frei Miguel Contreiras, mestre em a Sagrada Teologia, primeiro e principal que instituiu esta santa irmandade”, como se provava, a seu ver, pela vetusta tradição de o representar e identificar nas bandeiras da confraria», conta Ivo Carneiro de Sousa.
Com os argumentos, frei Bernardo enviava também elementos biográficos. Frei Miguel era descrito como frade e prior do Convento da Trindade situado junto à muralha de Lisboa, em São Roque, onde teria chegado aos 56 anos, vindo de Espanha, e onde falecera em 1505. Era ainda referido como percorrendo habitualmente as ruas de Lisboa, sempre acompanhado por um anão e por um jumento, esmolando caritativamente para presos e doentes, enquanto a população, «ao ver passar tão piedosa figura», parava, exclamando: «Aí vai o apóstolo de Lisboa, o pai dos pobres, o amparo das órfãs, o remédio de todos.» Nessas mesmas notas, o frade surgia como um pregador importante devido aos seus sermões na Sé e noutras igrejas, privando com os grandes de Portugal, mas vivendo entre os pobres e indigentes. Confessava toda a gente e acompanhava os defuntos até à sepultura. Terá morrido aos 74 anos e - segundo frei Bernardo – esse facto provocou uma geral comoção na cidade. Naquele mesmo convento terá sido enterrado, em campa rasa, sem grandes honras, como um pobre. O convento desapareceu no terramoto de 1755.
Estes memorandos biográficos eram divulgados à medida que iam sendo escritos. Mas a bandeira, em que alegadamente o «apóstolo de Lisboa» teria estado desenhado, era, quase em exclusivo, a grande prova da sua existência. Era neste pormenor que frei Bernardo insistia.
Ivo Carneiro de Sousa explica que todas as irmandades, inclusive as que já vinham da Idade Média, possuíam uma bandeira, o estandarte da instituição, adornada com uma iconografia muito genérica. Geralmente apresentavam uma imagem da Virgem Maria com um largo manto que a todos acolhia. De um lado, aparecia o poder espiritual – papa, cardeais, bispos… –, do outro, o poder temporal – imperador, rei, rainha, etc.
«Algumas bandeiras quinhentistas exibiam, de facto, uma pequena legenda com as iniciais F.M. – e não o trigrama F.M.I. – que podemos acreditar quererem dizer simplesmente Fraternitate Misericórdiae (Irmandade da Misericórdia). A inscrição encontra-se em alguns desenhos e iluminuras ligados às Misericórdias portuguesas e que julgamos seguir de perto a iconografia das bandeiras de outras companhias da Misericórdia, como por exemplo a de Florença [Itália]», esclarece o professor do Porto, assegurando que nunca ninguém demonstrou que tivesse existido o desenho de frei Miguel na primeira bandeira da Misericórdia de Lisboa, tal como defendeu o responsável dos trinitários.

A violação da história
Mas perante a insistência dos frades, que já tinham envolvido o bispo de Lisboa na contenda, e face à acumulação dos dados biográficos que iam recebendo, os responsáveis da Santa Casa, ainda em 1574, decidiram formar uma comissão para analisar o pedido de frei Bernardo. O grupo de trabalho foi formado por 12 membros da irmandade: seis nobres e seis artistas.
Entretanto, foi também criado o tribunal proposto ao bispo de Lisboa, tendo sido arroladas 18 testemunhas. Pouco credíveis, segundo Ivo Carneiro de Sousa. «Todas as testemunhas do processo eram ou trinos ou pessoas indicadas pelo próprio frei Bernardo, não tendo apresentado qualquer prova documental a comprovar as pretensões defendidas pelo provincial, testemunhando apenas alguns dos intervenientes “ouvirem dizer” que nas bandeiras primitivas da Misericórdia de Lisboa se encontrava pintado um frade da Trindade», conta o professor, que observa ainda: «Das 18 testemunhas inquiridas só quatro tinham ouvido falar de Contreiras, nomeando-o de formas diversas: Mestre Miguel, Castelhano, Frei Miguel de Valença ou, simplesmente, Frei Miguel.» Mas apesar de os testemunhos serem difusos, os pormenores biográficos que iam surgindo eram concretos. Biografia essa que invadiu a história e a investigação. A figura do frade acompanhado do jumento e do anão chegou, como sendo facto real, até aos nossos dias.

A facada na história
Aqueles apontamentos biográficos acabaram por produzir algum efeito. A 15 de Setembro de 1576, dois anos após a detonação da polémica, a comissão de seis nobres e seis artistas decide então aceitar a tese de frei Bernardo. Que pressões estiveram por detrás de tal decisão? Ninguém sabe…
O certo é que, a partir daquela data, as bandeiras da Misericórdia passaram a exibir um rei e uma rainha, em memória de D. Manuel e D. Leonor, «como primeiros irmãos da irmandade», e um «religioso da Santíssima Trindade, grave, velho e macilento, de joelhos e mãos levantadas com estas letras: F.M.I. – que querem dizer “Frei Miguel Instituidor”». Mais tarde, frei Bernardo viu também satisfeito o seu outro pedido: todas as caixas das esmolas da irmandade, espalhadas pelas igrejas da cidade, passaram a estar pintadas com um frade trino.
A comissão da Santa Casa justificou a sua decisão frisando que, além de «mestre em a sagrada Teologia», frei Contreiras foi também, note-se, «confessor da Augustíssima Rainha D. Leonor». Ora, nunca antes frei Bernardo referira, em lado algum, que o frade espanhol havia sido confessor da monarca. Este acrescento, que invadiu depois a investigação histórica, terá sido como que uma «saída airosa» perante a pouca consistência da tese da bandeira. A Misericórdia, com aquela decisão, proclama Contreiras como «instituidor» da irmandade de Lisboa, lembrando que desta, «como de fonte, manaram todas as demais do Reino» – lê-se no decreto. A maior mentira da história acabara de ser desenhada. A figura da rainha D. Leonor, enquanto verdadeira fundadora da Santa Casa, fora «assassinada».

A consolidação espanhola
Entretanto, a partir de 1580, Portugal passou a ser governado de Madrid, com a entrada em cena dos reis Filipes de Espanha. Os monarcas, com agrado, viram a pujança das Misericórdias, já espalhadas por todo o país, enaltecendo o facto de na sua génese ter estado um concidadão espanhol.
Os frades trinos, por seu lado, mantinham aceso o objectivo de abandonar a remissão dos cativos, que esteve na génese da sua criação, e que já quase não fazia sentido, além de não dar lucro, para se dedicarem à gestão de obras de caridade. Assumir o controlo da Misericórdia de Lisboa seria o seu objectivo. Mas a mudança de carisma só era possível mediante uma autorização papal. O reconhecimento de frei Miguel como instituidor da Santa Casa de Lisboa, que já haviam logrado em 1576, foi um importante passo para figurar como elemento justificativo nos requerimentos enviados ao papa. Com a vinda dos Filipes, e tendo em conta a nacionalidade do frade, foi fácil para a Ordem da Trindade obter mais apoios para a sua causa.
Foi neste contexto que, a 26 de Abril de 1627, «Filipe III obrigou todas as Misericórdias do Reino a pintarem as suas bandeiras seguindo o modelo do pendão da confraria-mãe de Lisboa», conta Ivo Carneiro de Sousa. A partir daquela data, o F.M.I. cravado nas bandeiras alargou-se a todas as Santas Casas. Com aquele gesto, o rei dizia ao país e ao mundo, e ao Vaticano, que foi um frade espanhol da Ordem da Santíssima Trindade o grande fundador das Misericórdias.
Esta deliberação, porém, foi vista como uma imposição, uma afronta, espanhola. Por isso, com a Restauração, em 1640, e expulsos os espanhóis de Portugal, a maior parte das Misericórdias retirou o F.M.I. das suas bandeiras.
Com esta reviravolta política, o ataque dos trinitários à Misericórdia de Lisboa também desapareceu. Mas, sem nunca abandonar as teses de frei Bernardo. Para os frades portugueses da Ordem da Santíssima Trindade, frei Miguel passou a ser uma figura real que os ligava à génese da Misericórdia de Lisboa, mantendo todos os ingredientes biográficos inventados em 1574.
Uma das representações mais completas e pormenorizadas da fundação da Misericórdia de Lisboa surge nas páginas do célebre Santuário Mariano, da autoria de frei Agostinho de Santa Maria. A obra, escrita em 1707, apresenta Contreiras como primeiro provedor da Misericórdia de Lisboa e co-autor dos estatutos (Compromisso), sendo descrito com todas as virtudes de «santo e venerado varão». Frei Bernardo conseguira criar uma lenda chamada frei Miguel Contreiras.

A consagração histórica
Chegados aos fins do século XIX, e com a ascensão da maçonaria em Portugal, rebenta o debate sobre o papel da Igreja no seio das Misericórdias. Os iluminados da Revolução Francesa laicizante defendiam que a Misericórdia deveria ser separada da confraria. Esta poderia continuar dedicada aos serviços religiosos, enquanto a Misericórdia, gerida pela sociedade civil, se dedicaria aos serviços de apoio social – gestão de hospitais, assistência aos pobres, etc., independente da Igreja.
Estando este debate no ar, Costa Goodolphim escreveu em 1897 a obra As Misericórdias, fazendo a apologia da ligação da Igreja às Santas Casas, desde a sua génese. Com uma tese antilaicista, ou antimaçónica, em defesa dos valores cristãos, e tendo como principal fonte histórica frei Agostinho de Santa Maria, Goodolphim apresenta Contreiras como tendo sido «a alma, a cabeça pensante» daquelas instituições. Na mesma altura surgiram uma série de artigos da autoria de Vítor Ribeiro intitulados «Exemplos de bem: frei Miguel Contreiras». Este autor, assim como Costa Goodolphim, «exultam a figura do frade trino». O objectivo terá sido o de fundamentarem as raízes espirituais das Misericórdias, considera Ivo Carneiro de Sousa.
A invenção de frei Bernardo, já consolidada por frei Agostinho de Santa Maria, foi assim consagrada por Goodolphim e Vítor Ribeiro. Nunca ninguém colocou em dúvida a honestidade intelectual destes historiadores. Nem mesmo Veríssimo Serrão, em 1998.
Há, no entanto, uma excepção a que nunca ninguém ligou. Em 1932, Artur de Magalhães Basto escreveu a História da Misericórdia do Porto e, preto no branco, assume que frei Miguel Contreiras nunca existiu. O autor estudou a fundo os depoimentos das 18 testemunhas chamadas a tribunal por frei Bernardo, em 1574, cuja documentação continua disponível para os investigadores, tendo concluído o que agora a maioria dos historiadores já assume. Artur de Magalhães Basto, contudo, acabou por não ter qualquer impacte na historiografia. A sua tese foi vista como uma tentativa demagógica de enaltecer a Misericórdia do Porto em detrimento da de Lisboa.
A 9 de Agosto de 1939, o município da capital encomendou a Gustavo de Matos Sequeira uma história da cidade. A obra paga totalmente pela câmara, intitulada Carmo e a Trindade, volta a exaltar Contreiras, na linha de Gooldophim e de Vítor Ribeiro. «Frei Miguel era a providência dos pobres. Adoravam-no. Quando pregava na Igreja, enchia-se esta até à porta e transbordava até ao rossio da Trindade. Quando morreu, a populaça alfacinha pôs luto no coração», escreveu Gustavo de Matos Ferreira no primeiro dos três volumes da sua obra.
Foi citando este autor que a Câmara de Lisboa deliberou em 1955 atribuir o nome de uma avenida ao frade trinitário que a história consagrou como o grande instituidor das Misericórdias, mas que, na realidade, nunca existiu. Na luta pela sobrevivência, uma ordem religiosa inventou um espanhol para ser lenda na História de Portugal.

Retratos espalhados pelo mundo
Um enorme retrato de frei Miguel Contreiras permanece na sala da administração da Misericórdia de Lisboa. Trata-se de uma imagem pintada por Tomás da Conceição, a pedido do provedor Tomás de Carvalho. Pensa-se que terá sido uma cópia ampliada e melhorada a partir de um outro retrato pintado em 1776 por Carlos António Leonni que actualmente se encontra na Biblioteca Nacional. Desconhece-se que figura inspirou este último. Também no Brasil, onde actualmente existem cerca de cinco mil Misericórdias, nascidas a partir do exemplo da de Lisboa, se ergueu uma estátua de frei Miguel Contreiras. O testemunho público de homenagem ao frade encontra-se exposto no vestíbulo do Hospital da Misericórdia do Rio de Janeiro, mesmo ao lado da do padre Anchieta, o fundador daquela Santa Casa. Anchieta, o missionário jesuíta de origem espanhola, fundador da cidade de São Paulo e beatificado pelo papa João Paulo II em 1980, é uma figura venerada em todo o Brasil, que se estuda nas escolas do ensino básico. As estátuas estão lado a lado desde 1841.

A pujança das Misericórdias
A primeira Misericórdia portuguesa é a de Lisboa, nascida em 1498, com o impulso da rainha D. Leonor, viúva do rei D. João II, e do seu irmão o rei D. Manuel I. Ainda no tempo destes dois monarcas foram fundadas várias Misericórdias ao longo do país, nomeadamente as de Porto, Viseu e Braga, também a de Goa, na Índia, entre outras. Hoje existem cerca de quatrocentas em Portugal. No Brasil são mais de cinco mil. Em África são várias. Paris e Luxemburgo também as têm e estão activas. Há ainda uma Misericórdia na Ucrânia, e poderá brevemente nascer outra na Rússia. A de Lisboa é a única que, em Portugal, é do Estado e é gerida com o estatuto de fundação. Sempre que muda a cor política do governo muda também o provedor. As demais Misericórdias pertencem à Igreja, e os provedores são eleitos pelos irmãos em assembleia geral. A eleição tem de ser sempre ratificada pelo bispo da diocese correspondente. Tal como no século XIX, estando actualmente pujante a actividade das Misericórdias, que vivem na subsidiodependência do Estado, com muito dinheiro envolvido, e com dirigentes a saltarem das instituições do Estado para as Misericórdias, e vice-versa, conforme vão mudando os governos, há agora um movimento que pretende afirmar a autonomia dessas instituições face à Igreja. A Conferência Episcopal Portuguesa faltou à tomada de posse dos dirigentes que neste momento estão à frente da União das Misericórdias Portuguesas. O conflito está aberto.

«Julgo que é uma lenda»
VÍTOR MELÍCIAS, ex-presidente da União das Misericórdias Portuguesas
«Entendo que se deve aprofundar a investigação histórica sobre a matéria, embora dos últimos dados publicados pelos peritos vá resultando a convicção que, de facto, não há possibilidade de se ver uma prova inequívoca e cabal de que Frei Miguel tenha existido historicamente. Há dados no processo histórico que me causam as maiores reservas. O caso, por exemplo, de ser evocado que F.M.I., que vem referido em várias bandeiras, possa significar Frei Miguel Instituidor. Para mim, não parece ter o mínimo de fundamento. As insígnias das instituições tinham inscrito Fraternitatis Misericordiae Insigniam (Insígnia da Fraternidade da Misericórdia). Nada disto tem a ver com o velho senhor que seria representado na bandeira da Santa Casa de Lisboa. Mas, a verdade é que se transformou num mito. Alguns historiadores veicularam a convicção que ele teria, de facto, existido e que teria tido um papel importante na nobilização da solidariedade lisboeta em favor dos mais pobres. Muito disto julgo que é lenda, e não propriamente um mito. Seria importante aprofundar ainda mais a investigação histórica. E procurar critérios mais adequados para que de uma vez por todas se afira se Frei Miguel existiu ou não».

É uma fraude documental
ISABEL DOS GUIMARÃES SÁ, historiadora
«O historiador Artur de Magalhães Basto, no seu estudo sobre a Misericórdia do Porto, publicou uma série de documentos que punham em dúvida a existência de Frei Miguel. Com efeito, apresenta um processo cujos documentos se reportam aos anos de 1580-1590, posteriores em muito ao frade, supostamente confessor de D. Leonor (1458-1525). Na altura, esse processo destinava-se a apoiar uma pretensão de monopólio dos resgates de cativos no Norte de África por parte da ordem dos trinitários, que efectivamente tinha essa como sua especialidade, sendo que uma das concorrentes a essa actuação seria a Misericórdia de Lisboa. A existência do frade, castelhano, era muito conveniente, tanto mais que os reis de Portugal da altura eram os Filipes.
Magalhães Basto, um pouco contra a corrente mainstream, protagonizada pelo médico-historiador Fernando da Silva Correia, atreveu-se a negar portanto a existência do frade. Mais tarde, já na década de 80-90 do século XX, Ivo Carneiro de Sousa retomou o assunto, corroborando que na sua tese de doutoramento sobre D. Leonor o frade não aparecia na documentação. Ainda mais recentemente, a propósito de uma biografia da mesma rainha (a publicar em breve), continuo a não encontrar referencias ao frade, nem sequer a um frei Miguel. Tudo aponta portanto para que se trate de uma fraude documental ocorrida no final do século XVI, o que, à luz da feroz concorrência entre instituições, faz todo o sentido. Não se encontram vestígios documentais de Frei Miguel Contreiras. As buscas prosseguem no entanto, havendo até algum ‘sebastianismo’ em torno desta figura, que pode aparecer eventualmente na documentação. É pouco provável, tanto mais que ela não é muita, depois das perdas causadas pelo terramoto de 1755. Mas creio que ainda há quem procure. Em todo o caso, se o nome da rua de Lisboa é o problema, tem valor histórico mais por se reportar a uma época (o Estado Novo) do que propriamente validade científica. Continua a ser testemunho da ignorância dos políticos sobre os conhecimentos que a investigação histórica produz. Mas que Magalhães Basto fez um estudo muito sério da questão, não há como negar».

«O homem andou por aí»
VERÍSSIMO SERRÃO, historiador
«Há duas ou três notas sobre o aparecimento de Frei Miguel Contreiras. Se amanhã houver alguém que negue a veracidade dessas notas teremos de aceitar isso. Não posso jurar a pés juntos que Frei Miguel Contreiras tenha existido. Mas também não há nenhum interesse em mostrar que ele não existiu. Na altura, as pessoas da aristocracia tinham os seus confessores, os seus informadores. Os fenómenos de piedade, da reverência, eram muito ouvidos. Mas, de facto, não se conhece nada da vida de Miguel Contreiras, e as notícias sobre a sua existência são secundárias. Agora, não podia fazer um livro a pedido da provedora (Fernanda Mota Pinto) também negando logo essa ligação de frei Miguel à Misericórdia: que veio para Lisboa, quer era confessor da rainha D. Leonor, etc.. Não há nada que o afirme, mas também não há nada que o desminta. As enciclopédias mantêm o que diz a tradição. Não há nada que diga que se trata de uma ilusão ou de uma fantasia. Na Santa Casa existe um quadro do frade, tal como em muitas igrejas das Misericórdias espalhadas pelo país».

Algumas perguntas
LICÍNIO LIMA, jornalista
Impõe-se perguntar: Como foi possível? Como foi possível criar-se assim uma lenda na história de Portugal? Como foi possível que tivesse perdurado mais de cinco séculos?
Não havendo dúvidas quanto ao que é descrito nas páginas desta revista, é chegada a hora de os historiadores tomarem a palavra e obrigarem os nossos manuais e enciclopédias a alterarem as suas verdades. É a hora de trazer a verdade para a história. As consequências terão de ser visíveis ao nível da toponímia de Lisboa, devendo também a Academia Portuguesa de História manifestar-se relativamente ao assunto. Pode não ser grave, nem ter causado grandes prejuízos. Mas a verdade é a verdade. E a verdade histórica tem de se impor. Mas cuidado com o que se pretende fazer com a verdade histórica. Usar esta investigação para desligar as Misericórdias da Igreja, com o fundamento de que a sua génese é puramente laica, sem raízes espirituais, tal com pretenderam fazer no século XIX, é também uma fraude. Tão grande quanto foi a invenção de frei Miguel Contreiras. A rainha D. Leonor fundou as Santas Casas para elas serem face visível da caridade cristã. E é isso que devem continuar a ser. Exceptua-se aqui, evidentemente, a de Lisboa. A sua nacionalização e o seu actual estatuto jurídico, de Fundação, são também, como frei Miguel, uma monumental fraude nacional.

Notícias Magazine - 29NOV2009

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