sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Das urgências à Misericórdia

Quinta-feira, 14 de Junho de 2007
Das urgências à Misericórdia
-Já atendemos hoje mais de 300 doentes e como vê está sempre a entrar gente - desabafou o assistente hospitalar que me atendeu na Urgência do Hospital do Divino Espírito Santo, após um simpático cumprimento, como que a pedir-me desculpa pelos cerca de 90 minutos de espera segurando a parede junto a uma porta por onde passavam doentes acamados para exames médicos- nas urgências só há 4 cadeiras.
- Sabe, hoje é segunda feira e parece que toda a gente guarda para este dia. Somos oito médicos e não chegamos para todos.
Um pouco antes, uma médica, após perguntar a uma doente que entrara de cadeira de rodas, de que se queixava, comentou:-Quem tem dores de cabeça, quando aqui vem, fica com dores ainda maiores! E num gracejo de mau gosto acrescentou: -Isto é pior que o Senhor Santo Cristo!.
Fui à Urgência mas pedi ao recepcionista para ser observado no SAU (Serviço de atendimento urgente). A enfermeira da triagem entendeu, porém, colocar-me uma fita amarela no pulso. Um empregado levou-me à urgência do hospital e lá fiquei, de pé, calado, observando o vai-vem dos médicos, que entravam e saíam da sala de Gestão de doentes, sempre folheando papéis e mais papéis.
-Estou pr'aqui com uma chávena de café à espera que aquele senhô doutô me dê o resultado das análises - resmungava uma idosa sentada numa cadeira.
- A gente tem de esperar que eles venham - respondeu-lhe, sorridente, um outro idoso. - Faço análises todos os meses, fui operado ao coração, oxalá não seja nada! Esta manhã deu-me uma dor aqui na barriga e vim logo ao hospital!
E não era do coração, segundo lhe comunicou o jovem médico, após analisar o resultado dos exames auxiliares de diagnóstico. - Está a ver, eu bem me parecia que não era do coração!
Outros doentes iam entrando mais do que saíam e encheram o apertado corredor, deitados em macas ou em cadeiras de rodas, como que a pedir aos médicos, que transitavam apressados mas indiferentes, que os observassem e dessem às suas maleitas remédio adequado...
Quando saí daquele suplício, onde fiquei mais doente do que quando entrara por tomar consciência de que a doença dos outros era maior que a minha, dezenas e dezenas de pessoas enchiam a sala de espera do hospital e o mesmo acontecia nas instalações do SAU. Eram quase sete da noite. Percebi, durante o longo tempo de espera, que os médicos não chegavam para tamanha avalanche de doentes, estavam exaustos e que não havia espaço suficiente para, momentaneamente, retemperarem forças.
Ambas as instalações têm construção recente, mas a verdade é que há 10 anos atrás os cidadãos não reivindicavam o direito à saúde com tanta exigência e responsabilidade que, por alegada negligência, levam hoje à barra dos tribunais alguns clínicos. Nada disto me passou pela cabeça porque fui muitíssimo bem atendido por aquele simpático médico, de trato agradável e sotaque estrangeiro. Continuo, porém, convencido de que outras unidades com cuidados de saúde primários podem, também, prestar serviços aos doentes. Aliás, um aviso colocado no guiché do atendimento das urgências do Hospital de Ponta Delgada aconselha as pessoas a dirigirem-se, à unidade de saúde de São José que funciona, sem grande afluência, nos baixos do antigo Hospital de Ponta Delgada, propriedade da Misericórdia da cidade.
A propósito, do futuro do grandioso edifício localizado em zona nobre e central, onde existe também uma escola de formação profissional, nada sei, embora me pareça muito estranho que a Santa Casa da Misericórdia de Ponta Delgada mantenha fechados tão grandes espaços, bem como a antiga enfermaria abrigo. Será que não há necessidade de mais instalações para acolher idosos? O Lar da Levada é suficiente? Não há outras valências da acção sócio-caritativa onde a Misericórdia deva também intervir, activamente, mesmo na área da saúde? Ou tem-se em perspectiva o aproveitamento do imóvel para o exercício da medicina privada, onde o grupo Espírito Santo, accionista maioritário do BES-Açores, por integração da Caixa Económica da Misericórdia de Ponta Delgada, desenvolve actividade crescente?
Os Açores têm muito bons exemplos de Misericórdias dinâmicas, direccionadas para a acção sócio-caritativa junto de extratos populacionais carenciados, para os quais foram criadas Caixas Económicas. Algumas dessas Misericórdias, tem-se transformado, nos últimos anos, em grandes proprietárias, devido a doações de utentes.
De qualquer modo, importa que as Misericórdias, cujos estatutos são aprovados pela Autoridade Eclesiástica, no desempenho da caridade e da solidariedade cristãs que dizem professar, persigam sempre os fins para que foram criadas e dêem um destino social aos seus bens. Doutro modo serão um péssimo testemunho evangélico e a sua existência deixará de fazer qualquer sentido.
José Gabriel Ávila
jornalista

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