sexta-feira, 31 de julho de 2009

Acção Social e Caritativa da Igreja: Princípios e Orientações

Acção Social e Caritativa da Igreja: Princípios e Orientações
Preâmbulo
Em Portugal, uma boa parte da acção social e caritativa da Igreja exerce-se através de um amplo e diferenciado leque de instituições sócio-caritativas, designadas oficialmente por Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) e apoiadas pelo Estado. A institucionalização da acção social proporcionou-lhe estabilidade, contribuiu para melhorar a qualidade dos serviços prestados e tem ajudado a definir o quadro de cooperação entre os parceiros sociais. Porém, em paralelo com os aspectos positivos, também originou alguns inconvenientes que não podemos ignorar.
A Conferência Episcopal Portuguesa, atendendo às recentes alterações legais, e pretendendo aperfeiçoar os parâmetros de cooperação com o Estado e com outras entidades, considera chegado o momento de definir alguns princípios gerais que ajudem a clarificar a perspectiva eclesial das instituições sócio-caritativas e contribuam para optimizar o estilo de cooperação entre os parceiros sociais. A Igreja, realidade humana de instituição divina, distinta de qualquer outra comunidade humana, identifica-se, manifesta-se e realiza-se quando Cristo se torna presente, no seu seio, pela palavra anunciada e testemunhada, pela celebração da fé e pelo serviço fraterno, três realidades unidas de forma indissolúvel e insustentáveis quando separadas umas das outras. O anúncio da palavra sem serviço fraterno torna-se estéril. O serviço fraterno sem anúncio é pura filantropia. A celebração sem serviço fraterno é ritualismo vazio de sentido. O serviço fraterno, diaconia ou acção social e caritativa, decorre do anúncio evangélico e da celebração da fé. Mas, quer seja entendido como serviço interno à comunidade ou como serviço fraterno ao mundo, só poderá gozar do autêntico cunho cristão se apontar para as mesmas realidades donde procede. O serviço fraterno está no cerne da vida cristã e apresenta-se como sinal inconfundível do seguimento de Jesus Cristo, que afirmou: pelo amor «todos conhecerão que sois meus discípulos» (Jo 13,35). O amor pelos outros, à maneira de Jesus Cristo, expresso no serviço da caridade, apresenta-se como tradução existencial do Evangelho. É pelo amor aos outros que a Igreja se torna “sacramento de fraternidade humana” e se manifesta a todos como “sacramento universal de salvação”. Pois só pela explicitação da dimensão diaconal, o cristão pode chegar à vivência autêntica da fé e à inserção plena na comunidade eclesial.
Princípios de Acção Social e Caritativa
1. A dignidade original da pessoa humana é um valor universal, inalienável e inviolável, no qual se fundamenta a igualdade essencial de todos os seres humanos, sujeitos do direito e do dever de participar na construção do bem comum e da sociedade, em conformidade com as possibilidades de cada um.
2. Os bens da criação são destinados a todos os seres humanos. A posse e o uso legítimos de bens, enquanto meio para acorrer às necessidades fundamentais e forma de garantir a dignidade e a liberdade das pessoas, transformam os seus detentores em administradores da providência divina, com obrigação de actuarem no respeito pelas virtudes da temperança, da justiça e da solidariedade.
3. A Igreja, mistério de comunhão com Deus e com os homens, é também uma Igreja de serviço que exprime o amor de Deus na acção sócio-caritativa, quando realizada com base nos princípios essenciais da primazia da caridade e do primado da pessoa humana.
4. Assim a acção sócio-caritativa da Igreja, baseada na pessoa e orientada para a pessoa humana que é «o princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições sociais» (Constituição Pastoral Gaudium et Spes, 25), deverá ser desenvolvida de acordo com o princípio da universalidade e da subsidiariedade.
5. O testemunho evangélico da caridade, elemento essencial da vivência cristã, não pode ser reduzido à iniciativa individual. A comunidade cristã é o principal sujeito e agente da diaconia eclesial, sem, contudo, excluir a participação de grupos, movimentos, instituições «especializadas» e pessoas singulares que actuem inseridas nos projectos da comunidade e partilhem do espírito que a animam, para assegurar a coordenação de sinergias e esforços. O agente pastoral não age isoladamente, é mandatado pela comunidade.6. As instituições sócio-caritativas da Igreja são múltiplas em número e diversas na natureza. Umas são de natureza fundacional e outras de natureza associativa. Umas e outras podem ser criadas quer por iniciativa da autoridade competente quer por iniciativa dos fiéis. Quanto ao nível de intervenção, podem considerar-se de âmbito local (paroquial), diocesano, nacional e internacional. Porém, salvaguardadas as particularidades de cada uma, nenhuma delas se pode considerar uma estrutura à margem da comunidade eclesial nem da Hierarquia.
7. Graças ao voluntariado cristão, são múltiplas as formas como se exerce nas comunidades a dimensão sócio-caritativa. Ela é uma forma louvável de apostolado, nascido da solicitude maternal da Igreja pelos mais pobres, e praticado, em muitos casos, nos Centros Sociais Paroquiais, nas Santas Casas da Misericórdia, nas Associações de Beneficência e de Assistência, nas Fundações, nas Caritas, nas Confrarias e Irmandades e em tantas outras instituições congéneres que, através de diferentes valências, se propõem levar a cabo a promoção integral dos utentes, cooperando com os serviços públicos e com outras instituições, em espírito de solidariedade humana e cristã.
8. A pastoral social tem como horizonte as bem-aventuranças e como meta final os «novos céus e na nova terra». O caminho das bem-aventuranças concretiza-se, no agir de cada dia, pela prática das Obras de Misericórdia, em resposta ao anúncio evangélico da salvação e à denúncia profética do mal, privilegiando a promoção humana e social dos mais carenciados, como forma de combater as verdadeiras causas da pobreza.
9. As instituições sócio-caritativas da Igreja devem ser dirigidas, animadas e servidas por pessoas com sensibilidade social e dinâmica eclesial. Dos funcionários espera-se que conheçam e aceitem os princípios pelos quais se regem as instituições em que trabalham, tendo presente que a acção destas compromete e dinamiza a comunidade cristã para a partilha de bens, de tempo e de serviços, em ordem a dignificar os utentes, concedendo-lhes voz e vez na construção da sociedade e da Igreja.
10. As instituições cristãs possuem identidade e autonomia próprias das quais não podem abdicar, seja quando se trata de receber apoios seja quando a sua natureza não é compreendida. E, porque actuam em nome da Igreja, têm legitimidade ética para intervir neste domínio, de forma autónoma e também com financiamentos próprios. Com efeito, não se regem apenas pelos critérios do humanismo filantrópico, como certas organizações não-governamentais.
11. Recomenda-se às instituições da Igreja que, na organização e funcionamento das suas respostas sociais, através de equipamentos e serviços, acautelem o sentido da prioridade na selecção dos seus destinatários, a prática da justiça social nas remunerações dos seus trabalhadores, a prestação qualificada das suas actividades sociais, o rigor no cumprimento dos deveres assumidos perante a tutela e ainda uma formação adequada e permanente dos seus trabalhadores e voluntários.
12. Em ordem a clarificar o relacionamento com os funcionários, com os utentes, com os familiares dos utentes e com os parceiros sociais, todas as instituições da Igreja que prestam serviço social devem possuir e tornar público o ideário que preside à sua acção e elaborar o regulamento interno que defina os direitos e deveres dos diferentes tipos de pessoas que nela trabalham, dela usufruem ou a visitam.
13. O relacionamento com outras instituições, em ordem a estabelecer acordos de cooperação e de parceria, deve ter como base o respeito pela identidade e autonomia de cada uma, e rege-se pelos princípios da cooperação leal, da corresponsabilidade, da solidariedade, do diálogo e do entendimento mútuo.14. Salvaguardado o Artigo 12º da Concordata, as instituições da Igreja para garantirem um adequado relacionamento com as Administrações do Estado (Central, Regional e Local), deverão estar bem informadas sobre os direitos e deveres, sobre as regras e condições que tal relacionamento implica. Tenha-se, no entanto, presente que as instituições eclesiais não podem ser meras gestoras eficientes e baratas dos serviços do Estado, não devem colocar-se em situação de dependência para receber apoios a que têm direito e não têm obrigação de fazer aquilo que o Estado não faz. A sua acção não é supletiva do Estado. Agem por direito próprio.
15. As instituições sócio-caritativas da Igreja, quando apoiadas financeiramente pelo Estado, são responsáveis perante a Igreja e perante o Estado. A avaliação dos serviços que prestam deverá ser feita no respeito pelas leis vigentes e pela comunidade que servem, tendo em conta o que fizeram ou não fizeram e a qualidade dos serviços que prestaram. Porém, evite-se que a organização se sobreponha ao espírito, a estrutura reduza as pessoas a números, o funcionalismo desumanize os serviços, a incompetência desclassifique os serviços e o tecnicismo suprima a evangelização.
16. Quando for considerada oportuna uma intervenção concertada entre a Igreja e o Estado, é desejável que, por iniciativa de qualquer das partes e através dos competentes serviços, se possam estabelecer Acordos de Cooperação, devidamente negociados pelas partes, em conformidade com as regras, condições e princípios que as Uniões e Confederações, representativas das IPSS, considerem mais adequadas para o desenvolvimento dessa cooperação e venham a constar dos respectivos protocolos.
17. Sem prejuízo dos Acordos de Cooperação celebrados com o Estado, as instituições da Igreja, num futuro próximo e sob a orientação de uma equipa técnica, criada no âmbito das Dioceses ou a nível nacional, deverão promover uma revisão estatutária que permita, por um lado, avaliar se a acção social actualmente prestada é a mais consentânea com as prioridades das comunidades cristãs que servem e, por outro lado, lançar iniciativas que possam garantir, mesmo num cenário de falta de recursos humanos e financeiros, a sua sobrevivência e normal funcionamento.
Fátima, 7 de Abril de 2005


Conferência Episcopal Portuguesa

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