quinta-feira, 12 de março de 2009

Da Igreja ou do Estado… As Misericórdias Portuguesas?!

Da Igreja ou do Estado… As Misericórdias Portuguesas?!

Quem se recordar da realização do V Congresso das Misericórdias Portuguesas, em Novembro de 1976, na cidade de Viseu, onde se reencontraram e confrontaram a Igreja e o Estado, para verem, ouvirem e compreenderem a voz das Irmandades, há-de saber que a temática desse Congresso andou à volta de três pontos fundamentais, a saber: a) - definição das Misericórdias; b)- legislação actual; c)- criação da União das Misericórdias, com vista à sua defesa e revitalização.
Do Congresso saíram aprovadas, por unanimidade: diversas “Conclusões”, das quais aqui se destacam, de interesse para o nosso tema, as seguintes duas:
A) As Misericórdias são associações de fiéis denominadas Irmandades de Misericórdia ou Santas Casas de Misericórdia com personalidade jurídica canónica e civil, com o fim especifico de praticar as obras de misericórdia corporais e espirituais e promover o culto público a Deus, gozando de autonomia administrativa e da confiança dos seus benfeitores e beneficiando da protecção histórica da Igreja e do Estado.
B) As Misericórdias decidem a criação imediata de uma associação que, a nível nacional, assegure a união das Misericórdias Portuguesas, sem lhes bulir, porém, na sua liberdade de acção e de iniciativa, nem lhes cercear a escolha de actividades.
Recordar o V Congresso faz lembrar também que ele surgiu de uma reacção contra a onda de destruição gonçalvista, que se gerou após o 25 de Abril de 1974 com vista a eliminar as Santas Casas, um pouco à semelhança com o que aconteceu com o Liberalismo (entre 1834 e 1910) e com a Primeira República (entre 1910 e 1926).
Pois foi a partir desse V Congresso, no qual a Guarda esteve representada e participou activamente, que as Misericórdias sobreviveram e hoje se mostram com alguma pujança na realização de serviços ou valências da maior importância social, mas mantendo o espírito cristão e o respeito da dignidade da pessoa humana.

Como nasceram em Portugal e qual a importância das Misericórdias?

Diversos foram os historiadores a quem se pôs esta questão e uniformemente responderam que a nossa primeira Irmandade da Misericórdia surgiu como coisa muito necessária na vida da população portuguesa à data da sua instituição e que foi por iniciativa da Excelsa Rainha Dona Leonor de Lencastre que, em finais do século XV, fez uma verdadeira reforma da assistência em Portugal, vencendo resistências activas e passivas em defesa dos princípios a que ela mesma obedecia.
Talvez esclarecida e afervorada por Frei Miguel Contreiras, moveu-se a Rainha com aquela fé ardente e inesgotável caridade que nela era a mais nobre personificação do amor ao próximo, para o lançamento da Confraria ou Irmandade da Misericórdia, cujo modelo de compromisso é inédito e não copiado de qualquer outro.
No prólogo do Compromisso dizia-se que Deus «inspirou no coração de alguns bons e fiéis cristãos e lhes deu coração, siso e forças e caridade para ordenarem uma Irmandade e Confraria sob o título e nome e invocação de Nossa Senhora, a Virgem Maria da Misericórdia... e que a Confraria foi instituída no ano de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1498... no mês de Agosto... «por permisso e consentimento e mandado da ilustríssima e mui católica senhora a Senhora Rainha Dona Leonor».
Na data referida a Rainha Senhora Dona Leonor, na ausência do Rei D. Manuel I, era Regente do reino e representava, portanto, o Estado, sendo por permisso, consentimento e mandado do Estado que se fundou a primeira Misericórdia, constituída por... bons e fieis cristãos que voluntariamente se associaram sob a protecção do poder régio do qual dependia a associação.
Nascidas do impulso da Rainha e das generosas intenções dos cristãos, as Misericórdias tomaram-se mandatárias da vontade dos seus benfeitores e não poderão demitir-se nem ser demitidas da realização dos seus próprios fins, como pessoas morais que são, dotadas de personalidade jurídica.
Atento o novo Código de Direito Canónico onde se criaram as duas novas figuras jurídicas de associações privadas e associações públicas, no respeito pela tradição e longevidade das Santas Casas, tanto pelos Provedores como pela União das Misericórdias (que nasceu do V Congresso), têm considerado as Misericórdias Portuguesas como “associações privadas”, com autonomia administrativa e funcionamento democrático, sendo os corpos sociais eleitos em assembleia geral, como se dispõe nos “Compromissos” cujo novo modelo, aliás, foi também elaborado e aprovado em assembleia geral da União.

Do Estado ou da Igreja?

Porque nos foi pedido um depoimento sobre o V Congresso, responderemos à pergunta nos termos em que lhe foi respondido naquele momento histórico, em diálogo com representantes do Governo e da Conferência Episcopal Portuguesa: ... «as Santas Casa da Misericórdia reivindicam para elas o direito de dizer quem são e não permitirão que as bases dos seus Estatutos sejam ditadas a partir dos Paços Episcopais nem de Gabinetes Ministeriais.»
Aliás, com todo o respeito para com diferentes opiniões, também isso resulta dos textos do novo Código de Direito Canónico, onde se dispõe que «Os fiéis dirigem e governam as associações privadas segundo as prescrições dos estatutos» embora estejam «sujeitas à vigilância da autoridades eclesiástica»; à qual assiste o “direito de visita”. Mais, as «associações privadas de fiéis designam livremente o moderador e os oficiais, de acordo com os estatutos); e «se desejarem ter algum assistente espiritual podem escolhê-lo de entre os sacerdotes que exerçam legitimamente o ministério na diocese»
Finalmente, ainda segundo o Código de Direito Canónico, «A associação privada de fiéis administra livremente os bens que possui, de harmonia com as prescrições dos Estatutos, salvo o direito da autoridade eclesiástica competente de vigiar no sentido de que esses bens sejam utilizados para os fins da associação»; — e todos esses preceitos foram os que sempre se cumpriram e se observam nas Misericórdias Portuguesas que, a nosso ver, nasceram e se continuaram sem serem do Estado nem da Igreja, mas sim merecedoras das suas protecções.
Pires da Fonseca



A Guarda
01-01-2009

Sem comentários: