sexta-feira, 3 de outubro de 2008

As actividades creditícias das Misericórdias de Setúbal e Lisboa (sécs. XVIIXVIII) – estudo introdutório*

As actividades creditícias das Misericórdias de Setúbal e Lisboa (sécs. XVIIXVIII)
– estudo introdutório*
Laurinda Abreu**

0. Instituída por mercadores em 1568, a confraria das almas do Purgatório, de Setúbal, recebe a sua primeira capela de missas em 1570, aplicando de imediato os 20 000 réis legados por Isabel Vaz na aquisição de um censo consignativo perpétuo no valor de 1 000 réis. Com esta transacção a confraria fazia a sua entrada no mercado financeiro, o destino do capital que, a partir daí, e com alguma regularidade, lhe era entregue para a celebração de missas pelas almas daqueles que a escolhiam como intercessora no Além. Em 1616 a confraria começa a preferir os censos reservativos a retro, remíveis, portanto, para pouco depois os abandonar a favor do investimento de capitais a juros. Um processo que lhe foi movido pelo provedor da Comarca em 1752, que a acusa de posse e administração indevida de imóveis, nomeadamente devido à consolidação de domínios, revela uma instituição consideravelmente patrimonializada, que consegue provar que os bens que estavam na mira do oficial régio tinham sido adquiridos com dinheiro livre de encargos pios ou arrematados por dívidas de juros não pagos. Apanhada nas teias das leis de desamortização pombalina, informa, no inventário ordenado pelo decreto mariano de 23 de Julho 1793, que o capital que tinha aplicado a juros ultrapassava os oito contos de réis1.
O caso da confraria das Almas é um exemplo típico do comportamento económico das confrarias de Antigo Regime – pelo menos daquelas que tiveram alguma dimensão patrimonial –, com a vantagem de ter um trajecto relativamente bem documentado. E que sumaria quase tudo o que podemos evocar a propósito do papel das instituições religiosas enquanto agentes financeiros: suficiente elasticidade para se movimentarem nas teias institucionais que regulamentavam a economia – e que interditavam a usura –, sem as contrariarem, e capacidade de adaptação às mutações da sociedade, procurando tirar benefícios das transacções que realizavam.
Confrarias como as demais, mas dotadas de especificidades próprias que lhes
conferiam um carácter único no panorama associativo confraternal português, as Santas Casas
de Misericórdia desempenharam um papel de relevo na economia nacional, ainda que esteja
por determinar o lugar relativo que ocuparam. Sem querer simplificar em demasia, parece que
tal se ficou a dever ao facto de terem beneficiado de um conjunto de circunstâncias favoráveis,
temporalmente coincidentes, que as alcandorariam a uma posição que nenhuma outra
confraria conseguiu igualar. Apresentar alguns elementos que ajudem a compreender a
importância das Misericórdias de Setúbal e Lisboa enquanto agentes económicos, é o que
tentaremos fazer de seguida.
1. Criadas pela iniciativa régia nos alvores da Idade Moderna com o propósito de
socorrerem física e espiritualmente os mais necessitados2, as Misericórdias nasciam dando
corpo a uma religiosidade renovada, que procurava revitalizar a medieva «espiritualidade da
beneficência», ao mesmo tempo que apelavam a uma maior intervenção social dos laicos.
Profundamente imbuídas de um espírito caritativo-religioso, viviam da generosidade e das
doações que os fiéis e os poderes instituídos lhes concediam3. Sendo corporações de mãomorta,
não lhes era permitida a posse de bens de raiz, nem D. Manuel I considerava que os
mesmos lhes fizessem falta, já que “a devoção e as esmolas” eram suficientes, nas palavras do
monarca, para que pudessem cumprir as funções que lhes estavam destinadas4.
Seria preciso esperar pelos meados do século XVI para que a situação económica e
jurídica das Santas Casas se alterasse substancialmente. Para tal muito terão contribuído as
intervenções, se não concertadas, pelo menos concomitantes, das elites que as governavam, do
Papado e da Coroa portuguesa5. A passagem dos hospitais civis para a sua administração e
2 Com especial destaque para «os presos pobres e desamparados que nom tem quem lhes requeira seus feitos nem
socorra a suas necessidades». (Cf. Artur de Magalhães Basto, História da Santa Casa da Misericórdia do Porto,
Porto, Santa Casa da Misericórdia do Porto, 1934, p. 164).
3 Sobre formas tão variadas, como esmolas de dinheiro ou açúcar, privilégios e isenções.
4 António de Oliveira, “A Santa Casa da Misericórdia de Coimbra no contexto das instituições congéneres”, in
Memórias da Misericórdia de Coimbra – Documentação & Arte, Coimbra, 2000, p. 28.
5 Veja-se o que escrevemos sobre o assunto, em “O século das Misericórdias”, III Congresso Histórico de
Guimarães, D. Manuel e a sua época, Universidade do Minho, 24 a 27 de Outubro de 2001.
3
tutela, ocorrida durante os reinados de D. Sebastião e D. Henrique, e praticamente concluída
durante o governo filipino, dar-lhes-ia competências excepcionais no campo da assistência, ao
mesmo tempo que reforçava a sua base patrimonial, em expansão durante o século XVII
devido à incorporação dos legados destinados à celebração dos sufrágios das almas do
Purgatório.
Ora, se anteriormente considerámos que a instituição de capelas, quando analisada sob
o prisma da vinculação de propriedade, teve um impacto negativo na economia nacional6, a
situação já se nos afigura diferente quando estudamos as capelas fundadas em numerário. Na
verdade, desde os finais do século XVI, quando o investimento no Purgatório aumenta
exponencialmente, que os arquivos religiosos, mesmo os das pequenas instituições, dão conta
de grandes movimentações em torno do dinheiro das almas, registadas pelos escrivães em
expressões como, «veio entregar o dinheiro deixado por [...], que faleceu ontem [...], e logo
ali se encontrava [...], que disse ser contente vender um censo...». Aplicado na aquisição de
censos ou juros, o dinheiro encapelado funcionava como um factor de dinamização do
mercado de capitais, com particular incidência para o pequeno capital privado.
Proveniente de indivíduos de reduzidas capacidades económicas, este dinheiro
circulava muitas vezes dentro do próprio grupo, já que os vendedores dos censos e os
fundadores das capelas pertenciam ao mesmo estamento social7. São tendeiros, atafoneiros,
pedreiros, mareantes, vendedores, sapateiros, que num momento em que a economia impunha
novas exigências, a que as corporações de ofícios não conseguiam responder, procuravam
soluções económicas junto das confrarias de devoção. Todavia, além de perverso – porque se
alimentava das fragilidades dos devedores, que podiam perder os bens hipotecados caso não
cumprissem as determinações contratuais8 –, o sistema era incapaz de satisfazer as crescentes
6 Cf. “As cidades litorâneas de Setúbal e Lisboa em tempos de Contra-Reforma”, in O litoral em perspectiva
histórica (sécs. XVI-XVIII), Actas. Porto, 2000; e “Algumas considerações a propósito de vínculos”, in Revista
Portuguesa de História, Coimbra, 2002 (Prelo).
7 O que se aqui configura uma realidade algo diferente da encontrada para Lisboa, ainda que para tempos
relativamente mais tardios, já difere do que acontecia com o crédito concedido pelas Misericórdias, como adiante
veremos. (Cf. Maria Manuela Rocha, “Crédito privado em Lisboa numa perspectiva comp arada (séculos XVIIXIX)”,
Análise Social, vol. XXXIII (145), 1998, pp. 108-111).
8 Nalguns casos, a certeza da incapacidade em satisfazer as prestações no tempo determinado levava a que o
devedor, antes do prazo espiar e procurando evitar os processos judiciais impostos, entregasse antecipadamente a
propriedade onerada, fazendo escritura de «desistência e deixação» à entidade credora.
4
solicitações do mercado9. De facto, dada a proveniência da moeda, não seria de esperar que na
maioria destas confrarias se movimentassem grandes quantitativos10. E é aí que as
Misericórdias introduzem um importante factor de diferenciação: o montante dos capitais
envolvidos.
Com efeito, se a composição social dos instituidores das Misericórdias é bastante
eclética, e se essa variedade se reflecte nos valores deixados às almas, também não é menos
certo que uma grande fortuna podia eclipsar dezenas de pequenas fundações. Quer em termos
de património legado11, quer no número de missas que lhe eram impostas. Procurada, na
Misericórdia de Setúbal, a relação entre o tipo de bens doados e o número de missas
solicitadas, constatou-se que 35 % das grandes capelas foram realizadas em numerário –
variando entre os 1 400 000 réis e os 450 000 réis por instituição –, isto sem contabilizar
aquelas que chegavam com a menção expressa de que os bens deveriam ser vendidos e o
dinheiro da venda aplicado a juros12. Orientações que a confraria incentivava, chegando
mesmo a recusar capelas que não lhes permitissem alguma flexibilidade de gestão.
Economicamente fortalecidas quando o empréstimo a juros era socialmente tolerado, e
de uso corrente, não surpreende que as Misericórdias o preferissem como forma de
rentabilizar o seu património. E se a aquisição de censos está quase ausente das suas práticas
administrativas13 – pelo menos na Santa Casa de Setúbal e tudo aponta para que o mesmo
tivesse acontecido na de Lisboa –, e se são poucos os representantes dos ofícios,
especialmente não sendo confrades, encontrados entre os devedores das Misericórdias dos
grandes centros urbanos, quando comparamos as suas operações financeiras com as das
pequenas confrarias, o cenário não difere substancialmente.
Tome-se, aleatoriamente, um exemplo à Misericórdia de Lisboa: em Janeiro de 1582, a
Chancelaria de Filipe I regista um padrão de 100 000 réis a juro que D. Jerónima de
9 Sobre a importância do crédito no mundo dos negócios, para tempos imediatamente anteriores a este, veja-se o
estudo de Filipe Themudo Barata, “Negócios e crédito: complexidade e flexibilidade das práticas creditícias
(século XV)”, Análise Social, vol. XXXI (136-137), 1996 (2º-3º), pp. 683-709.
10 Vendem 500 ou 1000 réis, só muito excepcionalmente 2 000 réis, de censo, por, respectivamente, 10 000 réis,
20 000 réis e 40 000 réis.
11 Na Misericórdia de Setúbal destacam-se as herdades e as marinhas.
12 Memórias da Alma e do Corpo, pp. 109-110.
13 Os que aqui se encontram revelam especificidades próprias, nomeadamente quando o testamenteiro, tendo
recebido as verbas destinadas à fundação de encargos perpétuos, as gastava em proveito próprio, acabando por
vender sob a forma de censo reservativo, parte do seu património pessoal. Este movimento não invalida, bem
entendido, a fundação de capelas através da doação de censos.
5
Mendonça adquirira ao conde de Basto, D. Fernando de Castro. Assente nesse mesmo padrão,
a referida senhora instituí uma capela e mercearia, entregando-as à administração do Hospital
Real de Todos os Santos. Em 21 de Dezembro, o monarca confirma a doação à Misericórdia
de Lisboa, que, seis anos depois, em 5 de Novembro de 1588, vende a D. Maria de Castro,
condessa da Calheta, o dinheiro que inicialmente pertencera ao conde de Basto14.
Basicamente, e ainda que configurada em outros moldes, esta situação repete o essencial das
práticas que encontramos na confraria das Almas: A compra a B, doando a C, que por sua vez
vende a D15. Em Setúbal como em Lisboa, a confraria é apenas uma peça, ainda que uma
peça-chave, de uma complexa e intrincada teia de relações económicas assente num
movimento de circulação de direitos de propriedade, que alimentava o dinamismo do
mercado, e que tinha como finalidade a obtenção de moeda16.
2. Se a apetência das Misericórdias pelo empréstimo a crédito se inscreveu numa
tendência generalizada, e antiga, comum a este tipo de associações, é importante referir que
essa actuação foi estimulada, quase institucionalizada, pelo poder central, que a elas recorreu
sempre que precisou de compradores para as suas rendas. O facto de a constituição do
património das Santas Casas ter coincidido com o aumento das necessidades económicas da
coroa foi, neste caso, de primordial importância.
Justificada como um meio para «acudir aos gastos da coroa e urgências do estado»17, a
venda das rendas reais tornar-se-ia um recurso, ou antes, «um beatifico estratagema», se
quisermos utilizar a expressão de Freire de Oliveira, de múltiplas vantagens: respeitava o
direito eclesiástico – «que condemnava a usura como um dos maiores peccados que corroiam
a sociedade e a podiam lançar no caminho da perdição eterna» – e o direito civil – «que,
14 IAN/TT, Chancelaria de Filipe I, liv. 4, fl. 11.
15Quando não se cumprem as obrigações estipuladas nos contratos e não se pagam os juros acordados, corre-se o
risco de ver partir para o credor o património que foi hipotecado ao empréstimo. O que pode acontece por acção
judicial, ou por acordo de ambas as partes. Como exemplo da primeira situação, veja-se o caso de Lourenço
Mourão, que devia à Misericórdia de Lisboa 40 000 cruzados. Em 17 de Julho de 1605, o rei autoriza que a Santa
Casa lhe tome para pagamento da dívida os 100 000 réis de juro que o devedor tinha na fazenda real. (IAN/TT,
Chancelaria de Filipe II, livro 20, fl. 96v; livro 30, fl. 96). Um exemplo de composição amigável é fornecido
pela Companhia de Jesus que ao tempo de D. João IV vende e trespassa à Misericórdia de Lisboa a quantia de
140 857 réis de juro real, «assentados e pagos nas três casas da cidade de Lisboa», para pagamento do dinheiro
que lhe devia. (IAN/TT, Chancelaria de D. João IV, livro 2, fls. 11; 11v e 12).
16 Para o enquadramento teórico do assunto, consultem-se os trabalhos de Maria Manuela Rocha, especialmente,
“Actividade creditícia em Lisboa (1770-1830)”, Análise Social, vol. XXXI (136-137), 1996 (2º-3º), pp. 579-598.
17 Segundo Eduardo Freire de Oliveira, a Câmara de Lisboa fez o seu primeiro «empréstimo dissimulado» em
1570. (Cf. Elementos para a História do Município de Lisboa, Lisboa, 1887, tomo II, pp. 244-245).
6
subordinando-se áquella doutrina, impunha severas penas contra os que emprestassem
dinheiro com interesse, por ser um contrato offensivo dos preceitos da egreja»18 –,
representava um encaixe imediato de dinheiro nos cofres do Estado, e apresentava-se como
um investimento sólido para as Misericórdias. Uma questão que, pelo menos da parte das
Santas Casas, está longe de ser pacífica.
A bem da verdade, seria importante começar por saber se as compras de juros reais
efectuadas pelas confrarias expressam um acto de liberdade ou se, à semelhança do que
aconteceu com alguns particulares19, as aquisições foram sugeridas pela própria coroa. Como
parece ter acontecido, por exemplo, com as Misericórdias de Lisboa20 e do Porto21,
compradoras de juros dos 5 contos que o rei mandara vender por alvará de 8 de Dezembro de
1589, ou com a de Braga, quando vários irmãos – beneméritos, como são designados – se
colectam para reunir a verba necessária para aquisição de um juro de 150 000 réis22. Já para
não mencionar a retenção forçada, ainda que descrita como sendo «por empréstimo»23,
ordenada em 163424, que também não poupou o património das almas25.
Contudo, não se penalize excessivamente a monarquia filipina por este tipo de
actuação. A dinastia de Bragança não só não a suspendeu, como a Misericórdia de Lisboa
aumentaria progressivamente o valor das suas compras, com especial destaque para os
reinados de D. Pedro II26 e de D. João V27, ao mesmo tempo que via crescer o número de
doações de capelas cujas rendas estavam assentes em juros reais. Por doação, compra, troca,
ou execução judicial, a instituição tornar-se-ia uma importante credora do Estado, com capelas
18 Eduardo Freire de Oliveira, Elementos para a História do Município de Lisboa , tomo II, p. 240.
19 Conforme as palavras de Luís Lourenço, no testamento que faz em 21 de Agosto de 1634 ao Convento de S.
Domingos: deixava-lhe 100 000 réis para duas missas semanais impondo-as nos rendimentos dos 200 000 réis
que o rei lhe mandara tomar para apresto das Naus da Índia, e que se pagavam na Mesa da Portagem.
Posteriormente o convento pede para encabeçar o dito juro mas o procurador da coroa deu parecer negativo à
pretensão, em 7 de Setembro de 1671, com a justificação de que as Ordenações proibiam que se encabeçassem
semelhantes bens a religiosos. (Cf. IAN/TT, Juízo das Capelas, Livro 14, Convento de S. Domingos, fls. 73-75v).
20 IAN/TT, Chancelaria de Filipe II, livro 4, fl. 51v.
21 IAN/TT, Chancelaria de Filipe II, livro 4, fl. 91v.
22 IAN/TT, Chancelaria de Filipe I, livro 13, fl. 409v .
23 Também por «empréstimo» seriam tomados, ao tempo dos Filipes, 200 000 cruzados do dinheiro dos defuntos
que estavam nas casas de Misericórdia da Índia. (IAN/TT, Chancelaria de D. João IV, liv. 3, fl. 344v).
24Cf. Eduardo Freire de Oliveira, Elementos para a História do Município de Lisboa, tomo IV, pp. 54 e ss.
25 Ana Maria Mouta Faria encontra na Colecção de Leis da Dívida Pública Portuguesa várias referências a
alguns destes “empréstimos” realizados precisamente pelas Misericórdias de Lisboa e do Porto. (Cf. Ana Maria
Mouta Faria, Comportamentos Económicos do Clero Regular no Antigo Regime), Provas de Aptidão Pedagógica
e Capacidade Científica, Lisboa, ISCTE, 1986).
26 IAN/TT, Chancelaria de D. Pedro II, livro 2, fls. 149 e 236v.
27 IAN/TT, Chancelaria de D. João V, livro 5, fl. 277v.
7
“espalhadas” pelo contrato da pimenta, alfândegas e almoxarifados, Casas da Índia, dos
Vinhos, das Carnes e da Portagem, estanque do Tabaco, novos direitos da chancelaria mor do
reino e no sal de Setúbal28.
Não sendo neste momento possível avaliar com precisão quanto é que a Misericórdia
de Lisboa tinha a cobrar nas receitas do Estado – apenas a informação, colhida num
documento de 30 de Julho de 1661, de que nos Almoxarifados da Carne e do Vinho a
confraria deveria receber anualmente 1 281 000 réis29 –, há, contudo, alguns números que
merecem alguma reflexão. Por exemplo, as 179 escrituras públicas de transmissão de padrões
de juro reais – formalidade obrigatória pelo facto de os padrões serem considerados bens de
raiz –, que as Chancelariam registam a favor da Misericórdia de Lisboa entre os reinados de
Filipe I e D. João V, totalizam 38 822 786 réis30. Se lhes juntarmos os 25 531 457 réis
contabilizados nos padrões recebidos por herança – e para o que bastava a simples apostilha
ou o averbamento – conclui-se que, ao tempo de D. João V, a Misericórdia de Lisboa poderia
ter, só em rendas da coroa, um rendimento anual superior a 60 contos de réis31.
Estando esta quantia sobreavaliada – concretamente, pela repetição de escrituras, um
problema que só conseguiremos eliminar depois de terminada a análise de todos os
documentos em questão –, ela não deixa de ser elucidativa do grau de dependência da Santa
Casa da boa execução das contas do Estado, mas, sobretudo, do dinamismo do mercado de
capitais e da intervenção que as Misericórdias tinham nele32. E se até agora apenas se tem
28 Um estudo aprofundado sobre os juros e a sua importância nas finanças públicas, no Antigo Regime, com
bibliografia coeva sobre o tema, pode encontrar-se no texto de António Manuel Hespanha,, “A Fazenda”,
História de Portugal, (dir. de José Mattoso), 4º volume, O Antigo Regime (1620-1807), Círculo de Leitores,
1993, pp. 203-239.
29 No primeiro caso, o total que cabia às Misericórdias ascendia a 831 000 réis de juro, en quanto os conventos e
as irmandades comiam a maior fatia: 2 371 250 réis. No segundo caso, as Misericórdias tinham 730 000 réis e os
conventos e irmandades, 3 150 137 réis. (Cf. Eduardo Freire de Oliveira, Elementos para a História do
Município de Lisboa, tomo VI, pp. 276-285).
30 Respectivamente: Filipe I – 31 padrões de juros = 2 802 087 réis; Filipe II – 24 padrões = 3 364 070 réis;
Filipe III – 30 padrões = 6 711 343 réis; D. João IV – 11 padrões = 5 118 449 réis; Afonso VI – 31 padrões = 2
585 511 réis ; D. Pedro II – 9 padrões = 7 493 991 réis; D. João V – 43 padrões = 10 917 723 réis.
31 Assim distribuídos: Filipe I, 7 apostilhas – 622 000 réis; Filipe II, 24 apostilhas e 36 verbas – 4 296 814 réis;
Filipe III, 23 apostilhas e 44 verbas – 2 132 546 réis; D. João IV, 12 apostilhas e 7 verbas – 1 810 589 réis; D.
Afonso VI, 14 apostilhas e 12 verbas – 1 810 589 réis; D. Pedro II, 19 apostilhas e 14 verbas – 6 824 309 réis; D.
João V, 36 apostilhas e 40 verbas – 6 140 388 réis.
32 No que respeita à partic ipação nos juros da coroa, as Chancelarias Régias dão conta de cerca de um milhar de
documentos em que as diferentes Misericórdias do país intervêm, entre os reinados de Filipe I e D. João V.
8
referido o mercado dos dinheiros públicos, é preciso não esquecer que também no mercado
privado as Misericórdias tinham um papel bastante activo.
Aliás, é de tal forma evidente que a transacção de dinheiro era considerada «a
grangearia mais segura», ou, nas palavras de alguns mesários da Misericórdia de Setúbal,
proferidas em 18 de Janeiro de 1679 – respondendo à sugestão de que os rendimentos
disponíveis deveriam ser aplicados na aquisição de «fazenda» –, «os juros são a melhor
fazenda que esta Santa Casa pode ter, e que debaixo da palavra se entendem também os juros
per fazenda cuja remda se conta sem a penção de despezas e incertezas annuaes que têm as
marinhas, herdades e outras semelhantes fazendas»33, que as instituições se desdobravam em
múltiplos esquemas que lhes permitissem aumentar o capital disponível para o mercado
creditício34. Nomeadamente, através da remissão de porções significativas dos foros a valores
quase sempre simbólicos, mediante a entrega de avultadas verbas35 – uma engenhosa forma de
contornar as determinações testamentárias que tornavam inalienáveis os bens que vinculavam
em capela –, que se continuará a praticar mesmo depois da provisão de 1629 reconhecer que
as gestões das Santas Casas não tinham competências para deliberarem sobre semelhante
matéria36.
Nestes jogos financeiros, era prática usual entre as confrarias a compra de juros para
venda. Apesar da quase total ineficácia do diploma de 13 de Dezembro de 1614 – cumprido
apenas «em alguns mosteiros e pessoas pouco poderosas»37 –, que reduziu a taxa dos juros e
dos censos a retro de 16 para 20 o milhar38, o certo é que Misericórdias como a de Setúbal
33 Laurinda Abreu, A Santa Casa da Misericórdia de Setúbal entre 1500 e 1755: aspectos de sociabilidade e
poder, Setúbal, Santa Casa da Misericórdia de Setúbal, 1990, pp. 55 e 57.
34 Para o caso da Misericórdia de Coimbra, veja-se, Maria Antónia Lopes, Pobreza, Assistência e Controlo
Social, Coimbra (1750-1850), Viseu, Palimage Editores, 2000, pp. 134 e ss.
35 A Santa Casa da Misericórdia de Setúbal entre 1500 e 1755, p. 59.
36 E se não possuímos notícias deste tipo de actuação em Lisboa, são no entanto conhecidas algumas conversões
de géneros em juros, que o rei autoriza e confirma. Tomemos um exemplo: em 1640, a Misericórdia torna-se
herdeira universal de João Passanha de Mendonça. Entre os seus bens incluíam-se 2 moios de trigo de renda,
comprados por Paulo de Morais, que para o efeito pagou 240 000 réis. Para se libert ar do encargo do trigo à
Misericórdia, Paulo de Morais comprou 15 000 réis a juro a Gonçalo Gonçalves de Miranda, entregando-os à
confraria e distratando a pensão do trigo. (IAN/TT, Chancelaria de Filipe III, livro 34, fl. 97).
37 Eduardo Freire de Oliveira, Elementos para a História do Município de Lisboa, tomo, VI, pp. 279-280. Apesar
de esparsos, encontram-se alguns registos de reduções de juros efectuados pelos particulares à Misericórdia de
Lisboa. (Cf. IAN/TT, Chancelaria de Filipe II, livro 30, fl. 131).
38 «E de uma vida a dez o milhar, e a doze por duas vidas». Cf. Collecção chronologica de leis extravagantes
posteriores á nova compilação das Ordenações do reino publicadas em 1603, Coimbra, na Real Imprensa da
Universidade, 1819, pp. 244-245.
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compravam juros à taxa de 5% e para os venderem a 6,25%39. Em escalas incomparavelmente
mais pequenas, tinham modos de actuação semelhantes, ou pelo menos objectivos análogos,
aos dos rendeiros. A sua intenção não era resolver os problemas da economia – para que
alertava o senado de Lisboa, em proposta apresentada em Maio de 1632, considerando a
redução dos juros absolutamente prioritária40 –, mas tirar os maiores dividendos possíveis da
ambiguidade das leis que regulavam este assunto.
A forma como a Restauração lidou com a questão dos juros é, em si própria,
sintomática da complexidade do tema e dos interesses contraditórios que estavam em causa.
Apoiando-se na petição feita pelos moradores e vizinhos do reino do Algarve41, D. João IV,
por alvará de 14 de Outubro de 164142, impõe retroactivamente o diploma de 13 de Dezembro
de 1614, e insiste na redução dos juros. Dois anos depois, em 12 de Outubro de 1643, e face às
contestações surgidas, derroga simultaneamente o alvará filipino e o de 14 de Outubro de
164143. Em 23 de Maio de 1698, a pedido das cortes, o alvará de 13 de Dezembro de 1614 é
reabilitado e restabelecido. Reconhecia o rei que havia imperiosa necessidade de taxar «o
preço dos censos e juros, por ser contrato muito frequente, e por coarctar e limitar a
desordenada ambição dos homens de cabedal, os quaes com pouco dinheiro comprão censos e
juros sobre as fazendas dos mais necessitados, levando-lhes por este modo excessivos reditos,
pelos quaes em poucos annos se embolsão da sorte principal, e com tudo vão continuando os
reditos, e por elles mesmos lhes tomão muitas vezes suas fazendas por execuções, e os poem
em miseravel estado»44.
Da “desordenada ambição dos homens de cabedal” também se podiam queixar as
Misericórdias neste final de Seiscentos. O insólito da situação é que eles moravam nas Santas
Casas.
39 Destas movimentações dão conta os gráficos das receitas da instituição que, quando passam a incluir o crédito
solicitado – para o referido período de 1660-1755 – fazem subir esta fonte de receita para os 79,6%, caindo os
juros cobrados para os 4,1%.
40 Eduardo Freire de Oliveira, Elementos para a História do Município de Lisboa, tomo IV, pp. 270-288.
41 Collecção chronologica de leis extravagantes, p. 409.
42 António Manuel Hespanha,, (“A Fazenda”, p. 234), indica que em 1641 se chegaram a vender padrões de 8 o
milhar.
43 Collecção chronologica de leis extravagantes, pp. 461-462.
44 Assim, determina que «nenhum juro, ou censo a retro, sem limitação de tempo, se possa vender, nem fundar
daqui em diante a menos de vinte o milhar, e a dez o milhar sendo em uma vida sómente, e a doze sendo por duas
vidas (...) . E por quanto nestes reinos não sómente se vendem censos e juros de dinheiro, mas tambem de pão, ou
azeite, ou outros semelhantes frutos, declaro que nelles tambem se entende esta lei, regulando-se conforme a
justa e commua estimação que taes frutos costumão ter». (Cf. Collecção chronologica de leis extravagantes, pp.
323-325).
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3. Na realidade, a sofreguidão das Misericórdias pelo mercado creditício tinha várias
explicações. Uma delas, como observámos já há muitos anos atrás – quando apresentámos os
vários mecanismos utilizados pela Misericórdia de Setúbal no sentido de transformar o seu
património em dinheiro vivo –, poderia estar relacionada com o alvará de 6 de Dezembro de
1603, que proibia os provedores e oficiais das Misericórdias de se apossarem dos bens de raiz
das instituições que administravam45. Em 1755, 80% do dinheiro da Misericórdia estava nas
mãos dos irmãos. Os restantes 20% tinham sido concedidos a indivíduos que, «por poderozos
[ou falidos], não pagam». Frequentemente, uns e outros, tomavam a juro os réditos vencidos,
consolidando dívidas que atingiam proporções gigantescas46.
A partir de 1660, ou seja, no período áureo das fundações do Purgatório, e já na
ausência de quem lhe emprestasse dinheiro, a Misericórdia torna-se devedora dos seus mortos
e relaxa-se no sufrágio das suas almas47. Aqui e além era acometida por alguns rebates de
consciência e procurava pôr ordem nas contas. Como aconteceu em 1688, quando pediu ao rei
que proibisse o empréstimo «a pessoas poderozas, ou irmão que servisse na Meza, nobre ou
oficial, no anno em que o fosse pudesse tomar dinheiro a juro. Dando-o, não se podia
acumular principal com principal e réditos. Se alguma pessoa, sobretudo irmão, não pagasse
os réditos três anos seguidos, que os pagasse em dobro, além de não serem admitidos a cargos
nem enterrados na Misericórdia»48.
Mas a provisão régia não colheu os efeitos desejados. Pelo contrário, a situação
económica da Misericórdia agravar-se-ia de tal forma que o monarca proibiu, em 1696, que
os devedores e seus parentes até terceiro grau fossem eleitos para a Mesa.
Instalada a polémica, sobretudo entre os irmãos de maior condição social, divididos em
facções rivais, o século XVIII abria-se no meio de grande conflituosidade, sendo frequente a
45 Uma determinação que também se estendia às Câmaras. (Cf. Collecção chronologica de leis extravagantes, pp.
17-21).
46 A Santa Casa da Misericórdia de Setúbal entre 1500 e 1755, p. 62.
47 Em 1674 os mortos da Misericórdia de Setúbal eram credores de 14 500 cruzados. Por isso mesmo se decide
não aceitar «mais capelas ou missas perpétuas em dinheiro, mas só em fazenda»: uma afirmação de boas
intenções, de nulos efeitos. (A Santa Casa da Misericórdia de Setúbal entre 1500 e 1755, p. 66).
48 Sobre o crédito mal parado na história das Misericórdias, veja -se para Aveiro, Manuel de Oliveira Barreira, A
Santa Casa da Misericórdia de Aveiro. Pobreza e Solidariedade (1600-1750), Coimbra, 1995, pp. 111-112; para
as Misericórdias dos Açores e da Baía, Isabel dos Guimarães Sá, Quando o rico se faz pobre: Misericórdias,
caridade e poder no Império Português, 1500-1800, Lisboa, pp. 123-125, pp. 213-215). Situação semelhante
verifica-se na Casa-mãe, a Misericórdia de Lisboa, a grande credora dos aristocratas no século XVIII. (Cf. Nuno
Gonçalo Monteiro, O Crepúsculo dos Grandes, Lisboa, INCM, 1999, pp. 382 e ss.).
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publicitação de listas dos devedores e dos seus familiares49. Nas eleições de 1710-1711 não se
encontrou ninguém que pudesse ir a votos50. Chamada a manter-se em funções por três anos
consecutivos, a Mesa desse ano seria depois confrontada com a acusação de «dissimulado
zelo», que «tinha degenerado em conveniencias particulares pera se averem de perpetuar no
governo da Misericordia, e não continuar as utilidades della em que manifestamente tinham
faltado, não somente no particullar da cobrança das dividas e nas quais também eram
comprehendidos e devedores». Substituída a provisão anterior por uma outra que apenas
excluía das eleições os irmãos que devessem mais de 40 000 réis ou que tivessem contraído
dívidas por causa de má administração51, nem assim a instituição pacificou, acabando o rei,
em 1726, por suspender as eleições, passando a nomear as Mesas da Misericórdia.
Do que se passou a seguir já demos conta noutros lugares52. Não será, contudo,
excessivo recordar o facto de o tombo realizado em 1767 não ter conseguido contabilizar o
montante dos juros em dívida53, limitando-se o escrivão a registar aqueles que ainda tinham
alguma hipótese de serem cobrados54. Pressionada pela crise e pela legislação pombalina, a
Santa Casa desencadeia então uma autêntica batalha judicial para arrecadar coercivamente o
dinheiro que lhe era devido55. Dificultadas as arrematações de imóveis e consequente
consolidação de domínios pela lei de 4 de Julho de 176856, é-lhe simultaneamente facilitada a
penhora sobre os rendimentos das propriedades hipotecadas57. Para dívidas de grande
49 Chegando ao ponto de Bruno Francisco de Faria, Joaquim de Faria e Bernardino Alves de Paiva, membros da
nobreza local, acorrerem ao Corregedor da Comarca entregando-lhes uma declaração de desistência de herança,
porque a mesma provinha de devedores da Misericórdia.(Cf. A Santa Casa da Misericórdia de Setúbal entre
1500 e 1755, pp. 139-140).
50 Na fúria persecutória que então se moveu, chega o quase patético registo do escrivão, informando que tinha
sido impedido de votar porque alguém encontrara dois parentes seus de terceiro grau entre os devedores da Santa
Casa.
51 A Santa Casa da Misericórdia de Setúbal entre 1500 e 1755, p. 140.
52 Sumariamos nas páginas seguintes o nosso trabalho, Memórias da Alma e do Corpo, pp. 282-309, remetendo
para elas as referências às fontes consultadas bem como as múltip las informações que se encontram nas notas de
rodapé.
53 Mais sorte se tinha em relação ao conhecimento das dívidas dos foros, que ascendiam a 3.898.751 réis: uma
verba elevadíssima se tivermos presente os reduzidos quantitativos de cada um deles.
54 Uma verba irrisória de 342 880 réis, provenientes de 6 615 545 réis de principal, (139 620 réis em dívida).
55 O privilégio que a Misericórdia tinha para poder cobrar coercivamente as suas dívidas, permitia-lhe este tipo
de acções. Muito morosas, todavia, e, por isso, em 1801, a Misericórdia conseguiu que o Juiz de Fora voltasse a
actuar como seu juiz privativo, à semelhança, aliás, de idêntica prerrogativa que tinha a Misericórdia de Lisboa.
(ANTT, Desembargo do Paço, maço 1692, documento 14. Datado de 14-10-1801).
56 António Delgado da Silva, Collecção Chronologica da Legislação Portugueza, Lisboa , Imprensa de J. J. A.
Silva, 1854, pp. 396-397.
57 Podendo a cobrança ser feita directamente ao rendeiro, que era sumariamente informado do processo litigioso,
de «pinhora judicial e corporal aprihenção na quantia de […]» sendo obrigado a pagar a pensão devida pela
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envergadura, procurava-se o acordo com o devedor e preferia-se a consignação, o que aqui
significava o pagamento da dívida em prestações, conforme o contrato estabelecido entre
ambas as partes58. Seria por este meio que a confraria conseguiu recuperar, entre 1781 e 1836,
cerca de cinco contos de juros de dívidas, algumas delas quase centenárias.
O reverso da medalha é que quem emprestava à Misericórdia funcionava nos mesmos
moldes, sobretudo depois de a confraria ter esgotado as dívidas “seguras” que tinha para troca
– como foi o caso dos 33 660 612 réis de juros que tinha para cobrar no Almoxarifado de
Setúbal, e que entregou, em 1791, aos Carmelitas Descalços para pagamento do empréstimo
que lhes contraíra. À entrada do século XIX, a produção das suas marinhas foi praticamente
tomada pelos credores. E as consignações seguiram-se a um ritmo estonteante, com a
particularidade de juntarem dívidas antigas com outras mais recentes, nomeadamente as
contraídas aos fornecedores do pão, carne e medicamentos, cujas facturas eram transformadas
pela Misericórdia em empréstimos a juros59. Feitas as contas, em pouco mais de onze anos, a
Santa Casa foi compelida a pagar através das suas salinas juros no valor de 6 381 536 réis60.
Enredada num ciclo que não lhe deixava grandes alternativas, a Misericórdia recorre
ao crédito para fabricar as marinhas, entregando a maior parte da venda do sal aos credores
mais antigos e deixando o restante para as despesas hospitalares. Sempre que o número de
doentes crescia este frágil “equilíbrio” rompia-se. Em 30 de Julho de 1808, ao começar o novo
locação do prédio à entidade executante. Difícil também ficava, nesta fúria executória, a posição do fiador,
frequentemente penhorado por contratos não honrados
58 Ainda que a primeira grande consignação realizada a favor da Misericórdia se registe em 1762 - o débito
ultrapassava os dois contos de réis e tinha sido contraído pelo confrade Francisco da Mota Reboredo, tendo os
herdeiros cedido a produção da Marinha do Esteiro até o montante em falta ser liquidado.
59 Em 15 de Abril de 1807, um particular segura em várias marinhas o pagamento de 390 000 réis, no dia 30, as
freiras do convento de São João pedem, «para embolço de 1 600 000 réis, […] lhes consignassem o rendimento
de todo o sal que produzisse a 3ª marinha da Gambia», a 11 de Maio as religiosas do convento de Santa Maria, de
Lisboa, retêm o sal da Marinha da Palma para reembolso de 1 200 000 réis. Em 11 de Setembro de 1811 o
talhante que fornecia o hospital exige a consignação de 1 949 441 réis; em 1817, um outro carniceiro cobra da
mesma forma 1 719 234 réis, a 25 de Fevereiro uma outra marinha é entregue aos herdeiros do capitão Manuel
Duarte Xavier, sobre a quantia de 6 780 390 réis, em 2 de Julho de 1820 a produção da Marinha da Gâmbia é
entregue ao tesoureiro Jácome Ferro, por uma dívida de 1 960 239 réis, uma outra é dada em, 17 de Julho de
1826, a dona Ana Inácia Limpo para o pagamento de 1 695 000 réis. No ano seguinte, a 30 de Maio, os Clérigos
Pobres vêem finalmente ser soldada uma dívida que já traziam em execução judicial desde 1789, em 29 de
Agosto a marinha da Baía segue para pagamento de 782 000 réis devidos aos religiosos do Carmo Calçado, e a
da Gâmbia ao convento de São João, para pagamento de 1 400 000 réis. Em Julho de 1836 um particular
recupera 100 000 réis pela mesma forma, e em 26 de Janeiro de 1838, o negociante André António Fernandes
averba várias marinhas - recém-libertas pela Misericórdia de Lisboa - pela dívida de 1 792 036 réis de pão que
fornecera ao hospital.
60Memórias da Alma e do Corpo, pp. 298-300. Também o próprio Estado, que acumulava dividas à Misericórdia
por juros não pagos sobre a Fazenda Pública, lhe cobrará judicialmente, impostos em atraso. (AMS, Livro de
Termos da Santa Casa, livro 450, fls. 164-168v).
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ano económico, portanto, lamentava-se o Provedor de que as rendas da Casa se tinham
esgotado com os exércitos português, espanhol e francês, cujo curativo lhe tinha sido imposto
«pelos senhores generais»61. Sendo-lhe sistematicamente recusado o pedido de concessão da
exploração de uma lotaria62, a confraria vê partir, em 1818, o privilégio das trintadas63, que o
governo considera imoral face ao estado ruinoso da economia nacional, ao mesmo tempo que
lhe impõe drásticas limitações à sua capacidade de endividamento64.
3.1. Estamos muito melhor informados sobre a vida económica da Misericórdia de
Setúbal do que da Misericórdia de Lisboa, em relação à qual são mais as interrogações que as
respostas, sendo certo que há informações que nunca se conseguirão obter. Não obstante,
quando estiver completo, o estudo das Chancelarias facultar-nos-á alguns dados importantes
sobre o assunto. Nomeadamente, o montante exacto do dinheiro que a instituição aplicou na
aquisição de juros reais, as dívidas de juros não pagos pela coroa que originaram novos
padrões, o fluxo das doações testamentárias e instituição de capelas nas rendas do Estado.
Sob os constrangimentos atrás sublinhados, não parece oferecer dúvida que a
participação da Santa Casa nas finanças públicas evoluiu continuamente entre os reinados de
Filipe I e Filipe III, com uma ligeira quebra ao tempo de D. João IV, acentuada no reinado
seguinte, ainda que a soma final aponte para quantitativos superiores aos do primeiro rei
castelhano. Já os reinados de D. Pedro II e D. João V ocupam uma posição singular pelas
verbas atingidas, com destaque para o último, com um valor cinco vezes superior ao de Filipe
I, onde os novos juros, supostamente, ultrapassaram os dezassete contos de réis.
Em compensação, reconhecer que o papel da Misericórdia de Lisboa como
intermediário financeiro esteve em expansão ao longo do Antigo Regime e que a coroa teve
um contributo importante nesse sentido, não suscita qualquer reparo. Inquestionável também,
é o facto de a primeira metade de Setecentos ter sido um tempo de grandes investimentos por
parte da confraria. A instituição beneficiou da melhoria geral da situação financeira do Estado,
que liquidou em 1725 dívidas de várias décadas, como os 44 contos de réis que a Junta dos
61 AMS, Livro de Termos da Santa Casa, livro 446, fls. 42 -42v.
62 AMS, Livro de Termos da Santa Casa, livro 446, fl. 27.
63 Durante vigência da Roda do Sal, fora atribuída à Santa Casa uma quota de mercado que lhe dava direito a
exportar trinta moios de sal por cada navio que saísse para o estrangeiro (as trintadas). Ora, quando não tinha sal
próprio que preenchesse a respectiva parcela, a Santa Casa adquiria-o e depois comercializava-o como seu,
beneficiando da isenção de 2% que do imposto que recaía sobre a venda.
64 ANTT, Desembargo do Paço, maço 1527, documento 13. Datado de 9-8-1822.
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Três Estados lhe devia por juros não cobrados desde 170365, conseguindo até, ainda que muito
a custo, que a Câmara de Lisboa lhe pagasse uma pequena parte dos juros que tinha em
atraso66. Além do mais, foi igualmente abrangida pelo distrato dos padrões de juro real de
mais de 5%, realizados pela coroa, por decreto de 4 de Fevereiro de 1743. Mas a constatação
vai mais longe e revela elos que se ligam, esboçando comportamentos cujas razões
adivinhamos. Não é de todo inócuo, por exemplo, o facto de vários dos juros distratados entre
1743 e 1747 terem a indicação de que ficariam «pertencendo à Reverenda fábrica da Santa
Igreja Patriarcal». Expressão a que se por vezes acrescenta: «por o terem distratado e entregue
o seu capital»67.
A abundância de capital que este movimento propiciou, eventualmente associada ao
aumento de doações pias, parece ter tido escoamento imediato em direcção às casas titulares
que, nas décadas de 40 e 50, recorrem, nas palavras de Nuno Monteiro, com «especial
intensidade» aos créditos da Misericórdia68. Dito isto, teria toda a pertinência saber se este
fluxo coincidiu com uma efectiva transferência do dinheiro que estava aplicado nas rendas da
coroa para as casas dos grandes, ou se apenas houve um reforço do endividamento
aristocrático. Em qualquer dos casos, importaria conhecer a proporção que os juros reais terão
representado no total dos empréstimos da Misericórdia de Lisboa.
No que diz respeito à relação dos devedores privados com a Misericórdia, a situação
não parece diferir da de Setúbal. Cotejando as listas dos provedores apresentadas por Victor
Ribeiro69 e Veríssimo Serrão70 com as tabelas elaboradas por Nuno Monteiro71, rapidamente
se conclui que também em Lisboa uma parte importante do crédito foi entregue aos irmãos,
especialmente aos que exerciam funções dirigentes72. Importa, contudo, realçar que muitos
65 Joaquim Vicente Serrão, A Misericórdia de Lisboa. Quinhentos anos de história, Lisboa, Livros Horizonte,
1998, p. 182.
66 Depois de goradas as tentativas, em Dezembro de 1748, de poder cobrar os 10 970 642 réis de juros devidos
pelo senado através do levantamento do sequestro que os credores tinham feito das rendas da cidade, conseguem,
em Maio de 1750, que lhes fossem pagos 2 contos de réis. (Cf. Eduardo Freire de Oliveira, Elementos para a
História do Município de Lisboa, tomo XV, pp. 69-74 e pp. 155-157).
67 IAN/TT, Chancelaria de D. João V, livro 3, fl. 133v.
68 Nuno Gonçalo Monteiro, O Crepúsculo dos Grandes, p. 373.
69 Victor Ribeiro, Victor Ribeiro, A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa: subsídios para a sua história, Ed.
fac-simil, Lisboa, Academia das Ciências, 1998, pp. 331-339.
70 Joaquim Vicente Serrão, A Misericórdia de Lisboa, pp. 63-68; pp. 97-102; pp. 110-116; pp. 134-135; pp. 148-
150; pp. 156-158; pp. 162-164; p. 177; pp. 193-198, pp. 241-246.
71 Nuno Gonçalo Monteiro, O Crepúsculo dos Grandes, pp. 390-392.
72 José da Silva Ramos, A Misericórdia de Lisboa, 1931, p. 16. (Citado por Joaquim Vicente Serrão, A
Misericórdia de Lisboa, p. 237).
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destes empréstimos coincidiram com o crescimento das despesas com a assistência e com o
recurso ao crédito para lhes fazer frente. Aparentes contradições que, em parte, poderão
explicar o avolumar dos problemas surgidos durante os actos eleitorais, sobretudo a partir da
década de 30, quando estes se tornam «ruidosos», conforme os testemunhos apresentados por
Veríssimo Serrão73. É por isso que, sem surpresas, se assiste a uma maior intervenção da
coroa na vida da instituição, que culminará na nomeação directa dos órgãos administrativos74
e na implementação de regras cada vez mais apertadas quanto à administração do património
da confraria. Por exemplo, a doação da igreja e colégio de S. Roque, por carta régia de 8 de
Fevereiro de 1768, foi acompanhada pelo estabelecimento de uma ordem de prioridades
quanto à aplicação do dinheiro da instituição, com destaque nítido para as despesas públicas
do Estado em detrimento do empréstimo a particulares75. E quando a 31 de Janeiro de 1775 a
Misericórdia recebeu os bens das extintas confrarias erectas em S. Roque – um património
avaliado em 253 946 900 réis, de que saía uma renda anual de 13 147 121 réis76 –, foi-lhe
também entregue um alvará que a proibia de realizar novos empréstimos77.
4. Do que antecede, parece-me legítimo afirmar que a fundação de capelas no âmbito
do reforço pós Tridentino na crença do Purgatório teve uma importância fulcral na formação
do património das confrarias em geral, e muito particularmente das Misericórdias. De igual
modo, também parece não oferecer dúvidas que o investimento no mercado financeiro foi a
opção preferencial tomada pela maioria destas instituições quando procuraram rentabilizar os
seus bens78.
A análise destas transacções económicas mostra que o crédito se movimentava em
círculos sociais relativamente fechados, ainda que as Misericórdias e as confrarias de devoção
não actuassem exactamente da mesma forma. Neste último caso, a relação de proximidade
estabelecida entre o fundador das capelas – entenda-se, aquele que disponibilizava à confraria
73 Joaquim Vicente Serrão, A Misericórdia de Lisboa, p. 187.
74 Joaquim Vicente Serrão, A Misericórdia de Lisboa, pp. 214 e ss.
75 O que não impede, bem entendido, que não abra excepções, como acontece, por exemplo, com o empréstimo
concedido ao irmão do Marquês de Pombal . (Cf. Joaquim Vicente Serrão, A Misericórdia de Lisboa, pp. 238-
239).
76 Nesse ano a receita da Misericórdia , incluindo hospitais dos Expostos e de S. José, era avaliada em 93 320 416
réis. (Cf. Victor Ribeiro, A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, pp. 125-126).
77 Nuno Gonçalo Monteiro, O Crepúsculo dos Grandes, pp. 303-304.
78 E também pelo clero, conforme demonstra Ana Mouta Faria, no já citado trabalho, Comportamentos
Económicos do Clero Regular no Antigo Regime.
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o dinheiro para ser transaccionado – e aquele que recorria ao crédito, era, quase sempre de
índole sócio-profissional. Globalmente considerados, os quantitativos que se movimentavam
eram relativamente diminutos, mas rentáveis, até porque era frequente os credores accionarem
as clausulas contratuais quando as mesmas não eram respeitadas. No caso das Misericórdias, a
situação teve contornos algo diferentes. Apesar de o fluxo do crédito se manter relativamente
fechado, ele foi circunscrito ao Estado e aos irmãos da instituição, sobretudo dos que estavam
próximos dos cargos dirigentes. Em ambos os casos, com acesso privilegiado à informação79.
Pelas razões atrás invocadas, os valores em circulação eram incomparavelmente maiores que
os das outras confrarias. O facto de os credores raramente exigirem o penhor imobiliário
determinado na lei, além de não se mostrarem muito diligentes na cobrança dos juros,
funcionou como uma mais-valia, que tornavam os capitais das Misericórdias particularmente
aliciantes e, por isso, altamente disputados.
Por outras palavras, se a aplicação a juros foi justificada pela estabilidade do
rendimento e exclusão de despesas de conservação do património, o que, teoricamente,
conduziria à maximização do lucro, o resultado não podia ter sido mais contraditório. Foi-o,
pelo menos, para as Misericórdias de Setúbal e de Lisboa80. Salvaguardando as devidas
distâncias, a situação de uma e de outra não diferia substancialmente, no trânsito do século
XVIII para o século XIX: um clima de instabilidade generalizado, forte intervenção régia,
situação financeira asfixiante, decréscimo da qualidade dos serviços assistenciais prestados.
79 Veja-se a importância deste facto, em Maria Manuela Rocha, “Crédito privado em Lisboa numa perspectiva
comparada”, pp. 105 e ss.
80 Tradicionalmente apresentadas como suportes de redes de sociabilidade e solidariedade, as Misericórdias
tornaram-se, assim, redes de crédito, cuja experiência acumulada foi, para algumas delas, e já no século XIX, um
passo fundamental para a administração de bancos. Sobre a Banca em Portugal, veja-se, de José Luís Cardoso,
Novos Elementos para a História Bancária de Portugal: Projectos de Bancos, 1801-1803, Lisboa, Banco de
Portugal, 1997.
* Trabalho inserido no âmbito de um projecto de investigação financiado pela Fundação da Ciência e Tecnologia
(POCTI/1999/HAR/33560), iniciado em Julho de 2001.
** Departamento de História da Universidade de Évora. CIDEHUS.
1Arquivo da Igreja Paroquial de S. Julião, Tombo Novo da Irmandade das Almas, e Laurinda Abreu, Memórias
da Alma e do Corpo. A Misericórdia de Setúbal na Modernidade, Viseu, Palimage, 1999, pp. 270-271.
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