sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Dar a mão - D. Leonor

Debruço-me hoje sobre o estudo da origem e o desenvolvimento das Misericórdias, e a sua influência na sociedade portuguesa.
O espírito que norteou a criação das Santas Casas de Misericórdia foi extraído do pensamento cristão: “dar de comer a quem tem fome, de beber a quem tem sede, vestir os nus, assistir os enfermos, visitar os presos, enterrar os mortos, rogar a Deus pelos vivos e defuntos”.
Recuando aos tempos bíblicos podemos ver em Mateus 5, 7: “Bem aventurados os misericordiosos porque eles alcançarão misericórdia”, ou em Lucas 6, 36: “sede pois misericordiosos, como também vosso Pai é misericordioso”. Na Idade Média, abrandadas as guerras, aparecem as Ordens Religiosas, as pregações, as grandes peregrinações e as Cruzadas aos lugares santos: Jerusalém, Santiago de Compostela, Roma, e ainda a muitos outros lugares mais humildes, mas não menos significativos.
Como consequência destas iniciativas, formam-se, de várias maneiras, assistência aos peregrinos, com o aparecimento de albergarias, hospitais, leprosarios e outras formas de acolhimento e assistência. Assim a fraternidade transparece do melhor espírito cristão.
Antes da instituição oficial das Santas Casas de Misericórdia em Portugal, já nos alvores da Nacionalidade, o culto de Nossa Senhora sob a dupla invocação de Nossa, Senhora da Piedade e Senhora de Misericórdia era um facto. Porque oragos de igrejas paroquiais e conventuais, estas também como patronas de Irmandades, ou Confrarias, que chamaram a si a responsabilidade do exercício da caridade cristã.
O tempo exacto da instituição oficial das Misericórdias em Portugal seria o de 15 de Agosto de 1498, na capela de Nossa Senhora da Piedade em Lisboa.
Num documento de 1498, do mês de Agosto, pode-se compreender:
“... e caridade para ordenarem uma irmandade e confraria sob o título e nome de Nossa Senhora, da Misericórdia para o qual fossem e sejam cumpridas todas as obras de misericórdia espirituais e físicas quanto possível for. (...) por permissão e consentimento da senhora rainha D. Leonor”. Era na altura D. Leonor regente do Reino devido à ausência do seu irmão D. Manuel, em Castela.
Nasceu D. Leonor em Beja, no princípio de Maio de 1458. Viria a morrer em 1525, nos Paços de Santo Eloi em Lisboa.
Percorre, na sua existência, quatro reinados: de D. Afonso V a D. João III.
A vida, o exemplo, as obras, os investimentos de D. Leonor têm a ver com uma vida inteiramente votada a valores, profundamente religiosos, elevados pela espiritualidade. A esta vocação, não estarão por certo, inteiramente alheios os desgostos que a vida lhe tramou. Casada com apenas doze anos, cedo a sua felicidade começou a diluir-se. Quando a princípio, sem esposo, assumiu o reinado como D. João II, este começou a hostilizar com a nobreza. No seu pensamento sombras negras (como negras eram as vestes que a nobreza usava), pairavam sobre o trono. Obstinado e insensível, “descartava-se” daqueles que não concordavam com as suas determinações.
Assim foram eliminados os duques de Bragança e de Viseu, respectivamente cunhado e irmão da Rainha.
O maior desgosto de D. Leonor foi no entanto a morte prematura do seu único filho D. Afonso, vitimado por queda acidental enquanto cavalgava. Inconsolável pelo rumo que o destino lhe traçava, D. Leonor, enveredou pelo caminho da religiosidade. Assim começa uma vida votada aos outros.
Apoia e patrocina aqueles que se identificam com o sofrimento alheio: “Amar o próximo ao jeito do Bom Samaritano”. Apoia principalmente aqueles que assistem aos que padecem de dores físicas e morais, aos encarcerados, aos órfãos e aos pobres.
A Rainha defende e acarinha os mais desprotegidos da sorte que para ela se voltam todos os dias; ter lugar no coração para todos aqueles que são vitimas de qualquer forma ou miséria.
Há, na biografia da Rainha, uma vivência religiosa indiscutível: os hospitais, confrarias e misericórdias a que o seu nome está ligado.
Da. Leonor foi uma das figuras sociais e religiosas mais relevantes do seu tempo.
A criadora de hospitais, de confrarias, a devota das coisas intemporais, D. Leonor, entra no imaginário português principalmente como a “Rainha da Misericórdia”. É pelo menos da sua responsabilidade a fundação do balneário termal da Misericórdia da cidade das Caldas da Rainha.
Sobre Agosto de 1498 apenas sei que a capela da Sé de Lisboa acolheu a primeira misericórdia portuguesa. Teriam sido seus fundadores “Cem irmãos” que a pedido da Rainha escolheram para seu primeiro provedor um cavaleiro da Casa da Rainha com experiência e saber como escrivão e administrador avisado, do património e rendimentos da soberana.
Textos existentes não deixam de reconhecer que o aparecimento das misericórdias ilustram uma das obras fundamentais à acção religiosa e plena de piedade da Rainha D. Leonor.
Quais eram afinal as principais finalidades religiosas e sociais que as misericórdias portuguesas perseguiam originalmente?
Pelo exposto, sucintamente direi, que elas são as responsáveis pelo aparecimento do mundo moderno da confraternidade no nosso país. O aspecto mais saliente teria sido a sua funcionalidade religiosa, marcada pela penitência, condição que se tornaria indispensável no aprofundamento da sua continuada actividade de apoio e assistência sociais e espirituais.
De qualquer modo, apesar de uma imagem assistencial e de irmandade, as misericórdias não deixaram, como tantas outras instituições religiosas, de se afastarem progressivamente das funções para as quais foram fundadas. Apesar dos desvios, as misericórdias ainda hoje continuam a manter uma presença incontornável na sociedade portuguesa. Com o desenvolvimento comercial e centro de encontro com gentes de todos os quadrantes, Lisboa do século XVI, “vê” crescer a criminalidade. Os justiçados por enforcamento eram geralmente abandonados, enquanto que os escravos executados ficavam expostos nas praias.
Esta macabra situação agravou-se de tal forma que D. Manuel mandou abrir o célebre “Poço dos Negros” para aí serem despejados os desgraçados sem sepultura.
Para acabar com esta desumana situação as confrarias de misericórdia saíam em procissão, acompanhavam os condenados, para, consumada a sentença, lhes dar condigno enterro. As visíveis transformações de especialização de funções e da adaptação a novos conceitos de sociedade e economia, as misericórdias portuguesas parecem ter conseguido peregrinar um rol de idiários. Procurou sempre centrar-se no princípio de saber servir desinteressadamente, renovando de forma contínua a prática das Obras de Misericórdia e desenvolvendo uma intensa actividade de apoio e assistência aos grupos e camaradas sociais mais carenciadas.
“Dar a mão” muitas vezes, não é mais que uma palavra amiga ou um sorriso fraterno para quem é menos feliz. Custa tão pouco a quem oferece, e aquece a alma a quem os recebe!

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