domingo, 9 de setembro de 2007

Do Compêndio da Doutrina Social da Igreja

A Igreja, ao cumprir a sua missão, empenha todo o povo de Deus. Nas suas várias articulações e em cada um dos seus membros, de acordo com os dons e as formas de exercício próprias de cada vocação, o povo de Deus deve corresponder ao dever de anunciar e testemunhar o Evangelho (cf. 1Cor 9, 16), ciente de que «a missão compete a todos os cristãos»1136.
Também a obra pastoral em âmbito social é destinada a todos os cristãos, chamados a transformarem-se em sujeitos activos no testemunho da doutrina social e a inserirem-se plenamente na consolidada tradição de «actividade fecunda de milhões e milhões de homens que, estimulados pelo ensinamento do magistério social, procuraram inspirar-se nele para o próprio compromisso no mundo»1137. Os cristãos de hoje, agindo individualmente ou coordenados em grupos, associações e organizações, devem saber propor-se como «um grande movimento empenhado na defesa da pessoa humana e na tutela da sua dignidade»1138.

Da dignidade, unidade e igualdade de todas as pessoas deriva, antes de tudo, o princípio do bem comum, com o qual se deve relacionar cada aspecto da vida social para encontrar pleno sentido. Segundo uma primeira e vasta acepção, por bem comum entende-se: «o conjunto das condições da vida social que permitem, tanto aos grupos como a cada membro, alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição»346.
O bem comum não consiste na simples soma dos bens particulares de cada sujeito do corpo social. Sendo de todos e de cada um, é e permanece comum, porque indivisível e porque somente juntos é possível alcançá-lo, aumentá-lo e conservá-lo, também em vista do futuro. Assim como o agir moral do indivíduo se realiza fazendo o bem, assim o agir social alcança a plenitude realizando o bem comum. O bem comum pode ser entendido como a dimensão social e comunitária do bem moral.

O bem comum empenha todos os membros da sociedade: ninguém está escusado de colaborar, de acordo com as próprias possibilidades, na sua busca e no seu desenvolvimento352. O bem comum exige ser servido plenamente, não segundo visões redutoras subordinadas às vantagens parciais que dele se podem retirar, mas com base numa lógica que tende à mais ampla responsabilização. O bem comum corresponde às mais elevadas inclinações do homem353, mas é um bem difícil de alcançar, porque exige a capacidade e a busca constante do bem de outrem como se fosse próprio.
Todos têm também o direito de fruir das condições de vida social criadas pelos resultados da consecução do bem comum. Soa ainda actual o ensinamento de Pio XI segundo o qual se deve procurar que a repartição dos bens criados, a qual não há quem não reconheça ser hoje causa de gravíssimos inconvenientes pelo contraste estridente que há entre os poucos ultra-ricos e a multidão inumerável dos indigentes, seja reconduzida à conformidade com as normas do bem comum e da justiça social354.

A responsabilidade de perseguir o bem comum compete não só às pessoas consideradas individualmente, mas também ao Estado, pois que o bem comum é a razão de ser da autoridade política 355. Na verdade, o Estado deve garantir coesão, unidade e organização à sociedade civil da qual é expressão356, de modo que o bem comum possa ser conseguido com o contributo de todos os cidadãos.
O indivíduo humano, a família, as corpos intermédios não são capazes, por si próprios, de chegar ao seu pleno desenvolvimento; daí serem necessárias as instituições políticas, cuja finalidade é tornar acessíveis às pessoas os bens necessários – materiais, culturais, morais, espirituais – para levarem uma vida verdadeiramente humana. O fim da vida social é o bem comum historicamente realizável357.
Para assegurar o bem comum, o governo de cada País tem a tarefa específica de harmonizar com justiça os diversos interesses sectoriais358. A correcta conciliação dos bens particulares de grupos e de indivíduos é uma das funções mais delicadas do poder público. Além disso, não se há-de olvidar que, no Estado democrático – no qual as decisões são geralmente tomadas pela maioria dos representantes da vontade popular –, aqueles que têm responsabilidade de governo estão obrigados a interpretar o bem comum do seu país, não só segundo as orientações da maioria, mas também na perspectiva do bem efectivo de todos os membros da comunidade civil, inclusive dos que estão em minoria.

Dentre as multíplices implicações do bem comum, assume particular importância o princípio do destino universal dos bens: «Deus destinou a terra e tudo o que ela contém para uso de todos os homens e de todos os povos, de sorte que os bens criados devem chegar equitativamente às mãos de todos, segundo a regra da justiça, inseparável da caridade»360. Este princípio baseia-se no facto de que: «A origem primeira de todos os bens é o próprio acto de Deus que criou a Terra e o homem e ao homem deu a Terra para que a domine com o seu trabalho e goze dos seus frutos (cf. Gn 1, 28-29). Deus deu a Terra a todo o género humano, para que ela sustente todos os seus membros, sem excluir nem privilegiar ninguém. Está aqui a raiz do destino universal dos bens da terra. Esta, pela sua própria fecundidade e capacidade de satisfazer as necessidades do homem, constitui o primeiro dom de Deus para o sustento da vida humana»361. A pessoa não pode prescindir dos bens materiais que respondem às suas necessidades primárias e constituem as condições basilares da sua existência; estes bens são-lhe absolutamente indispensáveis para se alimentar e crescer, para comunicar, para se associar e para poder atingir as mais altas finalidades a que é chamada362.

O princípio do destino universal dos bens da Terra está na base do direito universal ao uso dos bens. Todo o homem deve ter a possibilidade de usufruir do bem-estar necessário para o seu pleno desenvolvimento: o princípio do uso comum dos bens é o «primeiro princípio de toda a ordem ético-social»363 e «o princípio típico da doutrina social cristã»364. Por esta razão a Igreja considerou necessário precisar-lhe a natureza e as características. Trata-se, antes de mais, de um direito natural, inscrito na natureza do homem, e não de um direito somente positivo, ligado à contingência histórica; além disso, tal direito é «fundamental»365. É inerente à pessoa singularmente considerada, a cada pessoa, e é prioritário em relação a qualquer intervenção humana sobre os bens, a qualquer regulamentação jurídica dos mesmos, a qualquer sistema e método económico-social: «Todos os outros direitos, quaisquer que sejam, incluindo os de propriedade e de comércio livre, estão-lhe subordinados [ao destino universal dos bens]: não devem portanto impedir, mas, pelo contrário, facilitar a sua realização; e é um dever social grave e urgente conduzi-los à sua finalidade primeira»366.

princípio do destino universal dos bens convida a cultivar uma visão da economia inspirada em valores morais que permitam nunca perder de vista nem a origem, nem a finalidade de tais bens, de modo a realizar um mundo equitativo e solidário em que a formação da riqueza possa assumir uma função social. A riqueza, com efeito, apresenta esta valência, na multiplicidade das formas que podem exprimi-la como o resultado de um processo produtivo de elaboração técnico-económica dos recursos disponíveis, naturais e derivados, guiado pela inventiva, pela capacidade de concretizar projectos, pelo trabalho humano, e empregada como meio útil para promover o bem-estar dos homens e dos povos e para lhes evitar a exclusão e a exploração.

O princípio do destino universal dos bens requer que se cuide com particular solicitude dos pobres, daqueles que se acham em posição de marginalidade e, em todo o caso, das pessoas cujas condições de vida impedem o seu crescimento adequado. A esse propósito deve ser reafirmada, em toda a sua força, a opção preferencial pelos pobres384. «Trata-se de uma opção, ou de uma forma especial de primado na prática da caridade cristã, testemunhada por toda a Tradição da Igreja. Ela diz respeito à vida de cada cristão, enquanto deve ser imitação da vida de Cristo; mas aplica-se igualmente às nossas responsabilidades sociais e, por isso, ao nosso viver e às decisões que temos de tomar, coerentemente, acerca da propriedade e do uso dos bens. Mais ainda: hoje, dada a dimensão mundial que a questão social assumiu, este amor preferencial, com as decisões que nos inspira, não pode deixar de abranger as imensas multidões de famintos, de mendigos, sem-tecto, sem assistência médica e, sobretudo, sem esperança de um futuro melhor»385.

O amor da Igreja pelos pobres inspira-se no Evangelho das bem-aventuranças, na pobreza de Jesus e na sua atenção aos pobres. Tal amor refere-se à pobreza material e também às numerosas formas de pobreza cultural e religiosa 389. A Igreja, «desde as origens, apesar das falhas de muitos dos seus membros, nunca deixou de trabalhar por aliviá-los, defendê-los e libertá-los; fê-lo através de inúmeras obras de beneficência, que continuam indispensáveis, sempre e em toda a parte»390. Inspirada no preceito evangélico «recebestes de graça, dai de graça» (Mt 10, 8), a Igreja ensina a socorrer o próximo nas suas várias necessidades e difunde na comunidade humana inúmeras obras de misericórdia corporais e espirituais. «Entre todos estes gestos, a esmola dada aos pobres é um dos principais testemunhos da caridade fraterna e também uma prática de justiça que agrada a Deus»391, ainda que a prática da caridade não se reduza à esmola, mas implique a atenção à dimensão social e política do problema da pobreza. O ensinamento da Igreja retorna constantemente a esta relação entre caridade e justiça: «Quando damos aos pobres as coisas indispensáveis, não praticamos com eles grande generosidade pessoal, mas devolvemos-lhes o que é deles. Cumprimos um dever de justiça e não um acto de caridade»392. Os Padres Conciliares recomendam fortemente que se cumpra tal dever para que não «se ofereça como dom da caridade aquilo que já é devido a título de justiça»393. O amor pelos pobres é certamente «incompatível com o amor imoderado das riquezas ou com o uso egoísta das mesmas»394 (cf. Tg 5, 1-6).

O princípio da subsidiariedade protege as pessoas dos abusos das instâncias sociais superiores e chama estas últimas a ajudar os indivíduos e os corpos intermédios a desempenhar as próprias funções. Este princípio impõe-se porque cada pessoa, família e corpo intermédio tem algo de original para oferecer à comunidade. A experiência revela que a negação da subsidiariedade ou a sua limitação em nome de uma pretensa democratização ou igualdade de todos na sociedade limita e, às vezes, também anula o espírito de liberdade e de iniciativa.
Com o princípio da subsidiariedade estão em contraste formas de centralização, de burocratização, de assistencialismo, de presença injustificada e excessiva do Estado e do aparato público: «Ao intervir directamente, irresponsabilizando a sociedade, o “Estado assistencial” provoca a perda de energias humanas e o aumento exagerado do sector estatal, dominado mais por lógicas burocráticas do que pela preocupação de servir os utentes e levando a um acréscimo enorme das despesas»400. A falta de reconhecimento ou o reconhecimento inadequado da iniciativa privada, também económica, e da sua função pública, bem como os monopólios, concorrem para mortificar o princípio da subsidiariedade.
À actuação do princípio da subsidiariedade correspondem: o respeito e a promoção efectiva do primado da pessoa e da família; a valorização das associações e das organizações intermédias, nas próprias opções fundamentais e em todas as que não podem ser delegadas ou assumidas por outros; o incentivo oferecido à iniciativa privada, de tal modo que cada organismo social, com as próprias peculiaridades, permaneça ao serviço do bem comum; a articulação pluralista da sociedade e a representação das suas forças vitais; a salvaguarda dos direitos humanos e das minorias; a descentralização burocrática e administrativa; o equilíbrio entre a esfera pública e a privada, com o consequente reconhecimento da função social do privado; uma adequada responsabilização do cidadão no seu «ser parte activa» da realidade política e social do País.


A subsidiariedade está entre as mais constantes e características directrizes da doutrina social da Igreja, presente desde a primeira grande encíclica
social395. É impossível promover a dignidade da pessoa sem que se cuide da família, dos grupos, das associações, das realidades territoriais locais, por outras palavras, daquelas expressões agregativas de tipo económico, social, cultural, desportivo, recreativo, profissional, político, às quais as pessoas dão vida espontaneamente e que lhes tornam possível um efectivo crescimento social396. É este o âmbito da sociedade civil, entendida como o conjunto das relações entre indivíduos e entre sociedades intermédias, que se realizam de forma originária e graças à «subjectividade criadora do cidadão»397. A rede destas relações inerva o tecido social e constitui a base de uma verdadeira comunidade de pessoas, tornando possível o reconhecimento de formas mais elevadas de sociabilidade398.

A mensagem da doutrina social acerca da solidariedade realça a existência de estreitos vínculos entre solidariedade e bem comum, solidariedade e destino universal dos bens, solidariedade e igualdade entre os homens e os povos, solidariedade e paz no mundo420. O termo «solidariedade», amplamente empregado pelo Magistério421, exprime em síntese a exigência de reconhecer, no conjunto dos liames que unem os homens e os grupos sociais entre si, o espaço oferecido à liberdade humana para prover ao crescimento comum, que todos partilhem. A aplicação nesta direcção traduz-se no positivo contributo que não se há-de deixar faltar à causa comum e na busca dos pontos de possível acordo, mesmo quando prevalece uma lógica de divisão e fragmentação; na disponibilidade para se consumir pelo bem do outro, para além de qualquer individualismo e particularismo422.

O princípio da solidariedade implica que os homens do nosso tempo cultivem uma maior consciência da dívida que têm para com a sociedade na qual estão inseridos: eles são devedores daquelas condições que tornam possível e vivível a existência humana, bem como do património, indivisível e indispensável, constituído pela cultura, pelo conhecimento científico e tecnológico, pelos bens materiais e imateriais, por tudo aquilo que a história da humanidade produziu. Uma tal dívida há-de ser honrada nas várias manifestações do agir social, de modo que o caminho dos homens não se interrompa, mas continue aberto às gerações presentes e às futuras, chamadas juntas, umas e outras, a compartilhar na solidariedade o mesmo dom.

A liberdade é no homem sinal altíssimo da imagem divina e, consequentemente, sinal da sublime dignidade de toda a pessoa humana 435: «A liberdade exercita-se nas relações entre seres humanos. Toda a pessoa humana, criada à imagem de Deus, tem o direito natural de ser reconhecida como ser livre e responsável. Todos devem a todos este dever do respeito. O direito ao exercício da liberdade é uma exigência inseparável da dignidade da pessoa humana»436.
Não se deve restringir o significado da liberdade, considerando-a numa perspectiva puramente individualista e reduzindo-a ao exercício arbitrário e incontrolado da própria autonomia pessoal: «Longe de realizar-se na total autonomia do eu e na ausência de relações, a liberdade só existe verdadeiramente quando laços recíprocos, regidos pela verdade e pela justiça, unem as pessoas»437. A compreensão da liberdade torna-se profunda e ampla na medida em que é tutelada, também no âmbito social, na totalidade das suas dimensões.

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