sábado, 4 de outubro de 2008

Nota Pastoral do Episcopado sobre as Misericórdias Portuguesas em Ano Jubilar

1. Em Agosto próximo, completam meio milénio as Miseri­córdias Portuguesas. Foi em 1498, por altura da festa da Assunção de Nossa Senhora, que a primeira das Santas Casas, a de Lisboa, instituída por iniciativa da rainha D. Leonor, foi solenemente instalada numa capela da Sé posta à disposição pelo Cabido. A erecção canónica, previamente concedida, foi confirmada no ano seguinte pelo Papa Alexandre VI.

D. Leonor, de bondade e cultura insignes, impressionada pelo zelo caritativo de Frei Miguel de Contreiras em favor da multidão de indigentes que pululavam na capital, pensou, com o conselho do bondoso frade trinitário, numa instituição destinada ao exercício de todas as obras de misericórdia corporais e espirituais, a difundir pelo reino, reorganizando toda a actividade assistencial que era então precariamente exercida.

A rainha concebeu‑a segundo o modelo das irmandades e confrarias do tempo, e motivou, para a sua concretização, “pessoas de honesta vida, boa fama, sã consciência, tementes a Deus e guardadoras de seus mandamentos, mansas e humildes, a todo o serviço de Deus e da Confraria”, como se pode ler no primeiro “Compromisso” ou regra fundamental das Misericórdias (1498).

As Misericórdias surgiram assim com a originalidade de serem obra de gente boa e cristã, para atender todas as necessidades dos mais pobres, em verdadeiro espírito de caridade evangélica, com o apoio do rei e no quadro da Igreja. O sentimento naturalmente bondoso dos portugueses, numa época de exaltação religiosa, afirmação nacional e crescimento económico devido à expansão ultramarina, assegurou à iniciativa de D. Leo­nor, secundada por seu irmão o rei D. Manuel I, um êxito surpreendente. No mesmo ano de 1498, além da Misericórdia de Lisboa, foram criadas mais 13; à morte da rainha (1525), as Misericórdias já eram 73; o seu número subiu a 232 no final do século XVI; e hoje, só em Portugal, vão a caminho das 400.



2. As Misericórdias são associações de fiéis canonicamente reconhecidas pela Igreja e por ela apoiadas, o que lhes tem garantido estabilidade e autonomia no meio das mudanças e perturbações dos tempos. Originariamente o seu fim primário é a santificação dos “irmãos”, pelo exercício das diversas ex­pressões da caridade fraterna.

As formas concretas deste exercício têm variado naturalmente com os tempos e as circunstâncias. É admirável verificar como as Misericórdias se têm revelado criativas nas respostas dadas às carências humanas e sociais ao longo dos séculos da sua existência, desde enterrar mortos, remir cativos e tratar leprosos, até recolher idosos, educar crianças e recuperar toxicodependentes, sem esquecer o tradicional cuidar dos doentes em hospitais seus.

As populações, reconhecendo tais benefícios, sempre tiveram as Misericórdias como suas. Nunca faltaram “irmãos” para assumir as responsabilidades da sua gestão e manutenção. E, com os tradicionais cortejos de oferendas, donativos, doações e heranças, dotaram‑nas, em muitos casos copiosamente, de meios financeiros para o digno exercício das suas actividades assistenciais.



3. Esta fidelidade popular, a segurança que lhes advém da ligação à Igreja e o interesse do poder público em com elas resolver boa parte dos mais delicados problemas sociais, têm assegurado às Santas Casas uma extraordinária resistência às vi­cissitudes históricas e sociopolíticas com que várias vezes se têm defrontado.

Assim, resistiram ao liberalismo maçónico dos séculos XVIII e XIX, eivado de ideologia libertária e laicizante, que as feriu na sua alma cristã e que, pelas leis da desamortiza­ção (1861 e 1866), as espoliou de grande parte do seu patrimó­nio. Data deste período (1851) a dissolução da Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que passou a depender do Governo à maneira de serviço do Estado.

Resistiram também ao anti‑clericalismo da I República e às tendências estatizantes do Estado Novo. Resistiram ainda à nacionalização dos seus hospitais em 1974 e 1975, que as privou de uma das suas mais tradicionais actividades.



4. Nesta resistência, sobretudo nos tempos mais recen­tes, é de justiça referir a importância dos Congressos Nacio­nais das Misericórdias Portuguesas. O de 1976, em momento par­ticularmente crítico, deveu‑se à iniciativa do Pe. Dr. Virgílio Lopes, Provedor da Misericórdia de Viseu, que se sentiu apoiado pelo protesto dos Bispos contra a referida nacionalização dos hospitais, exarado no comunicado da Assembleia Plenária de Abril de 1976.

Deste Congresso saíu a União das Misericórdias Portuguesas, instituída para preservar o espírito e defender os direi­tos das Santas Casas, dinamizar e coordenar a sua acção, e assegurar a sua representação. Erecta canonicamente pelo Bispo de Viseu em 1977, que aprovou os seus primeiros Estatutos, viu reconhecida a sua implantação nacional em 1983, pela aprovação dada pela Conferência Episcopal à nova versão estatutária. À União se devem a reanimação de muitas Misericórdias e o fortalecimento da sua posição perante o Estado e a opinião pública.



5. A celebração deste ano jubilar das Misericórdias Portuguesas dá‑nos oportunidade para mais uma vez manifestarmos a nossa solicitude pastoral por elas, dando graças pelo seu passado e procurando que tenham um futuro promissor, na dupla fidelidade às suas origens e às exigências dos novos tempos.

Congratulamo-nos com o aparecimento de novas Santas Casas, fruto do dinamismo apostólico de comunidades cristãs, e com o rejuvenescimento de muitas outras de antiga tradição. Mas não deixam de nos preocupar quer a falta de vitalidade quer o enfraquecimento do espírito de fraternidade cristã e de adesão à Igreja que está a minar por dentro a vida de algumas delas.

As Misericórdias não são meras instituições filantrópi­cas, por muito beneméritas que se afigurem, nem se podem reduzir a satélites das estruturas de segurança social do Estado, mesmo que recebam deste todo o apoio a que têm direito, como aliás outras instituições particulares de solidariedade social. No respeito da sua identidade, vocação e missão eclesiais, elas devem con­siderar‑se expressões organizadas do exercício da caridade pe­lo Povo de Deus em favor dos irmãos necessitados. Têm, pois, o direito e a obrigação de procurar e acatar orientações e apoio, nas linhas da identidade, formação e acção, por parte da Igreja.

Está aqui uma das prerrogativas da sua condição de irmandades ou associações de fiéis que, sem prejuízo da autonomia e responsabilidade próprias, lhes asseguram fidelidade às origens, estabilidade no presente e actualidade no futuro.



6. Sendo tradicionalmente de implantação local ou regional, as Miseri­córdias vivem em geral profundamente enraizadas nas comunida­des cristãs que lhes deram origem. Que estas comunidades cultivem por elas grande estima, traduzindo‑a em colaboração voluntária e diversas formas de apoio. E que os respectivos pastores manifestem neste sentido a sua solicitude pastoral, promovendo o interesse dos fiéis e fazendo‑lhes sentir que a força do seu contributo para a vida das Santas Casas radica na graça do Baptismo e na comunhão eclesial.

É nosso desejo que, na fidelidade aos próprios estatutos por nós aprovados, a União das Misericórdias Portuguesas contribua para que se reavive nas Santas Casas o sentido da sua natureza específica de irmandades vital e canonicamente ligadas ao Bispo diocesano e para que elas sirvam sempre o Povo de Deus e a sociedade em geral com o verdadeiro espírito da caridade cristã que motivou a sua constituição e é a sua razão de ser.



7. A terminar, formulamos alguns votos. Que sejam superadas as deficiências e dificuldades que têm por vezes prejudicado o procedimento fiel das Misericórdias à sua vocação originária. Que, na presente conjuntura sociocultural tão marcada por rápidas mutações, elas dêem provas da criatividade e do dinamismo próprios da caridade cristã, de modo a poderem dar resposta aos apelos das novas e subtis formas de pobreza dos nossos tempos, que vão das situações de marginalidade étnica, social e cultural às dependências físicas, psicológicas e morais. Que elas saibam cuidar do seu rico património artístico e documental, valorizando-o e pondo-o ao serviço da comunidade.

Em nome da Igreja e, podemos dizer, do povo português, agradecemos a quantos têm dedicado o melhor da sua inteligên­cia, coração e trabalho à causa de bem servir os mais carenciados dos irmãos. Convidamos todos os fiéis e demais pessoas de boa vontade a participar connosco nas celebrações jubilares dos 500 anos das Misericórdias Portuguesas. E invocamos sobre elas a bênção da Virgem Maria, que as Santas Casas se habitua­ram a tratar por Senhora da Visitação e Senhora da Misericórdia.



Lisboa, 31 de Maio de 1998

Festa de Nossa Senhora da Visitação

e Senhora da Misericórdia

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