terça-feira, 22 de novembro de 2011

As Misericórdias e a Irlanda

Jornal da Madeira / Opinião / Data de Publicação: 2011-11-22
 

LUÍS FILIPE MALHEIRO
As Misericórdias e a Irlanda
Lembro que o primeiro-ministro anunciou no passado fim-de-semana que o governo de coligação pretende, até ao final do primeiro trimestre de 2012, regularizar as dívidas consideradas mais prioritárias às misericórdias e devolver os 15 hospitais públicos que pertencem a estas instituições.

Há coisas que me fazem uma confusão enorme. Sem colocar em causa as Misericórdias e o seu papel na sociedade portuguesa, a verdade é que o recente anúncio, de Passos Coelho, de que o Estado se prepara para devolver a esta instituição estruturas hospitalares que lhe pertenceram e que terão sido nacionalizadas depois do 25 de Abril, deixou-me um pouco confuso. Não propriamente por o Estado ter demorado tanto tempo a perceber isso, mas por o fazer numa conjuntura de crise em que me parece ser mais do que evidente que a preocupação nem sequer é recompensar as Misericórdias seja pelo que for, mas afastar do orçamento de Estado despesas que passam a ser da responsabilidade de terceiros. Porque também não entendo muito bem – salvo se essas negociações têm existido e ninguém delas sabe – como é que as Misericórdias, numa época de contenção como a que atravessamos, e quando a instituição passa por dificuldades financeiras graves, aceitam este “presente” do Estado, sem terem a garantia de que são capazes de assegurar a qualidade do serviço a ser prestado aos utentes e se vai continuar a poder garantir emprego a tanta gente, ou se será obrigada a ter que despedir, etc.
Lembro que, segundo foi noticiado, “pode haver despedimentos nos 15 hospitais do serviço nacional de saúde que vão ser devolvidos às Misericórdias. Manuel Lemos, o presidente da União das Misericórdias, não garante a absorção de todos os postos de trabalho. O Governo decide até Março o prazo e as unidades a entregar”. Ainda segundo a comunicação social, para falarmos de um caso específico em concreto, “com um passivo de cinco milhões de euros, a Santa Casa da Misericórdia da Covilhã encontra-se numa situação de falência técnica. Pode haver despedimentos de dezenas de funcionários ou cortes nos subsídios e até a diminuição dos salários”. Se dúvidas existissem, julgo que está mais do que comprovado que no actual quadro e na presente conjuntura as Misericórdias muito dificilmente terão condições para suportar os encargos resultantes do funcionamento dos 15 hospitais a devolver, sem que exista do Estado abertura para a eventual celebração de contratos o que me parece não ser tão óbvio como possa parecer.
Lembro que o primeiro-ministro anunciou no passado fim-de-semana que o governo de coligação pretende, até ao final do primeiro trimestre de 2012, regularizar as dívidas consideradas mais prioritárias às misericórdias e devolver os 15 hospitais públicos que pertencem a estas instituições. "Se tudo correr de acordo com as nossas expectativas – disse – teremos possibilidade, até ao final do primeiro trimestre do próximo ano, de poder regularizar uma parte muito sensível do que é esta dívida histórica". Ou seja, sublinhou Passos Coelho, "instituições que vêm passando por dificuldades porque o Estado não paga a horas, não salda os compromissos que assumiu, poderão ter um quadro de previsibilidade e estabilidade". O problema é mesmo este: poderão ter. Não há a certeza se terão. Porque mesmo com o pagamento dessas dívidas do Estado, as Misericórdias passam a ter outro problema, a necessidade de encontrarem fontes de receitas alternativas porque o Estado deixa de ter qualquer contrato com elas. Aliás, o primeiro-ministro já deu a entender isso mesmo quando referiu que "evidentemente que não é possível, nas actuais circunstâncias, pagar tudo o que está para trás e ainda contratar novas responsabilidades para o futuro". Passos sublinharam estar na hora de se dar "mais um passo na devolução dos hospitais públicos que foram nacionalizados às santas casas após 1974. Ainda hoje são mais de uma quinzena de hospitais públicos que se mantém na esfera pública, mas que vieram destas santas casas. O Governo vai agora começar a preparar de uma forma programada e organizada a devolução desses hospitais às santas casas respectivas". Sem podermos avançar mais seja o que for, nem termos qualquer informação mais concreta que garanta que as Misericórdias assegurarão pelos seus próprios meios a funcionalidade e a eficácia qualitativa dos serviços a serem prestados naqueles hospitais, parece-me que estamos perante um assunto que justifica um acompanhamento mais atento. Sobretudo para sabermos se uma clara estratégia não assumida de desornamentação do Estado vai implicar um problema de subsídio dependência crónica por parte das instituições de solidariedade social atrás referidas.
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Para que as pessoas percebam as raízes da crise na Irlanda – um dos países que tal como Portugal e a Grécia estão sob a administração de potenciais financeiras estrangeiras – e para que não se confunda as causas, que diferem entre si, das três crises financeiras e orçamentais europeias mais acentuadas e graves – porque outras estão a caminho… – transcrevo uma notícia do fim-de-semana que me parece ter merecido reduzido destaque informativo mas que é um espelho fiel do que aconteceu (e acontece) na Irlanda e que nada impede se venha a repetir em 2012 em Portugal:
“A recente falência daquele que foi considerado um dos homens mais ricos da Irlanda é uma metáfora do destino do país que ontem completou um ano desde que anunciou a necessidade de ajuda externa. Sean Quinn, de 64 anos, acumulou uma fortuna de cerca de 4,7 mil milhões de euros, parte da qual no sector do imobiliário. No dia 11 de Novembro apresentou um pedido de insolvência devido às dívidas de quase três mil milhões de libras ao Anglo Irish Bank, um dos bancos que foi nacionalizado em 2009. Segundo as notícias, o antigo magnata controlava um império de propriedades que se estendia à Rússia, Estados Unidos da América e Médio Oriente. O caso ilustra as razões que fizeram o país anteriormente conhecido por "tigre celta" cair de joelhos e a pedir assistência financeira à União Europeia e ao Fundo Monetário Internacional. Foi precisamente a bolha imobiliária, e os consecutivos prejuízos, que mais contribuíram para a descapitalização da banca irlandesa. A 21 de Novembro de 2010, o então primeiro-ministro, Brian Cowen, confirmou que o governo iria pedir ajuda, cujo pacote de 85 mil milhões de euros foi concluído uma semana mais tarde. Destes, quase metade, cerca de 35 mil milhões de euros seriam destinados a recapitalizar os bancos que, no total, terão já recebido cerca de 70 mil milhões de euros. Passado um ano, as perspectivas dos irlandeses não são melhores do que há um ano atrás. Depois de prever cortes de seis mil milhões de euros na despesa pública e dois mil milhões de aumentos de impostos no orçamento do ano passado, o governo mantém uma política de austeridade. Recentemente anunciou para 2012 um ajustamento no valor de 3,8 mil milhões de euros, dos quais quase dois terços (2,2 mil milhões de euros) serão em cortes na despesa e o restante (1,6 mil milhões de euros) em aumento de impostos”.
Ou seja, a crise europeias veio colocar em evidência duas novas e importantes questões, para além da ameaça à democracia, da subversão dos sistemas políticos e da vontade dos seus cidadãos, da eficácia da pressão e da chantagem dos agiotas e dos odiados mercados internacionais e da impunidade de políticos incompetentes: refiro-me à vulnerabilidade do novo-riquismo mas sobretudo à fragilidade e impotência dos cidadãos europeus obrigados a pagarem com medidas de austeridade as barbaridades, as falcatruas, a corrupção, a manipulação e outras habilidades cometidas pela banca que andou anos a encher a pança de accionistas esfomeados que se comportam agora como agiotas e capitalistas selvagens incapazes de reconhecerem os erros e a culpabilidade do sistema bancário no alimentar de uma crise que afecta hoje o Estado, as empresas e as famílias.

http://ultraperiferias.blogspot.com


Artigo de Opinião de : Luís Filipe Malheiro

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