sábado, 18 de outubro de 2008

PARECER DO CONSELHO CONSULTIVO DA PGR

1 - Aos membros dos corpos gerentes das instituições particulares de solidariedade social não e permitido o desempenho simultaneo de mais de um cargo na mesma instituição - artigo 15, n 2, do Estatuto aprovado pelo Decreto-Lei n 119/83, de 25 de Fevereiro;
2 - Os referidos membros dos corpos gerentes não podem contratar directa ou indirectamente com a instituição, salvo se do contrato resultar manifesto beneficio para a mesma - artigo 21, n 4, do Estatuto das IPSS, referido na conclusão anterior;
3 - Não e permitido aos trabalhadores contratados para o quadro de pessoal de uma institução particular de solidariedade social o exercicio cumulativo de um cargo nos respectivos corpos gerentes.

SENHOR SECRETÁRIO DE ESTADO

DA SEGURANÇA SOCIAL,

EXCELÊNCIA:


1.

Através de ofício remetido ao Gabinete do Excelentíssimo Conselheiro Procurador-Geral da República comunicou-se o seguinte:
"Na sequência de uma inspecção recentemente efectuada à "Associação para o Estudo e Integração Psicossocial", constatou-se que alguns cargos dos corpos gerentes estão a ser cumulativamente desempenhados por empregados da Associação.
Acontece que o nº 2 do artigo 16º dos Estatutos da Associação para o Estudo e Integração Psicossocial estipula que "não é permitido aos membros dos corpos gerentes o desempenho simultâneo de mais de um cargo na mesma associação".
Idêntica disposição consta, aliás, do nº 2 do artigo 15º do Decreto-Lei nº 119/83, de 25 de Fevereiro.

Assim, atentas as finalidades implícitas em tal disposição e considerada a conveniência de ser devidamente explicitado o exacto alcance da disposição legal em causa, encarrega-me Sua Excelência o Secretário de Estado da Segurança Social de solicitar o douto parecer da Procuradoria-Geral da República acerca do assunto referenciado" (1 .
Nesta conformidade, cumpre emitir parecer.

2.

2.1. A Associação para o Estudo e Integração Psicossocial (AEIPS) é uma instituição particular de solidariedade social que "tem por objectivos realizar estudos e promover iniciativas no domínio da integração psicossocial, visando prioritariamente doentes mentais e tem um âmbito de acção nacional" (2 .
Importa, assim, conceder alguma atenção à caracterização do conceito das instituições particulares de solidariedade social, subespécie do instituto das pessoas colectivas de utilidade pública, o qual, por sua vez, entronca na figura mais vasta que, na esteira da teorização de FREITAS DO AMARAL, poderemos designar como instituições particulares de interesse público (3 .
2.2. Na terminologia de FREITAS DO AMARAL, as "instituições particulares de interesse público" são as pessoas colectivas privadas que, por prosseguirem fins de interesse público, têm o dever de cooperar com a Administração Pública e ficam sujeitas, em parte, a um regime especial de Direito Administrativo .
MARCELLO CAETANO chamava-lhes "pessoas colectivas de direito privado e regime administrativo", definindo-as como as associações que não tenham por fim o lucro económico dos associados, prosseguindo objectivos de interesse social (e nesse fim não económico ou nesse interesse social está a essência da utilidade pública) cujos fins coincidam com atribuições da Administração Pública (utilidade pública administrativa) .
Segundo JORGE MIRANDA "as pessoas colectivas de utilidade pública administrativa (sucessoras das corporações administrativas de antes de 1936) desapareceram com a Constituição de 1976 e legislação subsequente (Decreto--Lei nº 460/77, de 7 de Novembro; Decreto-Lei nº 519--G2/79, de 29 de Dezembro; Decreto-Lei nº 119/83, de 25 de Fevereiro), se bem que, por lapso, ainda venham mencionadas no [...] estatuto dos tribunais administrativos e fiscais [artigo 51º, nº 1, alínea c)]" .
E acrescenta: "Presentemente não há senão as instituições particulares de solidariedade social (artigo 63º, nº 3, da Constituição), as quais, de resto, possuem um âmbito mais vasto do que a previsão do artigo 416º do Código Administrativo. E estas instituições são automaticamente pessoas colectivas de utilidade pública (artigo 94º do Decreto-Lei nº 119/83 e artigo 4º do Decreto-Lei nº 460/77)".

2.3 Diferente é o entendimento, a propósito, perfilhado por outros autores, como é, v. g., o caso de FREITAS DO AMARAL, cujo ensinamento vamos, por ora, acompanhar.
Depois de constatar a grande evolução e as profundas alterações que a matéria das instituições particulares de interesse público viria a sofrer depois da Revolução de 1974, o citado autor reconhece que o conceito de pessoas colectivas de utilidade pública administrativa "explodiu e se desentranhou em novas e variadas categorias, sem contudo ter desaparecido".
Concretizando, através da abordagem dos diplomas entretanto publicados, escreve o seguinte:
"Por um lado, o Decreto-Lei nº 460/77, de 7 de Novembro, veio autonomizar a categoria das colectividades de utilidade pública. Estas não se confundem com as pessoas colectivas de utilidade pública administrativa, nem as suprimem, mas passaram a interessar directamente ao Direito Administrativo, na medida em que a lei as define como "associações ou fundações que prossigam fins de interesse geral (...) cooperando com a Administração central ou a administração local" (artigo 1º, nº 1).
"Em segundo lugar, um diploma de 1979 - o Decreto-Lei nº 519-G2/79, de 29 de Dezembro - destacou do conceito de pessoas colectivas de utilidade pública administrativa toda uma espécie de associações e fundações particulares, que denominou de instituições privadas de solidariedade social e que tinham por objecto facultar serviços ou prestações de segurança social. Posteriormente, o Decreto-Lei nº 119/83, de 25 de Fevereiro, reviu e ampliou aquele diploma e consagrou o estatuto jurídico das ora designadas instituições particulares de solidariedade social, que já se não confinam ao sector da segurança social, abarcando também certas iniciativas particulares em áreas como a saúde, a educação, a formação profissional e a habitação. Estas instituições - formalmente referidas na própria Constituição (artigo 63º, nº 3) - deixaram, por lei, de ser qualificáveis como pessoas colectivas de utilidade pública administrativa (Decreto-Lei nº 119/83, artigo 94º)".

Em face da referida evolução legislativa, FREITAS DO AMARAL questiona se, em consequência dela, terá resultado, como pretendem alguns autores , o desaparecimento puro e simples da categoria legal das pessoas colectivas de utilidade pública administrativa.
Na sua opinião, a resposta deve ser negativa.
2.3.1. Contestando a tese segundo a qual o conceito de pessoas colectivas de utilidade pública administrativa se teria dissolvido na noção de pessoas colectivas de utilidade pública, por força do Decreto-Lei nº 460/77, de 7 de Novembro, FREITAS DO AMARAL observa que tal não é consentido, em face da clara distinção (no diploma) entre os dois conceitos e as duas categorias legais (v. g., nos artigos 1º, nº 2, 4º e 14º, nº 2). Por outro lado, o respectivo preâmbulo afirma expressamente que "as pessoas colectivas de utilidade pública não se confundem com as mais próximas categorias de pessoas colectivas, nomeadamente as pessoas colectivas de utilidade pública administrativa"; o artigo 1º, nº 2, estabelece que "as pessoas colectivas de utilidade pública administrativa são, para os efeitos do presente diploma, consideradas como pessoas colectivas de utilidade pública", o que mantém e ressalva a autonomia do conceito de pessoas colectivas de utilidade pública administrativa e do seu regime jurídico, para todos os outros efeitos; enfim, a distinção estabelecida no artigo 4º entre as pessoas colectivas que podem ser declaradas de utilidade pública "logo em seguida à sua constituição" (nº 1) e as que só podem sê-lo "ao fim de cinco anos de efectivo e relevante funcionamento" (nº 2) assenta no facto de as primeiras serem as previstas no artigo 416º do Código Administrativo - precisamente, as pessoas colectivas de utilidade pública administrativa -, enquanto as segundas não o são".
Rematando a análise da questão, escreve o autor que vimos acompanhando:
"Do Decreto-Lei nº 460/77, de 7 de Novembro, resulta pois nitidamente que as entidades aí chamadas colectividades de utilidade pública se desdobram em duas subcategorias: de um lado, as pessoas colectivas de utilidade pública administrativa e, do outro, as pessoas colectivas de utilidade pública "tout court" ou, se se preferir, as pessoas colectivas de mera utilidade pública. Esta distinção, que tem todo o sentido, assenta na ideia de que há mera utilidade pública quando se prosseguem quaisquer fins de interesse geral, e há utilidade pública administrativa quando esses fins coincidem com atribuições particularmente importantes da Administração Pública (no âmbito do artigo 416º do CA, tais atribuições são a beneficência, o humanitarismo, a assistência e a educação)" .
2.3.2. Quanto à tese de JORGE MIRANDA, segundo a qual teria deixado de haver pessoas colectivas de utilidade pública administrativa porque tal categoria teria sido substituída pela de instituições particulares de solidariedade social, entende FREITAS DO AMARAL que a mesma também não se afigura conforme com o direito positivo.
Por um lado, a circunstância de, na Constituição de 1976, se ter consagrado a noção de instituições particulares de solidariedade social (cfr. artigo 63º) em nada impede o legislador ordinário de manter outros conceitos próximos mas distintos desse.

É certo que a introdução no nosso direito da categoria das IPSS "expulsou" muitas espécies da categoria de pessoas colectivas de utilidade pública administrativa.
O certo, porém, é que não esvaziou esta noção de conteúdo útil e autónomo. Como sustenta FREITAS DO AMARAL, "nomeadamente, continuam a dever ser qualificadas como pessoas colectivas de utilidade pública administrativa todas aquelas que já o eram à face do artigo 416º do Código Administrativo e não passaram a instituições particulares de solidariedade social, nos termos do Decreto-Lei nº 119/ /83, de 25 de Fevereiro. Este último diploma corrobora esta interpretação, ao determinar no seu artigo 94º, nº 1: "as instituições anteriormente qualificadas como pessoas colectivas de utilidade pública administrativa que, pelos fins que prossigam, devam ser consideradas instituições particulares de solidariedade social deixam de ter aquela qualificação e ficam sujeitas ao regime estabelecido no presente diploma". Esta redacção pressupõe que, de entre as pessoas colectivas de utilidade pública administrativa existentes à data da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 119/83, a lei manda separar dois grupos a que se aplicarão regimes jurídicos diferentes:
a) As que pelos seus fins devam ser consideradas instituições particulares de solidariedade social -: quanto a estas, deixam de ser pessoas colectivas de utilidade pública administrativa, e passam a instituições particulares de solidariedade social;
b) As restantes, isto é, as que pelos seus fins não hajam de ser consideradas instituições particulares de solidariedade social -: quanto a essas, continuam a ser pessoas colectivas de utilidade pública administrativa.

"A mesma distinção vale para o futuro, isto é, para as associações e fundações que venham a ser constituídas após a entrada em vigor do referido diploma legal.

"Dois exemplos esclarecedores: as Misericórdias eram anteriormente pessoas colectivas de utilidade pública administrativa (CA, artigos 433º e segs.), mas, tendo sido abrangidas no novo conceito de instituições particulares de solidariedade social, deixaram de pertencer àquela categoria e ingressaram nesta última (Decreto-Lei nº 119/83, artigos 68º e segs.); já as associações de bombeiros voluntários, anteriormente reguladas no CA como pessoas colectivas de utilidade pública administrativa (artigos 441º e segs.), não foram abrangidas pelo Decreto-Lei nº 119/83 na categoria das instituições particulares de solidariedade social, pelo que continuam a ser, para todos os efeitos, pessoas colectivas de utilidade pública administrativa, estando sujeitas ao regime próprio destas.

"A categoria das pessoas colectivas de utilidade pública administrativa continua, pois, a existir nos quadros do direito positivo português - bastante mais reduzida, é certo, mas subsiste e nada obsta a que venha de novo a expandir-se no futuro".

2.4. É, assim, que na teorização de FREITAS DO AMARAL, que, no essencial, nos parece merecer acolhimento, as instituições particulares de interesse público se dividem basicamente em duas espécies: as sociedades de interesse colectivo, desprovidas de interesse na economia do parecer, e as pessoas colectivas de utilidade pública. Estas, por sua vez, subdividem-se em três subespécies:
a) as pessoas colectivas de mera utilidade pública - cfr. artigos 1º, nº 1, e 4º, nº 2, do Decreto-Lei nº 460/77, de 7 de Novembro ;
b) as instituições particulares de solidariedade social - cfr. artigo 8º do Estatuto das IPSS, aprovado pelo Decreto-Lei nº 119/83 ;
c) as pessoas colectivas de utilidade pública administrativa - cfr. artigos 1º, nº 2, 4º, nº 1, e 14º, nºs 1 e 2 do Decreto-Lei nº 460/77 .

3.

Considerando a temática da consulta, detenhamo-nos em especial na natureza e regime jurídicos das instituições particulares de solidariedade social, que poderemos definir como as pessoas colectivas de utilidade pública que se constituem para dar expressão organizada ao dever moral de solidariedade e justiça entre os indivíduos, nomeadamente para fins de apoio a crianças e jovens, apoio à família, integração social e comunitária, protecção na velhice e na invalidez, promoção da saúde, educação, formação profissional e habitação social - cfr. artigo 1º, nº 1, do Estatuto das IPSS, aprovado pelo Decreto-Lei nº 119/83.

3.1. Na esteira do reconhecimento, pela Constituição de 1976 (artigo 63º, nº 3), da vigorosa realidade que constitui a iniciativa privada nos domínios da solidariedade social, foi publicado o Decreto-Lei nº 519-G2/79, de 29 de Dezembro, que viria estabelecer o regime jurídico das instituições privadas de solidariedade social .
Todavia, como já se disse, os traços fundamentais do regime jurídico das pessoas colectivas de utilidade pública, independentemente da sua espécie, haviam sido desenhados pelo Decreto-Lei nº 460/77, de 7 de Novembro.
Entre esses traços fundamentais, próprios da natureza de pessoas colectivas que, conquanto privadas, respeitam um figurino jurídico específico traçado pelo Direito Administrativo, podem sublinhar-se os seguintes:
a) Têm de actuar com consciência da sua utilidade pública, aceitando cooperar com a Administração - artigo 2º, nº 1, alínea a);
b) Gozam das isenções fiscais que forem previstas nas leis tributárias - artigo 9º;
c) Beneficiam de isenção de taxas de televisão e de rádio e das taxas previstas na legislação sobre espectáculos e divertimentos públicos, dispondo de tarifa aplicável aos consumos domésticos de energia eléctrica e de escalão especial no consumo de água, "nos termos que vierem a ser definidos por portaria do Secretário de Estado dos Recursos Hídricos e Saneamento Básico, ficando ainda sujeitas a tarifa de grupo ou semelhante, quando exista, no modo de transporte público utilizado - artigo 10º, alíneas a) a e);
d) Beneficiam de publicação gratuita no "Diário da República" das alterações dos estatutos - artigo 10º, alínea f);
e) Têm de enviar anualmente à Presidência do Conselho o relatório e contas de exercício, prestar à Administração Pública quaisquer informações solicitadas e colaborar com o Estado e as autarquias locais na realização de actividades afins das suas - artigo 12º.

3.2. No entanto, e tal como se refere no preâmbulo do Decreto-Lei nº 519-G2/79, as instituições privadas de solidariedade social "têm, nos termos da própria Constituição, um regime legal mais regulamentado do que o das simples pessoas colectivas de utilidade pública (Decreto-Lei nº 460/77, de 7 de Novembro), em homenagem aos objectivos sociais que prosseguem e de que o próprio Estado é garante" .
O quadro completo de tais instituições era estabelecido pelo artigo 3º, aí se podendo encontrar, a par de formas tradicionais, como é o caso das associações de solidariedade social [nº 1, alínea a)], das Misericórdias [alínea b)], das associações de socorros mútuos [alínea e)], e das fundações [alínea f)], novas figuras como as cooperativas de solidariedade social e as associações de voluntários sociais [alíneas c) e d)] e ainda as respectivas uniões e federações (nº 2).

3.3. Pela Resolução nº 96/81, de 30 de Abril de 1981, publicada no Diário da República de 18 de Maio de 1981, propôs-se o Governo proceder à revisão da legislação em vigor e à preparação de um novo diploma legal contendo a regulamentação global das IPSS. Tal decisão fundamentou-se na necessidade de obstar aos inconvenientes resultantes da excessiva delimitação do objectivo específico de tais instituições, tal como fora definido no artigo 1º do Estatuto aprovado pelo Decreto-Lei nº 519-G2/79, ou seja, o "objectivo de facultar serviços ou prestações de segurança social".
Viria, assim, a ser publicado o Decreto-Lei nº 119/83, de 25 de Fevereiro, que aprovou o novo Estatuto das IPSS , revogando o Decreto-Lei nº 519-G2/79, com excepção dos artigos 7º, 22º e 24º do Estatuto publicado em anexo (cfr. artigo 98º, alínea b), do novo Estatuto).
Justificando o alargamento do objectivo específico das IPSS, pode ler-se no preâmbulo do Decreto-Lei nº 119/83:
"Com efeito, a solidariedade social exerce-se não só no sector da segurança social mas também em domínios como os da saúde (actividade hospitalar e serviços médicos ambulatórios), da educação, da habitação e de outros em que as necessidades sociais dos indivíduos e das famílias encontram apoio e resposta na generosidade e capacidade de intervenção próprias do voluntariado social organizado".
Procedeu-se, assim, em cumprimento da já citada Resolução, ao alargamento do conceito legal de "instituição particular de solidariedade social", contendo o novo Estatuto, no essencial, normas respeitantes à constituição, modificação, extinção e organização interna das instituições, bem como a enunciação dos poderes de tutela atribuídos ao Estado.
Por outro lado, "a relativa simplificação do sistema do diploma foi, no entanto, acompanhada de enriquecimento normativo da parte respeitante à organização interna das instituições" (14 .
Ver-se-á, a propósito da análise da questão colocada a este órgão consultivo, como é possível ilustrar a asserção ora extractada, mediante a apreciação das alterações introduzidas em sede da "composição dos corpos gerentes".

3.4. Do novo Estatuto das IPSS constam, em especial, os princípios da autonomia institucional e da livre elaboração dos seus estatutos (artigos 3º e 10º,nº 1), o princípio do apoio do Estado e das autarquias (artigo 4º) os direitos dos beneficiários (artigo 5º), as regras sobre criação, organização, gestão e extinção (artigos 9º a 31º) e as normas sobre tutela administrativa (artigos 32º a 39º), com que se encerra o Capítulo I.
O Capítulo II é dedicado às actividades de solidariedade social das organizações religiosas (artigos 40º a 51º), sendo o Capítulo III destinado à disciplina das diferentes formas de instituições particulares de solidariedade social enunciadas no artigo 2º.
Assim:
- a Secção I (artigos 52º a 67º) refere-se às associações de solidariedade social;
- a Secção II (artigos 68º a 71º) é consagrada às Mi sericórdias;
- a Secção III (artigos 72º a 75º) às associações de voluntários de acção social;
- a Secção IV (artigo 76º) às associações de socorros mútuos, cuja disciplina remete para o Decreto--Lei nº 347/81, de 22 de Dezembro, e legislação complementar;
- por fim, a Secção V (artigos 77º a 86º) tem por objecto as fundações de solidariedade social.
O Capítulo IV (artigos 87º a 93º) visa disciplinar a cooperação e agrupamentos das IPSS e, enfim, o Capítulo V (artigos 94º a 98º) contém as disposições finais e transitórias .

4.

Tendo sempre presente a temática da consulta, importa que nos detenhamos em algumas normas da Secção II (artigos 9º e seguintes) do Capítulo I, mormente as que integram a Subsecção II ("Dos corpos gerentes - Corpos gerentes e suas funções"), compreendendo os artigos 12º a 21º.
4.1. Sob a epígrafe "Elaboração dos estatutos", estabelece--se no artigo 10º que as instituições se regem "por estatutos livremente elaborados, com respeito pelas disposições deste Estatuto e demais legislação aplicável", deles devendo constar obrigatoriamente, entre outros elementos, "a denominação, a composição e a competência dos corpos gerentes" e "a forma de designar os respectivos membros" (alíneas d) e e) do nº 2).
Por seu turno, segundo o artigo 12º "em cada instituição haverá, pelo menos, um órgão colegial de administração e outro com funções de fiscalização, ambos constituídos por um número ímpar de titulares, dos quais um será o presidente" (nº 1) .
De acordo com o artigo 13º, compete ao órgão da administração gerir a instituição e representá-la, incumbindo-lhe designadamente "organizar o quadro do pessoal e contratar e gerir o pessoal da instituição" (alínea d) do nº 2) (sublinhado agora).
Estabelece, por sua vez, o artigo 15º, o seguinte:
"1 - Os corpos gerentes serão, em princípio, constituídos por associados da própria instituição, pelos fundadores ou pessoas por eles designadas.
2 - Aos membros dos corpos gerentes não é permitido o desempenho simultâneo de mais de um cargo na mesma instituição" (sublinhado da nossa responsabilidade).
Reportando-se aos "corpos gerentes" das associações de solidariedade social" (espécie na qual se integra, como se viu, a Associação para o Estudo e Integração Psicossocial"), o artigo 57º (também do Estatuto das IPSS, aprovado pelo Decreto-Lei nº 119/83) fixa os seguintes princípios essenciais acerca do correlativo mandato:
a) não pode ter duração superior a 3 anos;
b) não é permitida a eleição de quaisquer membros por mais de 2 mandatos consecutivos para qualquer órgão da associação, salvo se a assembleia geral reconhecer expressamente que é impossível ou inconveniente proceder à sua substituição .

Nos termos do artigo 18º, epigrafado "Condições de exercício dos cargos", o exercício de qualquer cargo nos corpos gerentes das instituições é gratuito, mas pode justificar o pagamento de despesas dele derivadas" .

Atento o disposto pelo nº 1 do artigo 20º, os membros dos corpos gerentes são responsáveis civil e criminalmente pelas faltas ou irregularidades cometidas no exercício do mandato, competindo à assembleia geral autorizar a associação a demandar os membros dos corpos gerentes por factos praticados no exercício das suas funções [artigo 58º, nº 1, alínea f)] e, bem assim, aprovar o exercício, em nome da instituição, do direito de acção civil ou penal contra eles (artigo 65º, nº 1).

Por se revestir de especial saliência na economia da consulta, transcreve-se também o nº 4 do artigo 21º, segundo o qual "os membros dos corpos gerentes não podem contratar directa ou indirectamente com a instituição, salvo se do contrato resultar manifesto benefício para a instituição" (sublinhado agora).

Justificar-se-á referir o artigo 19º, nº 2, do Estatuto da AEIPS, em perfeita sintonia com este normativo, e exactamente com o mesmo texto.

Por seu turno, o nº 2 do artigo 16º do referido Estatuto da Associação contém, como se refere no ofício da consulta, uma norma de conteúdo correspondente ao nº 2 do artigo 15º dos Estatutos aprovados pelo Decreto-Lei nº 119/83.

4.2. Qual é então a intencionalidade dos transcritos artigos 15º, nº 2, e 21º, nº 4, do Estatuto das IPSS (reproduzidos como se disse, nos artigos 16º, nº 2 e 19º, nº 2, do Estatuto da AEIPS)?
Torna-se manifesto que a teleologia da norma do artigo 15º, nº 2, reside justamente na preocupação de obstar à acumulação de cargos nas instituições particulares de solidariedade social por parte dos membros dos respectivos corpos gerentes, objectivo que se fundamenta em razões de transparência na gestão e nos procedimentos por parte dos titulares desses órgãos. São também razões de transparência, aliadas ao objectivo de evitar a colisão entre os interesses da instituição e os interesses privados dos titulares dos seus corpos gerentes que justificam o preceito do nº 4 do artigo 21º (19 .
Das disposições do Estatuto das IPSS que houve a oportunidade de enunciar é fácil extrair exemplos que bem ilustram a razoabilidade e justeza do objectivo traçado.
Assim, a permitir-se a acumulação pela mesma pessoa do exercício de um cargo nos corpos gerentes e de qualquer outro, correspondente ao quadro de pessoal da mesma instituição, dificultar-se-ia, por certo, a distinção entre o desempenho das funções correspondentes às duas qualidades e aos respectivos cargos, o que não deixaria de ter consequências do ponto de vista da eventual responsabilização (civil e criminal) dos membros dos corpos gerentes (artigo 20º, nº 1, do Estatuto aprovado pelo Decreto-Lei nº 119/83), das condições de exercício dos cargos, até do ponto de vista da respectiva remuneração ( 20 , e da competência do órgão de administração no sentido da organização do quadro do pessoal e da contratação do pessoal da instituição (artigo 13º, nº 1, alínea d), dos referidos Estatutos).
Tudo a provocar uma indesejável osmose entre o interesse (colectivo) da instituição e dos seus beneficiários e os interesses (privados) dos titulares dos seus corpos gerentes. Bastaria atentar nas dificuldades que se poderiam levantar na determinação da qualidade em que certos actos teriam sido praticados, sendo certo que os membros dos corpos gerentes são responsáveis pelas faltas ou irregularidades cometidas no exercício do mandato (21 .

4.3. Por seu turno, a norma do nº 4 do artigo 21º, ao obstar a que os membros dos corpos gerentes venham a contratar directa ou indirectamente com a instituição, salvo se do contrato resultar manifesto benefício para a instituição, reforça a intencionalidade do preceito do nº 2 do artigo 15º, proibitivo da acumulação de cargos na mesma instituição.
Com efeito, o impedimento cominado abrange os contratos de trabalho tendo como objecto a prestação de actividade à instituição, sob a sua autoridade e direcção.
E, em face da norma do nº 2 do artigo 15º, e das razões que teleologicamente a inspiram (e já enunciadas), não se poderão, nesta sede, invocar benefícios manifestos para a instituição, susceptíveis de permitirem o funcionamento da excepção.
4.4 A citada intencionalidade sai ainda reforçada, se se analisar o precedente Estatuto das IPSS, que fora aprovado pelo Decreto-Lei nº 519-G2/79, onde não se lobrigam disposições correspondentes quer ao nº 2 do artigo 15º, quer ao nº 4 do artigo 21º do actual Estatuto (22 .
Resulta claro que o legislador de 1983 pretendeu, nesta matéria, alterar o regime anterior, cominando com clareza, pela via dos dois preceitos reproduzidos, a impossibilidade de os membros dos corpos gerentes desempenharem simultaneamente mais de um cargo na mesma instituição.

4.5. Nem se diga que esta proibição de acumulação poderia, tão somente, pretender interditar o desempenho de mais de um cargo nos corpos gerentes da instituição.

É que, embora tal situação esteja obviamente compreendida na previsão da norma, se esse fosse, em exclusivo, o seu objectivo, o legislador ter-se-ia, por certo, exprimido em termos diferentes (23 .

Atente-se ainda, e por exemplo, na circunstância de, no nº 1 do artigo 18º do Estatuto das IPSS em vigor, se fazer expressa referência ao "exercício de qualquer cargo nos corpos gerentes das instituições", previsão necessariamente diversa da que é consentida pelo nº 2 do artigo 15º, ao cominar-se a impossibilidade de desempenho simultâneo de mais de um cargo na mesma instituição.
Ao prescrever-se que não é permitido aos membros dos corpos gerentes o desempenho simultâneo de mais de um cargo na mesma instituição, deve entender-se que aos mesmos não só está vedado pertencer, no mesmo mandato, a mais de um dos órgãos da instituição, mas também que não podem ser contratados para o desempenho de um cargo correspondente ao pessoal da instituição - cfr. alínea d) do nº 1 do artigo 13º do Estatuto das IPSS.
Ou, por outro prisma e por diferentes palavras: os trabalhadores contratados pelas instituições não podem desempenhar cumulativamente qualquer cargo nos respectivos corpos gerentes.

CONCLUSÃO:

5.

Termos em que se extraem as seguintes conclusões:
1ª. Aos membros dos corpos gerentes das instituições particulares de solidariedade social não é permitido o desempenho simultâneo de mais de um cargo na mesma instituição - artigo 15º, nº 2, do Estatuto aprovado pelo Decreto-Lei nº 119/83, de 25 de Fevereiro;
2ª. Os referidos membros dos corpos gerentes não podem contratar directa ou indirectamente com a instituição, salvo se do contrato resultar manifesto benefício para a mesma - artigo 21º, nº 4, do Estatuto das IPSS, referido na conclusão anterior;
3ª. Não é permitido aos trabalhadores contratados para o quadro de pessoal de uma instituição particular de solidariedade social o exercício cumulativo de um cargo nos respectivos corpos gerentes.




____________________________________________
(1Ofício nº 11995, de 7 de Setembro findo, subscrito pela Senhora Chefe do Gabinete de Vossa Excelência.
(2Cfr. artigos 1º e 2º dos respectivos Estatutos, recebidos por telecópia, enviada pelo Gabinete de Vossa Excelência, em 28 de Novembro.
(3Para o desenvolvimento da matéria, seguiremos de perto, por vezes textualmente, o recente parecer nº 51/90, de 27 de Setembro de 1990, a aguardar homologação.
(14Cfr. preâmbulo do Decreto-Lei nº 119/83, ponto 3.
(19Situa-se no mesmo leque de intenções a norma do artigo 19º, nº 1, do Estatuto da AEIPS, segundo a qual os membros dos corpos gerentes não podem votar em assuntos que directamente lhes digam respeito ou nos quais sejam interessados os respectivos cônjuges, ascendentes, descendentes ou equiparados.
( 20Enquanto o exercício dos cargos nos corpos gerentes das instituições é gratuito (artigos 18º, nº 1, do Estatuto das IPSS e 13º, nº 1, do Estatuto da AEIPS), há, como é óbvio, lugar a remuneração pelo desempenho de funções como trabalhador contratado pela instituição - cfr. artigo 1152º do Código Civil.
(21Não se justifica, atenta a natureza da consulta, tratar aqui a problemática das acumulações (e incompatibilidades). Remete-se, todavia, para os pareceres nºs 251/78, publicado no "Diário da República", II Série, nº 95, de 24-4-79, e no "B.M.J.", nº 288, pág. 176, 122/80, de 6-11-1980, publicado no "Diário da República", II Série, nº 124, de 12-9-1981, e no "B.M.J.", nº 309, pág. 54, 61/84, de 20-12-1984, no "Diário da República", II Série, nº 163, de 18-7-1985 e no "B.M.J." nº 346, pág. 54, 45/87, no "Diário da República", II Série, nº 289, de 16-12-1988, 75/89, de 22-2-1990, e 26/90, de 28-7-1990, ambos inéditos.
(22Cfr., designadamente, os artigos 14º e 17º do precedente Estatuto.
(23Cfr., v. g., o disposto pelo artigo 39º do Código Cooperativo, aprovado pelo Decreto-Lei nº 454/80, de 9 de Outubro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 238/81, de 10 de Agosto, e no artigo 94º do Decreto-Lei nº 72/90, de 3 de Março, que aprovou o Código das Associações Mutualistas.

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