terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Considerações Sobre O Bem-Fazer

Isabel Vasco Costa
06/01/2009 08:01:8

As obras de misericórdia resumem as boas acções que o homem pode, e deve, praticar. Creio que qualquer homem normal entende e pratica estas boas obras. O problema levanta-se ao colocar as questões: Quando? Como? A quem? Como saber que a necessidade é genuína e não uma farsa?
Acrescentemos ainda outra pergunta: Onde? Sim, onde praticar as obras de misericórdia com a certeza de eficácia, isto é: 1) proporcionar abrigo a quem não tem tecto, vestir quem não tem roupa, acompanhar os doentes e presos... e ter a certeza de que só com a nossa ajuda essas pessoas deixarão de ser necessitadas; ou 2) dar bom conselho, consolar quem sofre... e não ouvir um insulto como resposta? Existe algum lugar onde a prática das obras de misericórdia seja acessível e segura? Sim, existe! É na família.
Na família! Aí estão a mãe e o pai que sustentam os filhos (e por vezes os pais, outros familiares, empregados e até amigos) e fazem-no não apenas porque oferecem dinheiro (como se faz a um pedinte desconhecido), mas com o seu próprio trabalho: confeccionando as refeições e suportando o peso do cansaço e os incómodos próprios desse labor: calor, golpes, queimaduras, lágrimas na manipulação das cebolas... O mesmo raciocínio se aplica à sede.
Dar abrigo ao peregrino. Qual é o desconhecido que bate à porta sem ser esperado e pede abrigo? O filho! O filho faz-se anunciar. É um desconhecido, mas é bem-vindo porque "vem recomendado". Não é um delinquente ou fora da lei. Os hóspedes são recebidos por amizade, vêm por amizade. Os filhos vêm e são recebidos por amor. Por isso, o seu primeiro lar é junto ao coração, no seio materno. Não entram no lar pela porta, entram pelo coração.
Visitar doentes e prisioneiros! Na família os enfermos são tratados, acompanhados, acarinhados, consolados... amados e amantes. Também eles são agentes de bem-fazer: agradecidos, cooperantes, sujeitando-se aos horários e conveniências de quem os atende, não exigentes nem egoístas, evitando centrar as atenções em si.
E os prisioneiros, onde estão eles na família? Quem não tem liberdade de sair, embora tenha saúde ou, pelo menos, vontade de o fazer? A mãe e o pai, pois claro! Têm de estar nos seus trabalhos e não podem sair. Acabaram-se, pelo menos temporariamente, os jantares fora e as idas ao cinema. Os filhos podem ir, mas os pais não. Talvez o pai leve um dos filhos adolescentes à festa de um amigo, mas a mãe fica em casa a cuidar dos mais novos. Talvez o prisioneiro seja o pequenito que está no parque, um irmão ou avô paralítico após um acidente, a mãe grávida e com gestos lentos, sujeita ao peso e ao cansaço do seu corpo disforme. Esse corpo que irá arrecadando as marcas do seu bem-fazer: cicatrizes das cesarianas, aumento de peso, varizes, estrias de gravidez... O seu consolo virá sobretudo do marido e filhos sob a forma de outra boa obra: consolar os aflitos. Sim, porque num ambiente em que se valoriza mais o corpo do que o espírito, as marcas da maternidade podem ser uma fonte de angústias. Que bem faz o marido se manifesta o seu orgulho e reconhecimento à sua mulher!
Enterrar os mortos. Obra grande é esta! Alcança a humanidade e a criação. Em África, algumas epidemias começam na poluição das águas quando alguém atira para o rio o cadáver de um animal. O enterro evita a poluição da água e do ar e favorece a renovação da terra. A natureza agradece a dádiva, transformando o corpo sem vida em alimento para outras vidas. Para os homens, o enterro é ainda a última manifestação de respeito e carinho que se pode ter para com o corpo de alguém que nos foi querido.
As obras de misericórdia espirituais encontram na família o terreno mais fértil. As palavras de consolo, os bons conselhos, os ensinamentos aos ignorantes... vão fazer eco por muitas gerações, se tiverem lugar na família. Os filhos, netos, sobrinhos... nem se apercebem da sua ignorância quando aprendem a dizer "papá”. Estão ávidos de saber! E vão ensinar os seus filhos a dizer "papá” no mesmo idioma e com a mesma entoação que aprenderam na família.
O consolo é mais profundo se provem de quem sente a mesma dor. As consolações são positivas ou negativas. As alegrias partilhadas com outros aumentam o gozo; são as consolações positivas como vibrar com um golo da equipa preferida: só sabe bem gritar se alguém nos ouve. As tristezas partilhadas dividem-se como por encanto com número de familiares, tornando-se suportáveis. São as consolações negativas, porque contrariam o sofrimento.
Afinal, os fins do matrimónio são eles mesmos obras de bem-fazer: acompanhar, compreender, ajudar o outro na totalidade das suas necessidades e, algo exclusivo da família, acolher e ajudar a desenvolver a vida. A família é, sem dúvida, a nascente do bem-fazer a jorrar para um mar de águas vivas, não estagnadas nem poluídas. Um mar onde tudo quanto está feito é bem.

Diário dos Açores

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