sexta-feira, 11 de julho de 2008

Santa Casa da Misericórdia de Benavente

Acórdãos STJ Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo: 04B4525

Nº Convencional: JSTJ000
Relator: CUSTÓDIO MONTES
Descritores: IGREJA CATÓLICA
CONCORDATA
MISERICÓRDIAS
ADMINISTRAÇÃO
TRIBUNAL COMUM
COMPETÊNCIA MATERIAL

Nº do Documento: SJ200501270045257
Data do Acordão: 27-01-2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 5474/04
Data: 30-07-2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.

Sumário : 1. O art. III da Concordata de 1940 reconhece à Igreja Católica o poder de se organizar livremente de harmonia com as normas do Direito Canónico, e constituir, por essa forma, associações ou organizações, a que o Estado reconhece personalidade jurídica, no condicionalismo aí referido, sendo as mesmas administradas sob a vigilância e fiscalização da competente autoridade eclesiástica.
2. Se tais associações, além de fins religiosos, se propuserem também fins de assistência e beneficência, ficam, na parte respectiva, sujeitas ao regime instituído pelo direito português para estas associações ou corporações, que se tornará efectivo através do Ordinário competente, conforme dispõe o art. IV da referida Concordata.
3. Interpretando este segmento da norma concordatária, o legislador, no DL 119/83, de 25.2, definiu as áreas de tutela do Estado e as da Igreja Católica.
4. No caso das Misericórdias, associações de fiéis, constituídas na Ordem Jurídica Canónica, cabe ao Ordinário diocesano a aprovação dos respectivos corpos gerentes.
5. Essa aprovação abrange as irregularidades na admissão de "irmãos", bem como as do respectivo processo eleitoral.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


"A", B, C, D, E, F, G, H, I e J, todos membros da Santa Casa da Misericórdia de Benavente, na providência cautelar que moveram contra esta, interpuseram recurso de agravo do Acórdão da Relação de Lisboa, proferido nos autos, que, para além do mais, negou provimento ao agravo por eles interposto, confirmando a decisão da 1.ª instância que julgou o tribunal incompetente em razão da matéria.
Terminou as suas alegações com as seguintes

Conclusões

1. A Mm.ª Juíza do Tribunal "a quo" não se pronunciou sobre a competência do tribunal para apreciar o primeiro pedido formulado pelos recorrentes, o da anulação da deliberação tomada em Reunião da mesa Administrativa da recorrida, realizada no dia 16 de Outubro de 2003, omitindo absolutamente, quanto a este pedido, qualquer decisão;

2. A Mm.ª Juíza "a quo" cingiu a sua decisão de se considerar absolutamente incompetente em razão da matéria, apenas quanto ao segundo pedido formulado pelos Recorrentes, o da anulação das deliberações tomadas na Reunião da Assembleia Geral do dia 21 de Novembro de 2003.

3. Os dois pedidos em causa são autónomos e distintos entre si e requerem um conhecimento separado e cumulativo. Não alternativo.

4. Ainda que os dois pedidos formulados pelos Recorrentes estejam numa relação de prejudicialidade entre si, é precisamente a análise do primeiro pedido (em relação ao qual a Mm.ª Juíza "a quo" não se pronunciou) que prejudica a análise do segundo.

5. Pelo que, quando a Mm.ª Juíza "a quo" se pronunciou sobre a competência do Tribunal, deveria tê-lo feito em relação a ambos os pedidos e não apenas em relação a um só pedido.

6. Já que, não se pode extrair, da decisão ora recorrida, a conclusão de que o Tribunal se considerou também incompetente para conhecer do primeiro pedido formulado pelos Recorrentes.

7. Donde se retira que o Tribunal "a quo" não especificou, como devia, os fundamentos de facto e de direito que justificam a sua decisão, ou seja, em relação aos factos subjacentes aos dois pedidos formulados, não os separou, diferenciou ou especificou, a fim de se poderem distinguir e sobre eles assentar o regime jurídico adequado, em suma, não apreciou a competência para conhecer de todas as questões levantadas pelos Recorrentes.

8. Mais do que ausência absoluta de motivação, existe por parte do Tribunal "a quo" ausência absoluta de decisão quanto a um dos pedidos.

9. Por outro lado, o Tribunal "a quo"decidiu mal ao declarar-se absolutamente incompetente em razão da matéria para conhecer das irregularidades respeitantes à eleição dos corpos gerentes da Recorrida, com o fundamento de que se trata de matéria da exclusiva competência do Ordinário Diocesano, conforme dispõem os art.s 48.º e 49.º do DL n.º 119/83, de 25/02.

10. Aqueles preceitos legais apenas se devem aplicar às Instituições de cariz exclusivamente religioso, o que não é o caso da Recorrida, uma Irmandade da Santa Casa da Misericórdia que se encontra equiparada às Instituições de Solidariedade Social exactamente porque tem como objectivos primordiais fins ligados à acção social

11. As Instituições com objectivos marcadamente sociais embora, também, de cariz religioso, como é o caso da Recorrida, não deverão ser tuteladas pelo Ordinário Diocesano, visto que esta tutela não contempla o poder de verificação e de anulação de actos irregulares e/ou ilegais, o qual é próprio dos Tribunais, no caso em apreço, dos Tribunais Comuns por força das regras gerais sobre a competência material dos Tribunais.

12. A tutela do Ordinário Diocesano é, aqui, apenas uma tutela de vigilância do cumprimento dos princípios que regem este tipo de Instituições.

13. A eleição dos corpos gerentes das Misericórdias, Instituições similares às de Solidariedade Social, é um acto que não diz respeito apenas à vida interna da Instituição, visto que se repercute na relação desta com os associados e com terceiros que beneficiam da sua acção social, pelo seu modo de gestão e regular funcionamento;

14. Porque os fins deste tipo de Instituições são essencialmente de interesse público, cabe ao Estado exercer sobre elas a sua tutela e esta só por meio dos Tribunais pode ser efectivada;

15. A eleição em causa padece de muitos e graves vícios, que não se cingem apenas a violações do estatuto da Recorrida, mas também a violações que poderão indiciar a prática de crimes, exigindo-se, assim, uma intervenção da tutela do Estado, o único capaz de responder a este tipo de questões;

16. Ou seja, os pedidos formulados pelos Recorrentes, incluindo a anulação das irregularidades da eleição dos corpos gerentes, não se cingem a um mero controlo da vida interna da Recorrida. Antes dizem respeito a actos de interesse público, que se manifestam na relação com os associados e com os beneficiários da Instituição devendo, em consequência ser o Estado, através dos Tribunais, a fiscalizá-los e a tutelá-los.

17. Em suma, a Mm.º Juíza ao ter decidido da forma que decidiu, violou, entre outros, o disposto no art. 668.º, n.º 1, als. b) e d) e ainda o disposto nos art.s 7.º, do DL n.º 519-G2/79, de 29/12,98.º, al. b), do DL 119/83, de 25/02, e 66.º e 67.º do Código de Processo Civil.

18. Bem como, decidindo como decidiu, o Tribunal da Relação ao negar provimento às pretensões dos Recorrentes e confirmando a decisão do Tribunal "a quo" viola todos os supra citados preceitos legais.

Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, confiando como sempre no douto suprimento de V. Exs. Senhores Juízes Conselheiros, dado o reduzido mérito destas alegações, deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, declarar-se nula a douta decisão recorrida.

Caso assim não se entenda, devem V. Ex.as, ainda assim, revogar a douta decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que declare o Tribunal "a quo" competente em razão da matéria.

Contra alegou a recorrida, em defesa da decisão impugnada.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

Matéria de facto considerada pelo Acórdão recorrido, face ao alegado pelos recorrentes na P.I.:

1. Os requerentes instauraram contra a requerida "procedimento cautelar comum" formulando o seguinte
Pedido:

"Ser a requerida intimada, na pessoa do Sr. Presidente da Mesa da Assembleia Geral, no sentido de se abster de dar posse aos membros da lista B, de os investir nos respectivos cargos, sob pena de se correr o grave risco de pessoas não habilitadas, nem legitimadas para os cargos, praticarem actos lesivos da boa gestão e administração do património da Instituição" - posse marcada para o dia 2.1.04.

2. Como fundamento desse pedido, alegaram que:
a. A requerida é uma instituição constituída na Ordem Canónica, para satisfação de carências sociais, nas variadas valências, prestando apoio domiciliário, centro de dia, internamento de idosos e assistência médica;
b. A deliberação de 16.10.2003, tomada na reunião da mesa da requerida, é ilegal, e por isso anulável, porquanto admitiu 16 elementos como "irmãos", sem cumprir os requisitos legais, quanto à forma de apresentação das propostas e ao método da sua aprovação;
c. No dia 21 de Novembro de 2003, realizou-se uma reunião da assembleia-geral da requerida, com vista à eleição dos seus corpos gerentes;
d. Tal reunião decorreu de forma irregular com violação do estatuto da requerida (Compromisso), o que determina a anulação dessa reunião;
e. As deliberações tomadas na referida reunião de 2 de Novembro enfermam dos seguintes vícios:
» Falta de anúncio da convocatória no jornal local;
» Falta de lista de presenças donde conste a discriminação dos irmãos presentes e dos irmãos representados na votação d credenciais;
» Participação na reunião da assembleia-geral de "irmãos" ilegalmente admitidos por violação do Compromisso, facto que é impeditivo da aquisição por estes de todos os direitos sociais, incluindo os de serem eleitos e os de eleger;
»Admissão à votação da lista B, que incluía como candidatos dois membros que não reunia os requisitos de elegibilidade;
» Desaparecimento do processo eleitoral, após o encerramento dos trabalhos da assembleia-geral, o que suscita fundada desconfiança de que o resultado eleitoral terá sido viciado;
» Um dos membros efectivos eleito para a mesa da assembleia, integrado na lista B, é filho de outro membro efectivo eleito para a mesa administrativa, o que os impede de exercer as respectivas funções, gerando a incapacidade legal de ambos os órgãos e a sua perda de independência e a consequente paralisação da instituição.
Para decidir a questão da incompetência material do tribunal, o Acórdão da Relação considerou ainda que

3. A Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Benavente, abreviadamente denominada Santa Casa da Misericórdia de Benavente, ora requerida, é uma associação de fiéis, fundada em 1232, constituída da Ordem Jurídica Canónica para satisfação de carências sociais e para a realização de actos de culto católico, de harmonia com o seu espírito tradicional, informado pelos princípios da doutrina e da moral cristãs, conforme se consigna no n.º 1 do artigo 1.º do respectivo "Compromisso" (estatutos) constantes de fls. 119 e segts.
4. Segundo o n.º 3 do art. 1.º do referido "Compromisso", a aquisição da personalidade jurídica civil da Irmandade e o seu reconhecimento como instituição privada de solidariedade social são operados mediante participação escrita da sua erecção canónica, feita pelo Ordinário diocesano aos serviços competentes do Estado;
5. E nos termos plasmados no n.º 4 do mencionado artigo 1.º, em conformidade com a natureza que lhe provém das sua erecção canónica, a Irmandade está sujeita ao Ordinário diocesano, de modo similar ao das demais associações de fiéis;
6. De acordo com o art. 26.º, 1 do sobredito "Compromisso", os corpos gerentes da irmandade são a assembleia geral, a mesa administrativa e o definitório ou conselho fiscal;
7. Todos esses corpos são eleitos por períodos de três anos civis (n.º 2 do art. 26.º), nas condições e termos estabelecidos nos arts. 53.º a 56.º do mesmo "Compromisso".
O direito

Antes de mais, cumpre delimitar o objecto do recurso.

Embora balizado pelas conclusões, deve referir-se que este Supremo Tribunal apenas versará sobre a questão da competência material porque, em principio, o recurso de agravo na 2.ª instância apenas é admissível no contexto do art. 754.º, 2 do CPC.

A lei apenas excepciona, para além dos casos referidos no n.º 3 (1) do art. 678.º e na al. a) (2) do n.º 1 do art. 734.º, o caso dos autos, previsto no citado art. 678.º, n.ºs 2 (3).

As demais questões, a ter provimento o agravo, não são da competência do Supremo Tribunal de Justiça, bem como o agravo interposto pela requerida cujo conhecimento só não ocorreu por ter ficado prejudicado pela decisão ora agravada, como se vê da parte final do acórdão em causa.

Por outro lado, os recorrentes aludem a dois pedidos mas o pedido formulado é apenas um, como acima se deixou dito: "ser a requerida intimada, na pessoa do Sr. Presidente da Mesa da Assembleia Geral, no sentido de se abster de dar posse aos membros da lista B, de os investir nos respectivos cargos, sob pena de se correr o grave risco de pessoas não habilitadas, nem legitimadas para os cargos, praticarem actos lesivos da boa gestão e administração do património da Instituição" - posse marcada para o dia 2.1.04.

Não se conhecerão, por isso, as primeiras 8 conclusões que respeitam a uma alegada omissão de pronúncia.

A questão, pois, a decidir consiste em saber se o tribunal comum é o competente em razão da matéria para conhecer do pedido formulado, em face da causa de pedir que o sustenta.

No Acórdão sob análise negou-se provimento ao agravo e confirmou-se a decisão recorrida que havia declarado incompetente o tribunal em razão da matéria, por considerar que a questão da regularidade das eleições cabia em exclusivo ao Ordinário diocesano, absolvendo a requerida da instância.

E pensamos que a decisão ora impugnada fez correcta aplicação do direito.

Apelando aos cânones 298.º, 299.º, 304.º §1., 312.º §1 e 322§2 do Código de Direito Canónico (CDN), aludiu-se à possibilidade de os fiéis poderem, por meio de convénio privado, constituírem associações para promover o culto ou a doutrina cristã, ou outras obras de apostolado.., o exercício de obras de piedade ou de caridade; à necessidade de serem dotadas de estatutos que determinem o objectivo social da associação, o seu modo de agir, bem como o regime e condições necessárias para a elas pertencer; que os estatutos respectivos devem ser aprovados pela autoridade eclesiástica.

Aludiu também ao disposto na 2.ª parte do art. IV da Concordata de 1940 (4), concluindo, como Quelhas Bigote, citado no Ac. do STJ de 11.7.85 (5), que "incumbe ao ordinário diocesano organizar e dirigir a vida assistencial no ponto de vista económico e financeiro das associações segundo as leis que o Estado para o efeito promulgue".

Por fim, analisou o DL n.º 119/83, de 25.2, à luz do espírito que presidiu à mencionada Concordata, concluindo que a tutela do Estado definida nos art.s 32.º e seguintes, não se estende às eventuais irregularidades que envolveram o processo eleitoral da requerida, por tal competência pertencer ao Ordinário diocesano, nos termos do art. 48.º do mencionado Diploma Legal.

Para confirmar o Acórdão, bastaria remeter para a fundamentação aí expendida, no contexto do art. 713.º, 5 do CPC.

Teceremos, no entanto, breves considerações, em ordem a robustecer o entendimento sustentado.

"Segundo o critério da exclusividade,(6) a acção deve ser proposta em Portugal quando os tribunais portugueses sejam competentes para a apreciação da causa (artºs 65.º, 1, b) e 65.º-A). A competência internacional resulta, assim, da coincidência com as regras de competência exclusiva constantes do art.65.º-A".

E, segundo o art. 65.º-A, (7) "sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos e leis especiais, os tribunais portugueses têm competência exclusiva para c) as acções relativas à apreciação da validade do acto constitutivo ou ao decretamento da dissolução de pessoas colectivas ou sociedades que tenham a sua sede em território português, bem como à apreciação da validade das deliberações dos respectivos órgãos".

À face destes normativos e da Concordata de 1940, firmada entre o Estado Português e a Santa Sé, nenhum conflito se levanta acerca da competência dos tribunais Portugueses, até por a matéria em análise nestes autos não estar reservada para o tribunais eclesiásticos, conforme se vê do art. XXV dessa convenção. (8)

Aliás, ninguém levantou esta questão nem ela se suscita, por, no caso, não haver qualquer concorrência de jurisdições (9) .

A questão dos autos tem a ver, como acima se disse, com a competência do tribunal em razão da matéria e prende-se com a interpretação do art. IV, parte final da Concordata/1940, em conjugação com o disposto no art. 48.º do DL 119/83, de 25.2.

Como se diz no preâmbulo da Concordata, as partes visaram "concluir entre si uma solene Convenção que reconheça e garanta a liberdade da Igreja e salvaguarde os legítimos interesses da Nação Portuguesa"

Daí que, no art. III se reconheça à Igreja o poder de se organizar livremente de harmonia com as normas do Direito Canónico, e constituir por essa forma associações ou organizações a que o Estado reconhece personalidade jurídica, bastando que, depois de canonicamente erectas, seja feita participação escrita à Autoridade competente pelo Bispo da diocese, onde as mesmas tiverem a sua sede.

Essas associações ou organizações "administram-se livremente sob a vigilância e fiscalização da competente Autoridade eclesiástica". (10)

"Se, porém, além de fins religiosos, se propuserem também fins de assistência e beneficência em cumprimento de deveres estatutários ou de encargos que onerem heranças, legados ou doações, ficam, na parte respectiva, sujeitas ao regime instituído pelo direito português para estas associações ou corporações, que se tornará efectivo através do Ordinário competente e que nunca poderá ser mais gravoso do que o regime estabelecido para as pessoas jurídicas da mesma natureza". (11)

Sobre a matéria em questão, ensina Marcelo Caetano, (12). que o princípio é este: se as associações ou institutos religiosos têm por "fim o exercício de actividades especificamente religiosas, são estranhas à Administração Pública"; se se propuserem "também fins de assistência ou de beneficência,".em tal hipótese, e dada a coincidência destes fins com as atribuições da Administração Pública, aquelas associações e estes institutos ficam sujeitos ao regime legal das pessoas colectivas de utilidade pública administrativa, sem prejuízo da sua autonomia e da disciplina e espírito religiosos que os informam (lei da liberdade religiosa, base XIV, e C. Adm., arts. 453.º e 454.º"

Apesar de frisar bem que, "quanto à actividade assistencial" tais associações ficam sujeitas ao "regime comum" e, consequentemente, à inspecção e tutela administrativas", Marcelo Caetano, (13) opina: "".parece que não pode deixar de lhes ser aplicável a doutrina Concordatária, de recepção do direito canónico não apenas quanto ao reconhecimento mas também relativamente ao regime de funcionamento, nem pode deixar de se atender ao fim principal dos estatutos. Quanto à actividade assistencial, essa, nos termos também da Concordata e das leis do Estado, fica sujeita à inspecção e tutela administrativa"

Também José António Martins Gigante (14) diz que "as associações canonicamente erectas reconhecidas pelo Estado, se, além dos fins religiosos, se propuserem outros fins de assistência ou beneficência em cumprimento de deveres estatutários ou de encargos que onerem heranças, legados ou doações por elas aceites, ficam sujeitas ao regime instituído pelo Direito Português para estas associações"

Mas logo a seguir refere que "os institutos de assistência ou beneficência fundados, dirigidos ou sustentados por associações religiosas ficam sujeitos ao regime legal dos restantes institutos de utilidade local de fins análogos, sem prejuízo da disciplina e espírito religiosos que os informam".

Por outro lado, Pedro Lombarda e Juan Ignacio Arrieta (15) escrevem: "indica-se o âmbito jurídico da igreja servindo-se da matéria jurídica. Omitiu-se, em contraposição com o que o c. 1553 CIC 17 estabelecia, toda a referência ao privilégio do foro e às chamadas causas de foro misto, que se regiam pelo critério da prevenção. Com isto prende-se a destrinçar a própria zona jurisdicional da igreja das correspondentes às comunidades políticas, em cujos territórios e sobre cujos cidadãos também desenvolve a sua actividade"; nas coisas exclusivamente espirituais, "não têm que surgir conflitos com o Estado" mas "nas coisas anexas às espirituais, de tanta incidência sobretudo no campo patrimonial, não deixarão de se propor esses conflitos, tão pouco poderão evitar-se quando o Estado, invocando a plenitude do seu ordenamento, deseje indevidamente invadir zonas jurisdicionais que pertençam ao âmbito religioso". (16)

Ora, no caso dos autos, sendo a requerida "uma Associação de Fiéis, constituída na Ordem Jurídica Canónica, para a satisfação de carências sociais e para a realização de actos de culto católico, tudo de harmonia com o seu espírito tradicional, informado pelos princípios da doutrina e da moral cristãs" (17), ocorre resolver o conflito que se suscita nesta questão de foro misto, e que consiste em saber se a matéria da regularidade das eleições para os corpos gerentes da requerida cabe aos tribunais ou se cabe em exclusivo ao Ordinário diocesano, como se decidiu no Acórdão sob recurso.

O Dec. Lei n.º 119/83, de 25.2 (18) "contém essencialmente normas respeitantes à constituição, modificação, extinção e organização interna das instituições, bem como a enunciação dos poderes de tutela atribuídos ao Estado".

No preâmbulo, a que este trecho pertence, diz-se, no n.º 5, que "de entre as alterações introduzidas no Estatuto, cumpre destacar: a) a autonomização, em capítulo próprio, das normas que integram o regime especial das organizações religiosas, com uma secção especial para as pessoas da igreja católica, obtendo-se assim uma maior coerência desse regime e evitando-se alguma indeterminação (19) resultante da mera remissão para as disposições da Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa".

Há, pois, aqui uma preocupação do Estado Português em distinguir, nas instituições particulares de solidariedade social da igreja católica, à luz da Concordata e do direito canónico e sua interpretação, o que é de natureza espiritual e o que é de natureza temporal.

E essa distinção vem consagrada na Secção III do capítulo I, arts. 32.º a 36.º, quanto à tutela do Estado e, por outro lado, na Secção II do capítulo II, arts. 44.º a 51, a que contém as "disposições especiais para as instituições da igreja católica".

No art. 32.º enumeram-se os actos sujeitos a autorização dos serviços competentes, todos relacionados com bens materiais.

No art. 33.º estatui-se que, embora os orçamentos e as contas (20) das instituições sejam aprovados pelos corpos gerentes, nos termos estatutários, carecem de visto dos serviços competentes - n.º 1.

O art. 34.º define os termos da fiscalização do Estado: "os serviços poderão ordenar a realização de inquéritos, sindicâncias e inspecções às instituições e seus estabelecimentos".

Por fim, cabe ainda referir, no que toca à economia da presente decisão, que o art. 35.º alude à destituição dos corpos gerentes, "quando se verifique a prática reiterada pelos corpos gerentes de actos de gestão prejudiciais aos interesses das instituições, os órgãos de tutela poderão pedir judicialmente a destituição dos corpos gerentes", regulando o respectivo processo; e o art. 36.º permite ao ministério público requerer, com dependência do procedimento referido no art. anterior, a suspensão dos corpos gerentes e a nomeação de um administrador judicial, quando se verifique a "necessidade urgente de salvaguardar interesses da instituição, dos beneficiários ou do Estado".

Por seu turno, o art. 48.º define a "tutela da autoridade eclesiástica" do seguinte modo: "sem prejuízo da tutela do Estado, nos termos do presente diploma, compete ao ordinário diocesano, ou à Conferência Episcopal, respectivamente, a orientação das instituições do âmbito da sua diocese, ou de âmbito nacional, bem como a aprovação dos seus gerentes e dos relatórios e contas".

Cabe, pois, ao Ordinário diocesano a orientação das instituições na sua diocese, bem como a aprovação dos seus corpos gerentes e dos relatórios e contas.

Apesar dessa tutela da autoridade eclesiástica (o Ordinário diocesano), o Estado reservou para si, quanto às contas, a seguinte tutela: "carecem de visto dos serviços competentes".

No entanto, quanto à aprovação dos gerentes dessas associações, nenhuma tutela reservou para si o Estado, o que resulta também, e é reafirmado, ao se regularem os casos da destituição destes e da suspensão dos corpos gerentes, sem que os casos previstos contendam com a sua eleição ou aprovação.

Aí, trata-se de matéria da vida interna da associação, sem repercussão no fim assistencial, ou, pelo menos, assim o entendeu o legislador.(21)

E essa "aprovação" dos corpos gerentes abrange a verificação da regularidade da sua eleição porque doutra forma, tal acto limitar-se-ia "à aposição de uma chancela", sendo certo que tais actos "não respeitam" ao fim de assistência ou de solidariedade social que a instituição se propõe realizar, mas à sua vida interna", como acertadamente se refere no citado Ac. do STJ de 11.7.85.

E compreende-se esta separação entre as vertentes social e religiosa, no caso em análise, porque a selecção dos irmãos depende da verificação das condições exigidas pelo art. 7.º do Compromisso (22), que, naturalmente, não podem ser sindicadas pelos tribunais mas, antes, pelo Ordinário diocesano, designadamente a que vem descrita na al. d) desse normativo. (23)

Uma das razões fundamentais porque se impugnam as deliberações de 16.10.03 e de 21.11.03 prende-se com a admissão de 16 irmãos "sem cumprir os requisitos legais, quanto à forma de apresentação das propostas e ao método da sua aprovação", na primeira e, a participação destes no colégio eleitoral, na segunda.

Questões, que, como se deixa exposto, apenas podem ser sindicadas pela autoridade eclesiástica e, consequentemente, as violações invocadas nas duas deliberações.

É certo que, como se diz no Acórdão sob recurso, as Misericórdias se regem pelo respectivo "Compromisso" quanto à convocação, funcionamento e competência deliberativa, e, nos casos omissos, pelo regime previsto nos arts. 12.º a 21.º, por remissão do art. 69.º, 1 do EIPSS (24).

No entanto, esse n.º 1 do art. 69.º não deixa, a final, de excepcionar "as sujeições canónicas que lhe são próprias", ressalvando outrossim o n.º 3 da aplicação do preceituado no n.º 1 "tudo o que especificamente respeita às actividades estranhas aos fins de solidariedade social".

Assim interpretado o contido na parte final do art. IV da Concordata, pode concluir-se que, no caso dos autos, quando a lei (25) diz que cabe ao Ordinário diocesano a "aprovação" dos corpos gerentes da associação, significa que é a ele que cabe também a apreciação das eventuais irregularidades ocorridas na sua eleição e não ao tribunal. (26)

A este caberá a resolução dos problemas que não sejam da tutela da igreja católica, como sejam os casos graves previstas no art. 63.º do EIPSS, como refere o art. 32.º, 3 do Compromisso da requerida, (27) competindo à entidade tutelar comunicar ao ministério público as situações de irregularidade de que tenha conhecimento.

Por outro lado, o caso dos autos não revela matéria integrável no art. 7.º do DL 519-G2/79, que se mantém em vigor. (28)

Assim, o deliberado pelo Acórdão sob recurso está devidamente fundamentado e não merece a crítica que lhe é feita pelos requerentes, pelo que se deve manter.

Decisão

Pelo exposto, nega-se provimento ao agravo, mantendo-se a decisão impugnada.

Custas pelos agravantes.

Lisboa, 27 de Janeiro de 2005
Custódio Montes
Neves Ribeiro
Araújo Barros
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(1) Decisões respeitantes ao valor da causa, dos incidentes ou dos procedimentos cautelares, com fundamento de que o seu valor excede a alçada do tribunal de que se recorre.
(2) Decisão que ponha termo à causa.
(3) Violação das regras de competência internacional, em razão da matéria ou da hierarquia ou a ofensa de caso julgado, independentemente do valor da causa.
(4) É esta a aplicável porque a actual apenas entrou em vigor em 18.12.04.
(5) Como ensina Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre o Novo Processo civil, 2.ª ed., pág. 113.
(6) CPC.

(7) BMJ 349, 436.
(8) Apenas se reserva aos tribunais e repartições eclesiásticas competentes "o conhecimento das causas concernentes à nulidade do casamento católico e à dispensa do casamento rato e não consumado".
(9) Como diz Ancelmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. II, pág. 2, «se tanto a causa de pedir, como o pedido e as partes mantêm tão somente relação com o território nacional, não se levantará, como é óbvio, qualquer questão de concorrência de jurisdições».
(10) Art. IV 1.ª parte.
(11) Art. IV, 2.ª parte e sublinhados nossos.
(12) Manual de Direito Administrativo, Vol. I pág. 410 e sublinhados nossos.
(13) Ob. cit., pág. 412.
(14) Instituições de Direito Canónico, Vol. I, 3.ª ed., pág. 628.
(15) Em anotação ao cânone 1401 do Cód. de Direito Canónico Anotado, 1984, pág. 861 que estatui: "por direito próprio e exclusivo, a igreja conhece: 1.º das causas que respeitam a coisas espirituais ou com estas conexas"
(16) AA. e Ob. cits., pág. 862.
(17) Art. 1.º do "Compromisso da Santa Casa da Misericórdia de Benavente".
(18) Que aprova o Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social (EIPSS).
(19) Sublinhado nosso.
(20) Que não estão sujeitas a julgamento do Tribunal de Contas - n.º 2.
(21) No prosseguimento dos objectivos traçados no n.º 5, a) do preâmbulo, acima transcrito: coerência do regime e evitar indeterminação resultante da mera remissão para as disposições da Concordata.
(22) Designadamente a da al. d) do n.º 1: "aceitem os princípios da doutrina e da moral cristãs que informam a Instituição e, consequentemente, não hostilizem, por qualquer meio, designadamente pela sua conduta social ou pela sua actividade pública, a religião Católica e os seus fundamentos."
(23) Essas condições de admissibilidade dos irmãos vêm ressalvadas no art. 70.º, 1 e 2 do DL 119/83.
(24) Por remissão do art. 69.º, 1 do DL 119/83.
(25) Art. 48.º do EIPSS.
(26) Em sentido contrário decidiu o Ac. da Rel de Évora, e 23.2.89, CJ XIV, TI, pág. 253, mas nela se omitiu a expressão da parte final do art IV da Concordata que é do seguinte teor "que se tornará efectivo através do Ordinário competente" e que, no caso, é decisivo.
(27) Alude-se às duas alíneas do n.º 3 do art. 53.º, do DL 519-G2/79, de 29.12, a que corresponde, no DL 119/83, o art. 63.º, 1 , a) e b).
(28) Ver art. 98.º, b) do DL 119/83.

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