quinta-feira, 30 de julho de 2009

"Boa parte das administrações das Misericórdias são filantrópicas, mas com interesses políticos, económicos e de prestígio subjacentes"

JOAQUIM CAEIRO
Director do ISSSL/Universidade Lusíada
"Boa parte das administrações das Misericórdias são filantrópicas, mas com interesses políticos, económicos e de prestígio subjacentes"
Quais são os pressupostos que os responsáveis deverão ter em consideração numa política social?
O sucesso da política social depende de quem a aplica, de como a aplica e a quem é que é aplicada. Dou como exemplo o Rendimento Social de Inserção (RSI). Este pode ter sucesso se for bem executado, isto é, se se dirigir efectivamente áquelas pessoas que têm um rendimento muito baixo e permitir que um determinado indivíduo ou família consiga integrar-se na sociedade ou no mercado de trabalho. Se, pelo contrário, for aplicado a quem na prática tem direito, mas que teoricamente não o deveria ter (porque possui outros rendimentos ou trabalha sem declarar para o efeito), as suas repercussões são negativas. Ou seja, aquela família recebe o RSI, é alvo de políticas sociais, mas nunca é integrada.
Esse aspecto também se aplica ao nível das IPSS?
O grande problema está aí. As políticas sociais têm uma dimensão, chamada superestruturada, constituída por aqueles que as pensam teoricamente e os que promovem (por norma, o poder político). Essa dimensão define a política social como sendo de carácter abstracto e universal – isto é, destina-se a toda a gente, mesmo que, na maior parte das vezes, se dirija, de facto, a um grupo em concreto. Outro problema que se levanta é sobre quem vai executar essas políticas, sejam os técnicos de serviço social ou outros técnicos na área da intervenção social, tanto nas IPSS como instituições públicas. A aplicação é determinante para o sucesso ou insucesso da política social. Se não tiver capacidade de seleccionar efectivamente a família ou o indivíduo, nem controlar ou fiscalizar essa execução (e este é o grande problema destas políticas sociais), cai-se no erro de estar sistematicamente a pagar subsídios e a tornar os indivíduos subsidiodependentes, sem que estes o mereçam e efectivamente precisem dele.
Como é que se avalia o sucesso da implementação de uma política social?
Para tal há estudos, nomeadamente estatísticos. A avaliação é levada a cabo pelos próprios serviços, na maior parte das vezes de forma deficiente. Quando se faz essa medição de eficiência, resulta sempre enviesada, porque o que se vê é o número de beneficiados e não o resultado prático da política social de integração. Para os decisores, que são os políticos, o que conta é o número de famílias ou indivíduos que possuem o RSI ou até o Complemento Social do Idoso (CSI). Não vão medir, depois, é a outra parte: este rendimento social inseriu quantas pessoas? Estas deixaram de ser pobres? Resolveram a sua vida a partir do RSI? A dúvida coloca-se aqui, não é definido esse critério.
A ideologia é fundamental para a formulação de uma política social?
É essencial. De um lado, eu tenho um tipo de política social, de acordo com a concepção de governo, se é liberal ou socialista, por exemplo. Veja-se o caso do Rendimento Mínimo Garantido (RMG), que é uma política claramente socialista. Quando alterou o sistema político, na transição do PS de Guterres para o PSD de Durão Barroso, deixou de se chamar RMG, passou a denominar-se RSI, com uma lógica muito mais liberal. As políticas sociais, em geral, assentam claramente num pressuposto ideológico, e é esse aspecto que as distingue e lhes dá uma natureza mais específica daquilo que é o seu combate: se à pobreza, à exclusão, etc. E mesmo o recurso às políticas sociais através do Estado é visto de formas diferentes, dependendo do conceito ideológico do Governo.
E reflecte-se também nas IPSS?
Isto é, as IPSS são mais ou menos influentes em Portugal face, por exemplo, ao norte da Europa?
As IPSS são mais influentes no sul da Europa. Porque no norte da Europa há uma lógica de Estado, este assume tudo o que é intervenção social. Na definição da estrutura das políticas sociais, em particular, é o Estado que coordena, numa perspectiva pública. Nos países do sul, onde o peso do Estado depende em função da concepção ideológica governativa, a sociedade civil ganhou um peso muito maior, através das Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS). O que se vê no resto da Europa (como em França, Itália, Bélgica, Espanha) é que essas mesmas estruturas – que se denominam de Instituições de Economia Social – promovem políticas sociais de forma directa, ou indirectamente, através da execução de políticas oriundas do Estado. Nos países do norte as políticas sociais são pensadas, executadas e fiscalizadas sempre numa estrutura pública, muito mais estatal.
E qual o peso destas IPSS em Portugal?
É inferior à realidade de Espanha ou França. Entre nós prevalecem essencialmente as Misericórdias, cujo peso é muito grande. Poderão até assumir a concepção de IPSS, mas com uma estrutura jurídica, administrativa e orgânica diferente, bem como a sua dinâmica. Outras IPSS, que foram criadas especificamente para intervir em áreas do desenvolvimento local ou social, são essencialmente executoras. Existem para aplicar as políticas que o Estado define, através dos subsídios que recebem da parte deste. Elas próprias são subsidiodependentes e não criaram uma dinâmica autónoma, têm uma força cada vez menor. Por isso, muitas delas correm o risco de desaparecer, com o final do QREN e do financiamento comunitário.
Perante o sector público, o sector privado concentra-se maioritariamente na Igreja?
A Igreja não está só nas Misericórdias, mas também nas Mutualidades, e vai funcionando um pouco transversalmente, o seu peso não é igual em todo o lado. Não tenho números que o comprovem, mas cerca de 40% das Misericórdias são capazes de já não estar dependentes da estrutura da Igreja, ainda que a lógica das Misericórdias seja muito fechada, pois é a Irmandade que, do interior dessa estrutura, escolhe os Provedores e restantes dirigentes. Também deve-se ter em atenção o enquadramento geográfico da Misericórdia, se é da zona de Lisboa ou da província, por exemplo. E até é verdade que diversas Misericórdias, instaladas em pequenos concelhos, têm um peso económico, social e até político extremamente elevado.
A ideia que transparece para a sociedade é que os responsáveis e técnicos das IPSS, Misericórdias, etc., actuam sob uma perspectiva filantrópica. É factual ou começa a existir uma maior profissionalização, também neste sector?Os funcionários, nomeadamente aqueles que fazem intervenção na área social, técnicos de serviço social e afins, são, cada vez mais, profissionais, executam a sua função a tempo inteiro. A administração não, antes pelo contrário, pelo que o seu grande problema é a ausência ou limitação de profissionalismo. Boa parte das administrações das Misericórdias são filantrópicas, mas com interesses políticos, económicos e de prestígio subjacentes. Por isso é que na maior parte dos casos há uma clara discordância entre aquilo que é a perspectiva dos técnicos face aos decisores. Os primeiros têm uma visão pragmática, tantas vezes muito teórica sobre as questões sociais, e moldada numa perspectiva pessoal – querem integrar, fazer, modificar, e esquecem o lado económico. Já os decidores vêem, na maior parte das vezes, apenas a questão económica, sem sensibilidade para a correcta execução da política social e dos seus resultados práticos.
Na sua opinião, o que deve ser considerado para aplicar correctamente uma política social?
Desde logo, as decisões políticas devem ser coerentes e orientadas para a promoção da inclusão social. A execução dessas políticas sociais terá que ser levada a cabo por técnicos especializados e com capacidade de fiscalizá-las. Depois, é necessário orientar e definir claramente o que é o problema social. Assim, devem discernir-se as grandes dimensões desta questão, aprofundá-la e executá-la. Infelizmente, as medidas sociais são apresentadas em período pré-eleitoral, onde tudo se promete. Isso resulta em políticas desgarradas, incoerentes, apenas com vista à aceitação e apoio por parte de determinado nicho eleitoral. Por exemplo, já há duas décadas se dizia que 20% da população portuguesa vivia no limiar ou em situação de pobreza. Se hoje os valores apresentados são equivalentes, significa que as políticas sociais falharam. Muitas destas não eram, de facto, as melhores ideias, nem tinham uma lógica de resolução do problema ou não foram devidamente aplicadas. Parece-me fundamental que se desenvolva uma definição estratégica com vista a promover a inclusão social e aplicá-la na prática.
O Estado-providência é ainda viável?
Tenho muitas dúvidas na sua real existência. Para funcionar, necessita de financiamento e, a verdade é que o Estado-providência tem cada vez maiores dificuldades em se financiar. Veja-se que quem aufere acima de 1500 € mensais não recebe nenhum subsídio, mas, em contrapartida, paga. E não tem quaisquer garantias de obter auxílio social no futuro, mais concretamente a sua reforma. Em conclusão, uma parte cada vez menor do país sustenta (através dos respectivos descontos laborais) uma parte cada vez mais significativa da população (com a crescente subsidiodependência). Mais, a falsa universalidade do Welfare State levanta questões de sustentabilidade, pois caso a classe média deixe de legitimar essa política, então esta não terá qualquer viabilidade futura.
Biografia
Joaquim Manuel Croca Caeiro é Professor Associado e Director do Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa e investigador do Centro Lusíada de Investigação em Serviço Social e Intervenção Social. Colabora com outras instituições de ensino superior, nomeadamente os Institutos Politécnicos de Beja e Guarda. É membro do Conselho Científico da Universidade Lusíada e Director da Revista Intervenção Social. Licenciado em Gestão e Administração Pública, é mestre em Ciência Política e Doutor em Ciências Sociais, pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa. Em 2008, publicou, sob o selo da Universidade Lusíada, o livro “Políticas Públicas, Política Social e Estado de Providência”, tendo em 2004 publicado a obra “Elites e Poder. Os Grupos Económicos em Portugal (1932-1996)”.

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