quinta-feira, 12 de março de 2009

Nota Pastoral do Episcopado sobre as Misericórdias Portuguesas em Ano Jubilar

Nota Pastoral do Episcopado sobre as Misericórdias Portuguesas em Ano Jubilar

1. Em Agosto próximo, completam meio milénio as Miseri­córdias Portuguesas. Foi em 1498, por altura da festa da Assunção de Nossa Senhora, que a primeira das Santas Casas, a de Lisboa, instituída por iniciativa da rainha D. Leonor, foi solenemente instalada numa capela da Sé posta à disposição pelo Cabido. A erecção canónica, previamente concedida, foi confirmada no ano seguinte pelo Papa Alexandre VI.

D. Leonor, de bondade e cultura insignes, impressionada pelo zelo caritativo de Frei Miguel de Contreiras em favor da multidão de indigentes que pululavam na capital, pensou, com o conselho do bondoso frade trinitário, numa instituição destinada ao exercício de todas as obras de misericórdia corporais e espirituais, a difundir pelo reino, reorganizando toda a actividade assistencial que era então precariamente exercida.

A rainha concebeu‑a segundo o modelo das irmandades e confrarias do tempo, e motivou, para a sua concretização, “pessoas de honesta vida, boa fama, sã consciência, tementes a Deus e guardadoras de seus mandamentos, mansas e humildes, a todo o serviço de Deus e da Confraria”, como se pode ler no primeiro “Compromisso” ou regra fundamental das Misericórdias (1498).

As Misericórdias surgiram assim com a originalidade de serem obra de gente boa e cristã, para atender todas as necessidades dos mais pobres, em verdadeiro espírito de caridade evangélica, com o apoio do rei e no quadro da Igreja. O sentimento naturalmente bondoso dos portugueses, numa época de exaltação religiosa, afirmação nacional e crescimento económico devido à expansão ultramarina, assegurou à iniciativa de D. Leo­nor, secundada por seu irmão o rei D. Manuel I, um êxito surpreendente. No mesmo ano de 1498, além da Misericórdia de Lisboa, foram criadas mais 13; à morte da rainha (1525), as Misericórdias já eram 73; o seu número subiu a 232 no final do século XVI; e hoje, só em Portugal, vão a caminho das 400.



2. As Misericórdias são associações de fiéis canonicamente reconhecidas pela Igreja e por ela apoiadas, o que lhes tem garantido estabilidade e autonomia no meio das mudanças e perturbações dos tempos. Originariamente o seu fim primário é a santificação dos “irmãos”, pelo exercício das diversas ex­pressões da caridade fraterna.

As formas concretas deste exercício têm variado naturalmente com os tempos e as circunstâncias. É admirável verificar como as Misericórdias se têm revelado criativas nas respostas dadas às carências humanas e sociais ao longo dos séculos da sua existência, desde enterrar mortos, remir cativos e tratar leprosos, até recolher idosos, educar crianças e recuperar toxicodependentes, sem esquecer o tradicional cuidar dos doentes em hospitais seus.

As populações, reconhecendo tais benefícios, sempre tiveram as Misericórdias como suas. Nunca faltaram “irmãos” para assumir as responsabilidades da sua gestão e manutenção. E, com os tradicionais cortejos de oferendas, donativos, doações e heranças, dotaram‑nas, em muitos casos copiosamente, de meios financeiros para o digno exercício das suas actividades assistenciais.



3. Esta fidelidade popular, a segurança que lhes advém da ligação à Igreja e o interesse do poder público em com elas resolver boa parte dos mais delicados problemas sociais, têm assegurado às Santas Casas uma extraordinária resistência às vi­cissitudes históricas e sociopolíticas com que várias vezes se têm defrontado.

Assim, resistiram ao liberalismo maçónico dos séculos XVIII e XIX, eivado de ideologia libertária e laicizante, que as feriu na sua alma cristã e que, pelas leis da desamortiza­ção (1861 e 1866), as espoliou de grande parte do seu patrimó­nio. Data deste período (1851) a dissolução da Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que passou a depender do Governo à maneira de serviço do Estado.

Resistiram também ao anti‑clericalismo da I República e às tendências estatizantes do Estado Novo. Resistiram ainda à nacionalização dos seus hospitais em 1974 e 1975, que as privou de uma das suas mais tradicionais actividades.



4. Nesta resistência, sobretudo nos tempos mais recen­tes, é de justiça referir a importância dos Congressos Nacio­nais das Misericórdias Portuguesas. O de 1976, em momento par­ticularmente crítico, deveu‑se à iniciativa do Pe. Dr. Virgílio Lopes, Provedor da Misericórdia de Viseu, que se sentiu apoiado pelo protesto dos Bispos contra a referida nacionalização dos hospitais, exarado no comunicado da Assembleia Plenária de Abril de 1976.

Deste Congresso saíu a União das Misericórdias Portuguesas, instituída para preservar o espírito e defender os direi­tos das Santas Casas, dinamizar e coordenar a sua acção, e assegurar a sua representação. Erecta canonicamente pelo Bispo de Viseu em 1977, que aprovou os seus primeiros Estatutos, viu reconhecida a sua implantação nacional em 1983, pela aprovação dada pela Conferência Episcopal à nova versão estatutária. À União se devem a reanimação de muitas Misericórdias e o fortalecimento da sua posição perante o Estado e a opinião pública.



5. A celebração deste ano jubilar das Misericórdias Portuguesas dá‑nos oportunidade para mais uma vez manifestarmos a nossa solicitude pastoral por elas, dando graças pelo seu passado e procurando que tenham um futuro promissor, na dupla fidelidade às suas origens e às exigências dos novos tempos.

Congratulamo-nos com o aparecimento de novas Santas Casas, fruto do dinamismo apostólico de comunidades cristãs, e com o rejuvenescimento de muitas outras de antiga tradição. Mas não deixam de nos preocupar quer a falta de vitalidade quer o enfraquecimento do espírito de fraternidade cristã e de adesão à Igreja que está a minar por dentro a vida de algumas delas.

As Misericórdias não são meras instituições filantrópi­cas, por muito beneméritas que se afigurem, nem se podem reduzir a satélites das estruturas de segurança social do Estado, mesmo que recebam deste todo o apoio a que têm direito, como aliás outras instituições particulares de solidariedade social. No respeito da sua identidade, vocação e missão eclesiais, elas devem con­siderar‑se expressões organizadas do exercício da caridade pe­lo Povo de Deus em favor dos irmãos necessitados. Têm, pois, o direito e a obrigação de procurar e acatar orientações e apoio, nas linhas da identidade, formação e acção, por parte da Igreja.

Está aqui uma das prerrogativas da sua condição de irmandades ou associações de fiéis que, sem prejuízo da autonomia e responsabilidade próprias, lhes asseguram fidelidade às origens, estabilidade no presente e actualidade no futuro.



6. Sendo tradicionalmente de implantação local ou regional, as Miseri­córdias vivem em geral profundamente enraizadas nas comunida­des cristãs que lhes deram origem. Que estas comunidades cultivem por elas grande estima, traduzindo‑a em colaboração voluntária e diversas formas de apoio. E que os respectivos pastores manifestem neste sentido a sua solicitude pastoral, promovendo o interesse dos fiéis e fazendo‑lhes sentir que a força do seu contributo para a vida das Santas Casas radica na graça do Baptismo e na comunhão eclesial.

É nosso desejo que, na fidelidade aos próprios estatutos por nós aprovados, a União das Misericórdias Portuguesas contribua para que se reavive nas Santas Casas o sentido da sua natureza específica de irmandades vital e canonicamente ligadas ao Bispo diocesano e para que elas sirvam sempre o Povo de Deus e a sociedade em geral com o verdadeiro espírito da caridade cristã que motivou a sua constituição e é a sua razão de ser.



7. A terminar, formulamos alguns votos. Que sejam superadas as deficiências e dificuldades que têm por vezes prejudicado o procedimento fiel das Misericórdias à sua vocação originária. Que, na presente conjuntura sociocultural tão marcada por rápidas mutações, elas dêem provas da criatividade e do dinamismo próprios da caridade cristã, de modo a poderem dar resposta aos apelos das novas e subtis formas de pobreza dos nossos tempos, que vão das situações de marginalidade étnica, social e cultural às dependências físicas, psicológicas e morais. Que elas saibam cuidar do seu rico património artístico e documental, valorizando-o e pondo-o ao serviço da comunidade.

Em nome da Igreja e, podemos dizer, do povo português, agradecemos a quantos têm dedicado o melhor da sua inteligên­cia, coração e trabalho à causa de bem servir os mais carenciados dos irmãos. Convidamos todos os fiéis e demais pessoas de boa vontade a participar connosco nas celebrações jubilares dos 500 anos das Misericórdias Portuguesas. E invocamos sobre elas a bênção da Virgem Maria, que as Santas Casas se habitua­ram a tratar por Senhora da Visitação e Senhora da Misericórdia.

Lisboa, 31 de Maio de 1998

Festa de Nossa Senhora da Visitação e Senhora da Misericórdia

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